The Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IV by Alexandre Herculano This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IV Author: Alexandre Herculano Release Date: November 28, 2005 [EBook #17177] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE *** Produced by Isabel Calderon Dinis (Projecto Enclave) and edited by Rita Farinha (Biblioteca Nacional Digital--http://bnd.bn.pt) OPUSCULOS *OPUSCULOS* POR A. HERCULANO SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC. *TOMO IV* QUESTÕES PUBLICAS TOMO III LISBOA *VIUVA BERTRAND & C.^a* SUCCESSORES CARVALHO & C.^a 73, Chiado, 75 M DCCC LXXIX *COIMBRA--IMPRENSA DA UNIVERSIDADE* ADVERTENCIA Propondo-nos continuar a interrompida compilação dos _Opusculos_ do fallecido escriptor Alexandre Herculano, importa dizermos em breves palavras qual é o nosso intuito, para que não se tomem á conta de insensato arrojo as timidas diligencias que fazemos por cumprir um dever, que reputamos impreterivel. Quem leu a primorosa _Advertencia previa_ do primeiro volume d'esta collecção sabe que o auctor resolvera imprimir de novo, de envolta com alguns trabalhos seus ainda ineditos, os numerosos escriptos que, no dilatado periodo de quasi quarenta annos, dera á luz, ou em folhetos avulsos, cujas edições estavam esgotadas, ou em folhas periodicas, algumas pouco conhecidas hoje, e todas mais ou menos difficeis de reunir e compulsar. Como elle proprio declara, um dos motivos, se não o principal, que o levava a «ajunctar os _disjecta membra_ de uma grande parte do seu passado intellectual», era o desejo de ser um dia julgado, com imparcialidade e justiça, pelas idéas que emittira e pelas opiniões que sustentara. E foi para tornar mais justa semelhante apreciação que assentou em conservar escrupulosamente a parte doutrinal dos opusculos primitivos, junctando-lhes, apenas, as datas da sua composição; porque, «sem querer no minimo ponto fugir á responsabilidade das suas opiniões, entendia que a responsabilidade seria ora maior ora menor, se porventura se attendesse á epocha em que essas opiniões foram manifestadas.» Fiel a estes principios, e obedecendo ao plano que traçara, conseguiu ainda o sabio escriptor dar á luz os tres primeiros volumes da presente collecção, nos quaes inseriu grande parte dos trabalhos que maior abalo produziram no animo publico, pela elevação, desassombro e energia com que ahi são tractados os mais melindrosos assumptos. Muitos outros, porém, estavam virtualmente destinados a formar novos livros, que por fim haviam de completar os elementos necessarios do processo, sobre que tinha de recair a sentença definitiva dos juizes imparciaes, a quem elle com tamanha confiança entregava o julgamento da sua causa; e são esses trabalhos dispersos, entre os quaes ha não poucos inteiramente desconhecidos da geração actual, que diligenciamos reunir e publicar. É grave, sem duvida, a responsabilidade moral e litteraria que contrahimos, escasso o tempo de que podemos dispor, debeis as forças, nulla a competencia. Erraremos, necessariamente, na escolha dos artigos, na ordem em que os collocarmos, na preferencia que lhes dermos, e acaso, até, na inserção de algum que o proprio auctor excluiria, O que, porém, podemos affirmar ao leitor é que empregaremos os maximos esforços para que seja fidelissima a transcripção d'esses artigos: fidelissima, dizemos, em quanto ao texto; porque a orthographia deixamol-a ao cuidado da imprensa. Seria muito moroso, além de sujeito a frequentes irregularidades, querer reduzir escriptos de tão differentes epochas, e publicados em desvairadas folhas periodicas, sem unidade orthographica, ao systema que o auctor ultimamente seguia. Para este quarto volume da collecção geral dos _Opusculos_, e terceiro das _Questões publicas_, escolhemos dois trabalhos egualmente importantes, e que nos parece terem intima correlação. O primeiro é um largo e consciencioso estudo ácerca da instituição vincular, onde são maduramente apreciadas as vantagens e os inconvenientes d'este modo de ser da propriedade, bem como as difficuldades que offerecia, n'aquella epocha, a sua immediata abolição. Este estudo, que encontrámos completo e mostra ter sido escripto sem interrupções, ficou, todavia, inedito na sua maior parte; porque apenas se imprimiram os tres primeiros capitulos, no jornal _A Patria_ de 8, 17 e 25 de fevereiro de 1856, e o quinto, d'ahi a tres annos, nos numeros 5 e 7 do _Archivo Universal-, a instancias do mallogrado escriptor Rodrigo Paganino. Quaes foram os motivos que impediram a publicação dos restantes, n'uma conjunctura em que as luminosas reflexões do auctor podiam auxiliar a resolução do grave problema, não nos foi possivel descobril-os; mas, com quanto a abolição dos vinculos fosse, poucos annos depois, levada a effeito, pelas leis de 30 de junho de 1860 e de 19 de maio de 1863, aos homens competentes pertence o decidir se n'essas leis foram, ou não, previstas com lucidez, e resolvidas com acerto todas as diffículdades que faziam vacillar um espirito tão esclarecido e um animo tão resoluto. Compõe-se o segundo trabalho de uma serie de cartas, dirigidas ao sr. conselheiro Carlos Bento da Silva, nas quaes o auctor manifesta, com a sua habitual lealdade e franqueza, a opinião que tinha ácerca da emigração para a America, assumpto que então preoccupava muito os espiritos, e hoje parece não dar excessivo cuidado a ninguem. Publicadas na _Revista agricola_ e no _Jornal do Commercio_, e sustentando doutrinas contrarias, em grande parte, às que eram geralmente seguidas, estas cartas levantaram clamores, que, não só interromperam um estudo cheio de bom senso e de generosas aspirações, mas arrastaram, em breve, para o terreno ingrato das luctas politicas a discussão, que só podia ser proveitosa mantendo-se nas regiões serenas da sciencia. Não é, por conseguinte, o dezejo de avivar a lembrança de uma controversia desagradavel, que nos leva a reproduzir, sem a menor alteração, algumas paginas mais calorosas deste trabalho litterario: fazemol-o, porque era impossivel mutilar um escripto de tanta importancia, justamente na parte em que o auctor, além de responder ás objecções do seu antagonista, desenvolve e reforça com argumentos novos as suas proprias idéas. Como succede a todos os homens que, súperiores ás preoccupações do seu tempo e movidos por um sentimento innato de rectidão, não encobrem o seu modo de pensar, nem sacrificam a verdade, embora tenham de censurar amigos ou de dar razão a adversarios, Alexandre Herculano foi, por via de regra, mal avaliado pelo commum dos seus concidadãos, e victima frequentes vezes de infundadas e contradictorias accusações. Têm, comtudo, os grandes engenhos e as consciencias immaculadas certa no futuro a justiça que os contemporaneos lhes negaram; e nós cremos que o leitor desapaixonado, comparando estes dois opusculos, distanciados até aqui por um intervallo de cerca de vinte annos e reunidos agora no presente volume, encontrará n'elles, como em todas as obras do auctor, os mais claros testemunhos da coherencia das suas idéas, da imparcialidade dos seus juizos, e da pureza das suas intenções. _Os legatarios_. OS VINCULOS 1876 I *Preliminares* O caracter mais prominente dos actos legislativos promulgados durante a dictadura do duque de Bragança, foi a tendencia para alterar na sua essencia, melhorando-a, a condição das classes laboriosas e productoras, aquellas em que verdadeiramente reside a força vital da sociedade. As leis d'essa epocha singular da nossa moderna historia tinham de ordinario por fim principal desmoronar os alicerces do antigo systema politico, e tornar impossivel a sua restauração. Era uma idéa grandiosa, implacavel como o destino, que presidia á redacção de todas ellas; mas, em quasi todas, ao pensamento da lei ou ás suas provisões ligava-se a idéa de um allivio ou o de um incitamento á quasi unica industria do paiz--a agricultura. Assim a lei dos foraes e a abolição dos dizimos, destruindo os recursos de certas corporações de mão-morta e de certa aristocracia de berço, em cuja influencia fatal se estribava principalmente o velho systema, livravam ao mesmo tempo a propriedade e o trabalho rural dos mais gravosos impostos; e a extincção das milicias, dos capitães-móres e das ordenanças, ao passo que desorganisava as resistencias locaes ás novas instituições, restituia ao lavrador e ao obreiro dos campos o uso integral do fructo do seu suor. A restauração era grandemente revolucionaria nas suas manifestações legislativas; mas, como todas as revoluções vivedoiras, ella representava uma revolução politica e ao mesmo tempo uma revolução social e economica. Em quanto Mousinho da Silveira influiu nos conselhos do duque de Bragança, a restauração conservou os caracteres que lhe imprimira esse homem singular. Os actos subsequentes da dictadura, sem deixarem de ser logicos com os que até ahi se haviam practicado, deixaram de ter egual alcance. A extincção, por exemplo, das ordens monasticas, ao mesmo tempo que desprezava direitos legitimos, os que os monges tinham ás suas dotações, e condemnava á miseria muitos individuos innocentes e respeitaveis, atirava para o mercado ou desbaratava sem tino e sem previsão um enorme cumulo de propriedade territorial, que, alienada por um systema sensato e previdente, teria sido dez vezes mais util á prosperidade geral do que realmente foi. A suppressão das ordens religiosas e a extincção do papel-moeda constituem os dois unicos actos de verdadeira audacia revolucionaria practicados pelos successores de Mousinho. As chagas sociaes em que elle não puzera o ferro ficaram. Taes foram as complicações do direito emphyteutico, que tornam absurda essa excellente fórma de transmissão e conservação de propriedade; taes os vinculos, instituição incompativel com o espirito da nossa epocha e com o regimen da liberdade; taes as contribuições municipaes sobre o consumo; taes os pastos communs, que offerecem embaraços permanentes a uma revolução agricola, que as circumstancias tornaram indispensavel. Toda essa farragem do passado teria provavelmente desapparecido, se o genio de Mousinho houvesse dirigido por mais algum tempo os destinos de Portugal. O movimento mais ou menos bem regulado d'aquella grandiosa revolução tinha por principal incentivo a febre de uma guerra civil violenta, especie de duello gigante entre o passado e o futuro. Quando a lucta cessou, o impulso reformador foi esmorecendo, e a reacção começou, como era natural apoz tamanho abalo, a modificar os espiritos. Houve quem parasse nos limites do justo; mas outros passaram além. Movia á piedade a situação do clero regular; causava graves apprehensões a desorganisação do secular; e o systema de administração franceza, cuja adopção fôra um erro de Mousinho, funccionava mal. Estes lados da reforma eram os menos defensaveis, e tinham contra si por um lado o sentimento religioso offendido, e por outro o incommodo dos povos nas suas relações administrativas. Explorou-se a mina: buscou-se tirar partido a favor dos velhos abusos das confissões leaes d'aquelles que, addictos ás doutrinas generosas da dictadura, eram assaz sinceros para condemnarem os erros que se haviam commettido. Animados por essas confissões, os interesses illegitimos, que a revolução havia ferido profundamente, agítaram-se e conspiraram contra ella. No meio das luctas civis que sobrevieram de novo, posto que menos violentas, e das incertezas e perturbações publicas, devidas umas aos nossos erros e paixões, outras a circumstancias independentes da vontade do paiz e das parcialidades, as tradições do duque de Bragança esqueceram gradualmente. Os exemplos de tentativas para sophismar ou destruir as suas leis economicas não foram raros. Houve mais d'um Oza que estendesse a mão á arca santa, não para a amparar, mas para a derribar, sem que cahisse fulminado. Nada prova mais esse progresso gradual de reacção do que os diversos projectos de refórma do decreto de 13 de agosto de 1832, chamado vulgarmente lei dos foraes, e as respectivas discussões nas duas camaras, reacção que veiu a formular-se na lei de 22 de junho. A questão do restabelecimento completo ou incompleto dos dizimos chegou a agitar-se nas commissões do parlamento. A idéa da reorganisação das milicias tem passado uma e outra vez pelas cabeças de homens assaz influentes, e porventura ahi vive ligada á existencia dos denominados batalhões nacionaes, que successivamente perecem e renascem. O jury, combatido a principio cora vantagem, como succede a todas as instituições novas que por via de regra funccionam mal, accusado por algumas das suas decisões, que a maior parte das vezes procediam e procedeam de causas alheias à instituição, foi pouco a pouco restringido, desnaturado, e posto á mercê dos juizes chamados letrados, designação infelizmente inexacta em relação a muitos. Não se ponderou que não ha jurados sem segurança publica, e que essa segurança não existia; que não os ha sem juizes habeis, e que muitos d'elles o não eram; que não os ha sem ensino primario, amplo na extensão e intensidade, e que o ensino era entre nós, como ainda é, incompletissimo em ambas as relações. Reagiu-se, em summa, no que se pôde, desde a vaidade de ter em Lisboa um patriarcha e um simulacro de patriarchal, inutilidades dispendiosas que a dictadura annullara, até o imposto sobre a pesca, vexame intoleravel abolido pelo duque de Bragança em favor de uma classe e de uma industria, que a humanidade e as boas doutrinas economicas mandavam proteger com a melhor das protecções, a plena liberdade. A reacção manifestada nestes e em outros factos parece incutir já receios em muitos homens publicos, que reflectem. N'outros uma especie de instincto politico suppre a falta da intelligencia superior e da razão esclarecida. Sente-se que é preciso conter o movimento retrogrado. Em nossa opinião o remedio é simples: é voltar aos bons principios; é comprehender bem a indole da restauração; é applicar as suas doutrinas, modificando-as nas applicações pelo que a experiencia de vinte annos nos deve ter ensinado. A dictadura do duque de Bragança foi demasiado curta e tempestuosa. Fez muito; mas não podia fazer tudo. Completae a sua obra; favorecei o augmento e o bem estar das classes productoras; ligae os seus interesses á manutenção das instituições, e a reacção reduzida á impotencia de uma vã theoria cessará de se reproduzir nos factos. As questões de direito publico são graves: o respeito pelas fórmulas e garantias da liberdade não merecem por certo o desdem com que alguns escriptores, aliás sinceramente liberaes, as tem às vezes tractado, desdem de que bem desejamos, por nós e por elles, não tenham ainda de arrepender-se. Entretanto é indubitavel que o meio mais seguro de colligir uma força moral que as mantenha é crear interesses de tal modo ligados com a existencia d'ellas, que toda e qualquer reacção os ameace collectivamente. É necessario que esses interesses se contraponham á organisação social, ao modo de ser da propriedade, ao systema de administração e de impostos, á distribuição das classes, congenitos com a monarchia absoluta. Não ha evolução completa de progresso sem as duas condições do melhoramento material e do aperfeiçoamento social. Podem dar-se factos que realisem a primeira, e que todavia sejam estranhos á fórmula politica do paiz onde se verificam. Nenhum descobrimento contribuiu tanto para o augmento da civilisação como o vapor e os caminhos de ferro, e todavia o vapor e os caminhos de ferro tem-se estabelecido em maior ou menor extensão, mas com as mesmas facilidades e vantagens, tanto na Inglaterra e nos Estados-Unidos, como na Austria ou na Russia, sem que alterem ou devam alterar por em quanto a indole politica ou social d'esses paizes. O erro deploravel dos adeptos de certa escola é desprezarem a distincção entre o progresso que influe no melhoramento social e moral dos povos, e aquelle que só melhora a sua condição physica. Esses taes não contestam a superioridade do primeiro, porque isso seria demasiado imprudente; mas julgam ter cumprido com o que devem ás doutrinas que professam, limitando-se a applaudir quaesquer tentativas mais ou menos imperfeitas para se obter o ultimo. Dir-se-hia que para elles o homem interior em relação ao homem physico equivale a zero á esquerda de qualquer algarismo. E todavia não é assim. Se o povo, deduzindo as ultimas consequencias de certas maximas que elles ás vezes proclamam sem reflexão, se entregasse nas mãos do primeiro despota que lhe promettesse o bem estar material; se essa triste philosophia do luxo e dos gosos, que dominava no imperio romano sob a tyrannia dos Cesares, chegasse a gangrenar inteiramente as sociedades modernas, horrorisados da obra para que teriam contribuido, apressar-se-hiam a renegar a propria escola e a alistar-se n'aquella, que, sem desprezar o homem exterior, não esquece que ha n'elle uma coisa interior chamada a consciencia, que reclama a liberdade e a dignidade como condições impreteriveis em todo e qualquer progresso das sociedades humanas. É debaixo da impressão d'estas doutrinas, e convencidos da sua importancia, que vamos escrever. Os estudos que iremos successivamente publicando não são um trabalho completo; porque talvez n'elles nenhuma questão seja considerada sob todos os seus aspectos. São apenas reflexões soltas que temos lançado ao papel nas diversas epochas em que circumstancias especiaes nos obrigaram a volver a attenção para os negocios publicos: são simples apontamentos, posto que coordenados e ampliados agora. Podem ter erros; mas a intenção que os dictou é leal. O auctor nunca poz a penna a soldo de partidos ou de escolas; nunca mercadejou com a sua razão, nem com a sua consciencia. Á falta de outro merecimento, estes estudos tem o da convicção sincera. II *Processo agricola.--Propriedade rural.--Opportunidade da discussão* Apezar do impulso dado ao desinvolvimento agricola pelas leis da dictadura de 1832, as consequencias de certos factos historicos, de certas instituições abusivas, que por seculos haviam esmagado o paiz, ainda em parte se experimentam. Remover essas instituições; neutralisar os effeitos d'aquelles factos é completar a revolução politica pelo complemento da revolução economica. A extincção dos dizimos, das milicias, das ordenanças, das prestações foraleiras deram á lavoira uma extensão imprevista, e a situação do cultivador portuguez melhorou sensivelmente. Se por uma parte os methodos sempre cambiantes da percepção dos tributos, aliás viciosos na sua essencia, não houvessem substituido por gravames novos os gravames antigos, posto que em muito menor escala; se, por outra parte, a grande propriedade não fosse ainda demasiado preponderante; se a falta de proporção entre o accrescimo da cultura e o accrescimo da população não houvesse augmentado, pela subida do salario, o custo das producções, cujo valor a concorrencia nos mercados tem ido progressivamente diminuindo; se a falta de instituições de credito agricola e a derivação dos recursos pecuniarios do paiz para a agiotagem, resultado de uma pessima administração da fazenda publica, não houvessem tornado o capital esquivo á agricultura; se o quasi nenhum melhoramento das vias de communicação não pesasse indirectamente sobre os productos; se o atrazo da instrucção popular não inhabilitasse o homem do campo para simplificar os methodos e instrumentos de cultura; se finalmente um falso systema de protecção não difficultasse indirectamente ao productor portuguez o accesso aos mercados estrangeiros; a industria agricola entre nós teria chegado ou chegaria em breve a uma situação brilhante. Descentralisação administrativa; divisão razoavel de propriedade; construcção de estradas geraes e caminhos concelhios; simplicidade e ordem no systema tributario, tanto geral como municipal; meios de crear o credito rural accommodado aos habitos e necessidades do paiz; impulso á instrucção popular, ou antes nacional, substituindo o impulso, talvez excessivo, dado á instrucção litteraria e superior; mudança gradual e reflectida do systema protector para o systema da livre permutação, a que só se poderá chegar pela descentralisação administrativa; eis o que, em nosso intender, constituiria em geral o complemento da revolução de 1832. Por esses meios, desinvolvidas as forças productivas da terra em toda a sua energia, o accrescimo da população acompanharia o accrescimo de trabalho; o valor d'este se harmonisaria com o das subsistencias; o producto liquido guardaria sempre proporcionalidade com o producto bruto, ou, pelo menos, seria bastante para se accumular em capital e converter-se em instrumento de producção; e emfim a grande industria nacional, livre de peias e, ainda melhor, de uma falsa protecção, influiria poderosamente no progresso da industria fabril e do commercio, cuja prosperidade é impossivel onde a agricultura definha debaixo do peso de instituições ou incompletas ou absurdas. De todas estas questões, cuja solução importa a este grande problema, nenhuma, se exceptuarmos a da liberdade do commercio, é tão grave, difficil e importante como a da divisão do sólo, isto é, da fórma e condições da propriedade territorial em relação á industria agricola. Debatendo-a, não só se discute uma das principaes materias economicas: discutem-se, digamos assim, as bases da sociedade civil. A revolução de 1832, a unica revolução séria que tem havido em Portugal, occorreu, entre outras coisas, ao damno e á vergonha, a que os erros dos nossos antepassados nos haviam conduzido, de comprarmos aos estrangeiros, durante uma parte do anno, a subsistencia de uma população pouquissimo numerosa em relação ao nosso territorio, e que uma insignificante industria fabril por certo não distrahia do trabalho agricola. Mas as grandes providencias d'essa epocha não deram nem podiam dar á industria e á população rural um impulso de maxima energia. Deram-lhes apenas o que procede da libertação da terra, da cessação de certas rapinas senhoriaes e fiscaes, e, consequentemente, o impulso indirecto que provinha da maior facilidade de produzir subsistencias, cuja abundancia e barateza, sempre progressivas, nos tem efficazmente convertido, no fim de quinze ou vinte annos, de importadores em exportadores. Os outros meios de augmento de população e de industria agricola, que eram consectarios do largo systema que a revolução adoptara, não se pozeram por obra desde que os dois elevados espiritos que tinham encetado a reforma radical do paiz desappareceram, um no tumulo, outro no esquecimento ingrato dos seus concidadãos. A redempção da terra pela destruição dos antigos vexames devia completar-se, de feito, por instituições e leis cujas tendencias fossem accordes com as da revolução. Desde que pelas providencias da dictadura de D. Pedro se entrava no caminho da reforma; desde que se fazia sair a agricultura da immobilidade e somnolencia em que jazera por seculos; desde que se lhe dizia «caminha!» era necessario acabar de lhe pôr franca a estrada, removendo todos os obstaculos á sua marcha ulterior. Não succedeu, porém, assim. Um dos factos mais importantes da historia da nossa fazenda publica prova que o systema da revolução, ou não foi comprehendido, ou foi promptamente abandonado por aquelles que deviam manter as tradições d'essa epocha. A lei dos foraes e, ainda mais do que ella, a extincção da maior e mais opulenta parte das corporações de mão morta trouxeram á massa de bens publicos uma porção avultadissima de propriedade rural. Calcular com alguma certeza os valores, os capitaes possuidos por essas corporações abolidas, ou rehavidos pela reversão gradual dos bens da corôa, é dífficillimo, senão impossivel, pelo pessimo methodo com que taes bens foram e tem sido incorporados na fazenda e depois alienados. Não será porém excessivo o algarismo de cincoenta a sessenta mil contos. Mas esses bens eram na sua maxima parte predios rusticos, ou censos e pensões sobre elles, symbolo do senhorio directo e portanto equivalentes de um capital. Tendo-se aberto uma nova era ao progresso da agricultura, os homens publicos d'então deviam pensar que não seria indifferente e sem influencia na economia social do paiz o destino que se désse a tão avultada somma de instrumentos de trabalho rural. N'um paiz de vinculos, de commendas, de bens de corôa, devia suppôr-se que a grande propriedade não estava em equilibrio com a pequena. Não era, porém, necessario suppol-o. Sabia-se que só na provincia do Minho preponderava a ultima, e que nas outras províincias predominava a primeira, sendo quasi exclusivo esse predominio na mais extensa de todas, o Alemtejo. Cumpria, portanto, comparar os resultados económicos e sociaes da grande e da pequena propriedade. Este exame mostraria, quanto a nós, a necessidade de favorecer a multiplicação dos pequenos predios, sobretudo no centro e no sul do reino. Não se fez, porém, isto. A massa enorme de riqueza territorial possuida então pelo Estado, a qual na maxima parte poderia ter cabido em mãos laboriosas e humildes por emprasamentos de superficie limitada, ou que, pelo menos, poderia ser vendida depois de retalhada, alienou-se por um systema absolutamente contrario. Dividida a propriedade tornar-se-hia accessivel a todas as condições e fortunas pelo emprasamento, e pela venda a milhares de pequenos peculios. Em vez d'isso cahiu geralmente nas mãos de homens opulentos, trocou-se por capitaes avultados. Em muitos casos foi o rico proprietario que conglobou nos seus extensos predios vastos predios nacionaes, e isto n'um mercado onde reinava pela abundancia a depreciação do genero, e onde a concorrencia era difficil. Outra parte serviu para converter muitos capitalistas em proprietarios. Assim se annullaram os mais importantes resultados que se deviam ter tirado da reivindicação parcial dos bens da corôa para o patrimonio publico, e da extincção das corporações religiosas. Foi a ignorancia que produziu o mal? Foi a persuasão de que a grande propriedade era mais util do que a pequena? Não o cremos. A verdadeira razão era o interesse pessoal dos homens influentes. Tinham-se inventado as indemnisações; tinham-se taxado os exilios, as perdas effectivas, os lucros cessantes, as perseguições que se haviam padecido por causa de opiniões. A religião do juramento, a fé nos principios, a lealdade á dynastia legitima deixaram de ser uma herança de honra para se legar como exemplo a filhos e netos, e converteram-se em capital com juro: os heroes transformaram-se em chatins. Foi uma abdicação moral quasi completa, a que a historia fará justiça. Para as indemnisações a alienação em grande convinha por mais de um modo. O _Ha-de-haver_ da conta de ganhos e perdas engrossava-se prodigiosamente ao lado do _Deve_ em branco. Os mercadores politicos, que a escripturavam, viam-se no governo, no parlamento, nos conselhos, nos altos cargos administrativos, judiciaes, e militares. Olharam para essa mole appetitosa e immensa que tinham ante si, e talharam a reparação pelo valor da presa cubiçada. Quanto mais se accumulassem e portanto se depreciassem no mercado os bens nacionaes, maior porção d'elles seria necessaria para satisfazer indemnisações exaggeradas. Com o tempo desappareceu tudo. O que não serviu para se trocar a honra politica por fortuna predial, desbaratou-se por preços insignificantes. Os capitalistas vieram substituir-se aos donatarios, aos commendadores e aos frades. Depois os heroes e os capitalistas foram ao templo dar graças aos deuses. A republica estava salva. Então seguiram-se quinze a vinte annos de revoluções tão estrondosas como insignificantes. Os partidos disputaram o poder, luctaram, digladiaram-se: houve sangue e desventuras; houve theorias dominantes, vencidas depois, e vencedoras de novo; houve homens turbulentos e cubiçosos (os ambiciosos são raros no nosso paiz) que ora se apoderaram do poder, ora desappareceram na obscuridade, quando não no exilio: houve todas as convulsões, todas as peripecias dos tempos de politica pessoal, de politica de odios acerbos e de interesses individuaes feridos. Só faltaram novos incitamentos para o progresso legitimo. Dentro da acção administrativa e parlamentar, o desenvolvimento do paiz, desenvolvimento innegavel, posto que muito inferior ao que devera ter sido, foi apenas a consequencia das providencias da primeira dictadura, e de alguns poucos actos da revolução de 1836, em que appareceu um homem de verdadeiro talento e de verdadeiro patriotismo, mas que, perdoe-nos elle, quasi compensou o bem que fez com os males cuja semente lançou á terra, transportando do campo da theoria para o dos factos as idéas proteccionistas. Ainda eram, comtudo, idéas: ainda era um reflexo de 1832. Depois só houve politica esteril ou reaccionaria. O progresso, independente das instituições, das leis e da acção administrativa, que se realisou n'este periodo, tem-se devido ás idéas e aos esforços particulares, á razão e á actividade dos cidadãos, movendo-se n'um ambiente de liberdade intellectual; porque é preciso confessar que n'esta longa epocha de pequenas paixões e de turbulencias interminaveis a iniciativa individual e a liberdade dos espiritos, fóra da esphera politica, tem sido geralmente respeitada. O cansaço quebrou por fim a violecia das facções e trouxe o periodo do repoiso. Boas ou más que fossem as doutrinas dos partidos militantes, ellas eram bandeira, não crença. A prova ahi está na historia dos ultimos quatro annos. Modificaram-se e mollificaram-se as opiniões, porque não tinham sido senão o estandarte dos interesses particulares, e porque nas phases variadas da longa lucta das parcialidades aquelles interesses chegaram mesmo, por acaso, a uma combinação politicamente possivel. Mas este facto trouxe outro mais grave: o paiz, que suspeitava de muitos, descreu de todos. É um mal ou um bem absoluto? O futuro o dirá. O que é certo é que desanimou e tornou-se indifferente aos partidos. Entretanto é incontestavel que vivemos n'uma quadra tranquilla. Que os homens influentes da situação o attribuam, não á indifferença do paiz, ao seu tedio de conflictos mais ou menos sanguinolentos e devastadores, mas sim á illustração, á justiça, á moralidade e ao liberalismo do poder, e á sua propria philosophia politica, que se remonta acima da comprehensão de nós outros homens vulgares, que importa? É uma rixa domestica; é uma questão entre os labios e a voz intima do coração. Nada temos com isso. O que nos importa é o facto, e o facto é que gosamos de paz e de liberdade de discussão ácerca de todas as materias politicas e sociaes. A quem nos deixa isto deve-se perdoar alguma coisa. Pode-se ter qualquer sentimento a respeito dos homens da situação: ter-lhes odio seria impossivel. Estão abaixo e além d'isso. E no meio da paz e da liberdade da palavra e da escripta apparecem tendencias, e mais do que tendencias, esforços para a realisação de novos progressos. O governo actual é arrastado pela opinião publica, como o seria qualquer outro que o substituisse, a melhorar as communicações internas, e no Minho ergue-se o povo para tomar n'esta parte a iniciativa. As questões d'instrucção popular, que passavam desapercebidas, excitam já a attencão e o interesse: não tardará que a opinião reclame a sua solução practica tão imperiosamente como reclama as estradas. As doutrinas da liberdade da industria e do commercio não só combatem face a face as preoccupações contrarias, mas até são chamadas á prova, e legitimam-se pelos resultados. Os espiritos começam a comprehender que o credito rural pode deixar de ser uma utopia, a associação uma vã palavra. No parlamento é atacada a instituição dos vinculos, e parece aproximar-se a ultima ruina d'estes. O governo, emíim, abriu o caminho para se chegar um dia ao verdadeiro systema tributario, sem o qual o triumpho completo do livre commercio e da livre industria é impossivel. Por ora a repartição do imposto directo, substituida á decima, pouco mais é do que uma troca de palavras, e Deus queira que não deixe de o ser antes de tempo; mas o povo vai-se afazendo á idéa, e é essa uma grande difficuldade vencida para o futuro. Estes factos são importantes, e estão, em geral, no espirito da revolução de 1832; mas todos elles tem uma desenvolução posterior, e essa desenvolução é que ha-de aproximal-os ou afastal-os do systema d'aquella epocha. Oppõem-se-lhes as tendencias reaccionarias, algumas das quaes já se manifestam nas leis e traduzem-se nos factos. Quando em muitos animos preponderam os desejos da restauração do passado; quando estes desejos começam a apparecer na legislação, é preciso estar de sobreaviso para que a reacção se não introduza no progresso sob o manto da imparcialidade. É esse o perigo das doutrinas, que nos aconselham afastemos os olhos das questões de ordem moral para só pensarmos no melhoramento material. Servirão taes doutrinas a tal ou tal situação, porque precisará d'ellas para se absolver a si propria; mas não servem ao paiz, e podem ser ainda fataes áquelles mesmos que as propugnam. Cumpre na desenvolução de cada reforma ligal-a pelas suas condições ao systema da liberdade. Se repetidos exemplos de corrupção fizeram descrer o paiz dos homens publicos, o progresso material, desligado e independente das condições politicas da sociedade actual, pode fazel-o descrer d'essas condições. O governo representativo não é commodo nem barato. É preciso que o povo considere as vantagens do bem estar como inseparaveis dos incommodos e sacrificios que as instituições exigem. O triste espectaculo, que hoje presenceamos, de uma grande nação privada dos seus fóros é a mais tremenda lição que nos offerece a historia sobre as consequencias de converter o porco de Epicuro em symbolo exclusivo da religião social. III *Abolição dos vinculos* O pró e o contra Entre as reformas pendentes merece attenção particular a abolição dos vinculos. Agita-se hoje essa questão, á roda da qual vêm accumular-se outras mais graves. Considerada em si, e só em relação aos seus resultados economicos, a extincção d'esta fórma de propriedades realisar-se-ha de um modo. Considerada em relação a todas as consequencias da medida, tanto economicas como sociaes e politicas, ha-de realisar-se de outro. A abolição dos morgados e capellas pode, até certo ponto, remediar o mal que resultou do systema inconveniente adoptado na distribuição e alienação dos bens nacionaes, se essa abolição se reputar um problema subordinado, uma hypothese que entra na questão geral da organisação da propriedade em relação ao bem estar material, moral e politico da sociedade. A esta luz a solução da questão geral determina forçosamente a da hypothese. Não é possivel, portanto, separal-as. Nas considerações que vamos fazer, considerações talvez incompletas, mas que cremos uteis, procuraremos quanto fôr possivel attingir á generalidade. As principaes objecções que se podem oppôr á existencia dos vinculos são de diversa ordem: moraes, politicas e economicas. Uma parte d'ellas entram na questão geral da grande e da pequena propriedade. Outras pertencem á ordem politica e á ordem moral. Oppõe-se aos vinculos que, sendo estes uma fórma de propriedade em que o direito de testar é tirado ao possuidor d'ella, convertido em simples administrador, falta a este o principal estimulo para os melhoramentos permanentes. Tudo pelo contrario o incita a tirar dos predios que possue a maxima utilidade pessoal. Salvas as hypotheses de viva affeição áquelle, que, não elle, mas a lei e a instituição fazem seu herdeiro, ou de uma decisiva paixão pela agricultura, o administrador do vinculo será sempre o peior entre os proprietarios ruraes, e a terra vinculada será constantemente um modelo de atrazamento e de incuria, um obstaculo permanente ao progresso agricola. A historia e o estado dos vinculos em Portugal demonstram _a posteriori_ a verdade e o alcance d'esta objecção. A instituição vincular é injusta excluindo os irmãos menores de egual quinhão na herança paterna, tornando-os dependentes, por um subsidio, do irmão mais velho, ao passo que não podem obstar a que este annulle os recursos para o pagar. Aquelle incerto meio de subsistencia é, alem d'isso, um incentivo de preguiça e ignorancia, uma fonte de irremediavel miseria para o homem a quem um berço illustre poz sem culpa sua fora do direito commum. O vinculo é a negação permanente de uma das primeiras condições da propriedade: n'elle os dois dominios estão incorporados n'um só, mas esse dominio não está _actualmente_ em parte nenhuma. Ficou, digamos assim, chumbado na campa de um tumulo: o tumulo retem-n'o até o fim das gerações. O morto desmentiu o direito dos vivos. O seu herdeiro, o homem que lhe succedeu na posse da terra e que elle chamou a isso por um acto livre e espontaneo, é pouco mais que um simples usufructuario. Mas ha outro que deva depois d'elle succeder com pleno direito, porque o affecto nascido dos laços domesticos ou do sentimento da gratidão moveu o instituidor a tornal-o proprietario d'essa terra apoz o quasi-usufructuario? Não ha. Ha só uma serie de descendentes que o instituidor desconhece, e, na falta d'estes, os de collateraes que não lhe importam. O fundador de um vinculo não fez mais do que empilhar os corpos de individuos tirados das diversas gerações para sobre elles assentar o throno da sua vaidade. Decretou-se homem grande: teve pena de que o futuro esquecesse personagem tão importante. Certa escola socialista mais moderada nega no que possue o direito de testar: os que estabeleceram a jurisprudencia dos morgados foram os precursores d'essa escola. Os antigos sacrificavam ao Deus desconhecido, _ignoto deo_; os instituidores de vinculos sacrificam _ignoto homini_. Os vinculos refogem, pela condição da inalienabilidade, aos impostos sobre transmissão por venda. Tornam, n'esta parte, em virtude de um privilegio, impossivel de se realisar ácerca d'elles a proporcionalidade constitucional das contribuições. A existencia dos vinculos, derivando de um privilegio, está absolutamente em antinomia com a lei política, não se provando que essa existencia seja de utilidade publica. Admittidos entre nós os vinculos em epochas, nas quaes o atrazo agricola tornava pouco productiva a terra, esta só podia constituir um morgado ou capella importante, vinculando-se uma immensa extensão de solo. No meio, porém, de população rara e de cultura pouco intensa e pouco frequente, elles não ofereciam grande obstaculo á exploração da terra. Agora, porém, que já o agricultor arrosta com os terrenos de segunda qualidade, e que a população se desenvolve e cresce, cada decada, cada anno, cada dia estão mostrando mais claramente o absurdo de se conservarem terrenos, muitas vezes de primeira ordem, incultos ou mal cultivados por causa de uma instituição, cuja existencia não é legitimada por nenhum motivo attendivel. A propriedade d'esta especie esta em regra condemnada á ruina e ao atrazamento. O predio vinculado, passando livre ao successor, é uma pessima hypotheca. O capital não se põe em contacto com elle senão por meio de exorbitantes usuras. Comprehende-se como um mau administrador de vinculo para satisfazer os proprios appetites ou paixões sacrifique á agiotagem um futuro que é seu; mas não se comprehenderia egual sacrificio da parte de um homem cordato, que pretendesse applicar um capital avultado aos melhoramentos de propriedades arruinadas pelo desleixo e falta de economia dos seus antecessores. Embora as bemfeitorias sejam encargo transmissivel, é certo que o dinheiro seria sempre incomparavelmente mais caro para elle do que para o proprietario cujos bens podem ser executados, e o dinheiro caro é para a agricultura do nosso paiz como se não existisse. Na verdade, trazida sem restricções a propriedade vinculada ao direito commum, o mau administrador desbarataria facilmente os proprios haveres; mas o bom poderia com uma parte d'esses bens, por qualquer modo alienados, tornar solido o resto da sua fortuna: mais; poderia tirar do sacrificio os meios de dar á porção salva um valor egual ou maior do que tinha todo o vinculo. Por certo que para isso necessitava de actividade, de economia e de intelligencia; mas favorecer taes dotes não seria uma das menores vantagens da abolição. Se a facil divisão do solo tem em geral uma grande importancia economica e social; se a tem egualmente a facil transmissão pelos contratos de compra e venda; os vinculos, contradizendo completamente esses dois factos, devem cessar de existir. Taes são as considerações principaes que se offerecem ou podem offerecer para se abolir esta forma especial de propriedade. Os seus defensores recorrem não raro a subterfugios e a razões insignificantes. Ha todavia algumas considerações que parecem favorecer os vinculos. Contrapol-as às allegações em contrario é mostrar que se busca sinceramente a verdade. O direito de propriedade é virtualmente atacado na abolição dos vinculos. O instituidor de qualquer d'elles estabeleceu-o em bens seus inteiramente livres, e sem offensa das leis de successão. Se elle tinha o direito de testar esses bens, tinha tambem o direito de regular o modo de succeder, de limitar e impôr condições á fruição do que era seu. Nas monarchias representativas considera-se a existencia das aristocracias como um facto social legitimo. Pelas instituições esse facto é convertido em principio politico manifestado no pariato: ou, antes, o facto indestructivel da desegualdade social é circumscripto por aquellas instituições dentro da orbita politica, ficando ao mesmo tempo excluido das relações civis legaes. Desde que, porém, a aristocracia, representante da desegualdade, é considerada como elemento politico, torna-se necessario garantil-a. Os vinculos, destinados a manter e perpetuar as familias aristocraticas, estão portanto essencialmente ligados á existencia da monarchia representativa. A divisão indefinita do solo tem os inconvenientes que a França, onde as instituições de direito publico e de direito civil a favorecem excessivamente, já experimenta em larga escala. A idéa de allodialidade absoluta da terra, e de favor para a subdivisão contínua da propriedade, prevalecendo entre nós no commum dos espiritos, e manifestando-se já nas tendencias de certas leis, ha-de emfim vir a produzir os mesmos males que produz em França e em outros paizes, e contra os quaes varios estados de Allemanha tratam de prevenir-se por via de leis positivas e terminantes. A existencia dos morgados estabelece uma compensação a similhantes tendencias, e equilibra a grande e a pequena propriedade. Suppondo, porém, que em geral a grande propriedade prepondere hoje; suppondo ainda que a parte allodial d'ella se não transforme pelo decurso do tempo, e que resista ás tendencias e leis que favorecem a divisão do solo; nem ainda assim os vinculos devem ser abolidos por manterem a grande propriedade. Esta não pode ser considerada como um inconveniente, visto parecer demonstrado que a grande cultura produz mais barato, que dá em resultado maior producto liquido, e que não ha grande cultura sem vasta propriedade. Deduzir da situação accidental dos vinculos, situação que ainda se não examinou se podia ser melhorada, argumentos contra a essencia de uma instituição, que pode contribuir para a creação de importantes valores, parece pessima logica e ainda peior economia politica. Na hypothese, porém, de que a propriedade perfeitamente livre tenda sem remedio a subdividir-se indefinidamente, opinião que tem por si os factos e as previsões de distinctos economistas, abolidos os vinculos, que é o que fica para satisfazer á necessidade economica da existencia de grandes predios ruraes? A centralisação é o grande defeito dos governos representativos: centralisação da soberania; centralisação da administração pelo executivo; centralisação da justiça; centralisação da força publica. Mas todos os poderes centraes tendem a destruir a independencia ou a acção uns dos outros e a elevar-se acima d'elles. Não raro acontece isto, e a experiencia ensina-nos que por via de regra é o executivo quem triumpha, sobre tudo pelos meios de corrupção, triumpho tanto mais perigoso, quanto é certo que se mantem de ordinario as apparencias constitucionaes, e que esse absolutismo é mais facil de sentir do que de demonstrar quando acata certas formulas tornadas estereis. A força dos agentes administrativos é, n'esta hypothese, immensa; porque se multiplica de um modo incalculavel a energia da centralisação já d'antes exaggerada. Abolindo-se os morgados e capellas, e destruindo-se por esse modo a grande propriedade e as influencias dos nomes historicos, não se faz mais do que remover obstaculos ás demasias dos delegados do poder central. O _cavalheiro de provincia_, essa entidade com recursos materiaes e moraes para contrastar a autocracia do funccionalismo, cessará de existir. Retalhados os predios allodiaes pelas heranças, os morgados seriam o ultimo e unico refugio da resistencia legal ao despotismo da centralisação administrativa. Ainda outros argumentos a favor da manutenção dos vinculos se costumam deduzir de certa ordem de considerações moraes. Tal é a difficuldade de os abolir sem offender direitos adquiridos ou as regras da equidade. Mas tambem os adversarios dos vinculos vão buscar nessa mesma ordem de idéas considerações que se oppõem á sua conservação. Subsequentemente teremos de avaliar alguns d'esses encontrados argumentos quando a successão das idéas nol-os suggerir. Aqui só quizemos indicar as ponderações mais graves que mutuamente se contrapõem sobre um problema, de cuja solução pendem muitos interesses, não só geraes mas tambem particulares, e em que por isso as exaggerações e argucias são frequentes e é difficil a imparcialidade. Basta porém attender ás considerações principaes para se conhecer que a sua confirmação ou refutação dependem do modo de resolver os mais serios problemas sociaes, taes como a indole e fins das aristocracias nas sociedades modernas, a organisação do poder central, e o equilibrio politico pela descentralisação administrativa, as vantagens e os inconvenientes da grande e da pequena propriedade, da grande e da pequena cultura, as leis que determinam o augmento da riqueza publica, tudo, emfim, quanto mais intimamente se liga com o progresso material e moral do paiz. Importa ter idéas claras ácerca d'esses graves assumptos para dar um voto sobre a questão dos morgados. Sem isto os instinctos ou os interesses de classe, de partido ou de individuos influirão exclusivamente na abolição ou não abolição, e, supposta a primeira hypothese, nas disposições da lei por que forem abolidos. IV *O principio vincular considerado na sua legitimidade* A primeira consideração que parece favorecer a conservação dos vinculos é de ordem juridica; liga-se com a maxima questão social--o direito de propriedade. O commum dos morgados em Portugal foram instituidos em terças, de que os instituidores podiam livremente dispor; e quando, com licença do rei, então arbitro supremo, abrangiam os bens de legitima, resalvavam-se os alimentos, a que se entendia terem jus os filhos por direito natural, que ao rei não era licito infringir. Os instituidos, com permissão regia, em bens de corôa, em commendas, etc., ou fundados por individuos sem herdeiros forçados, é evidente que não offendiam direito algum particular, e que o instituidor não fazia senão practicar um acto legitimo, dando esse futuro destino a bens que podia livremente testar, ou de que a auctoridade suprema lhe consentia dispor para esse fim como de cousa propria. Assim a abolição, destruindo a fórma e condições impostas na transmissão da propriedade pelo proprietario, negaria retroactivamente o uso de um direito legitimo. A lei pode prohibir as novas instituições vinculares; mas não pode converter o administrador em proprietario, nem regular a successão dos bens de vinculo pelo direito commum. Na verdade os instituidores de morgados tinham o direito de transmittir a propriedade de que livremente podiam dispor com as condições que entendessem; mas as consequencias que d'ahi se deduzem estão longe de serem incontestaveis. Se admittis a doutrina que apenas estriba o direito de propriedade nas leis positivas, é evidente que ellas podem modificar, restringir e até annullar esse direito. Se, com mais razão, considerais a propriedade como de direito natural, ainda assim as difficuldades subsistem. As opiniões variam ácerca da extensão d'esse direito. Ha quem negue que a successão testamentaria e _ab intestato_ se inclua n'elle; não seja de pura instituição civil: ou, por outra, que o direito de propriedade possa subsistir além do tumulo. O acto, porém, de instituir um vinculo não é mais do que levar o exercicio d'esse direito não só além da morte, mas tambem á perpetuidade. Supponhamos, todavia, que a successão esteja envolvida no direito natural da familia. Não se comprehende melhor como a successão vincular se haja de fundar em tal direito. Que é o que transmittiu o instituidor? Apenas uma parte do dominio. Nenhum dos seus herdeiros tem o dominio absoluto dos bens do vinculo: o que tem é, digamos assim, apenas meia propriedade. Resulta d'aqui um facto. Pela nossa jurisprudencia os morgados extinguem-se: e esta extincção dimana da sua natureza. Quando ao ultimo administrador não restam parentes consanguineos, que tambem por consanguinidade o sejam do instituidor, o morgado acabou. Os bens vinculados devolvem-se então á corôa, á fazenda publica, á sociedade. Por mais intimos que sejam os laços de familia que unam o derradeiro possuidor com outros individuos, esses individuos são excluidos. Comtudo a legitimidade da successão nos vinculos, como em outra qualquer propriedade, estriba-se forçosamente ou na lei civil revogavel, ou no direito natural da familia. N'esta ultima hypothese o vinculo repugna ao principio da sua propria validade. Porque veiu a succeder o Estado? O dominio residia n'elle? Dir-se-hia que sim. A idéa de semi-propriedade é uma idéa de restricção, limitativa: cumpre por isso que exista a cousa restringida, limitada. Concebe-se, por exemplo, perfeitamente o usofructo nos bens não vinculados: após o usofructuario ha sempre um herdeiro definitivo. Nos morgados não acontece assim. Existe á limitação sem a cousa limitada, se não suppozermos o Estado revestido d'aquelle dominio que não existe no possuidor. Em relação, pois, ao direito natural da propriedade a existencia dos vinculos é uma cousa incoherente, contradictoria, inexplicavel. Mas ha uma consideração ainda mais grave a oppor áquelles que invocam os fundamentos do direito em favor d'essa instituição. É que, para subsistir, ella carece absolutamente das leis de privilegio. A sociedade deve proteger o livre uso da propriedade e as disposições testamentarias em quanto ellas se conformam com o direito commum. Lei de excepção para taes ou taes hypotheses é que não deve nem pode admittir senão por um motivo que virtualmente o faça entrar na regra geral--a utilidade publica; e a utilidade publica só pode qualificar-se por uma declaração legal, por uma disposição de direito positivo. Declarada não util a existencia dos vinculos, o direito politico faz desapparecer necessariamente desde logo as leis que mantêm os vinculos. Revogadas estas, como se não pode conceber propriedade sem proprietario, ou o dominio completo dos bens de morgado será considerado como _nullius_ e recahirá no Estado, ou esse dominio se incorporará no meio dominio, convertendo-se o administrador em proprietario. Seria, com effeito, absurdo que qualquer individuo tivesse o direito de regular a applicação e uso dos proprios bens _post mortem_ por tal arte que não se houvesse de realisar a sua vontade sem certas disposições especiaes de direito positivo, e que a sociedade fosse constrangida a promulgar ou a manter semelhantes disposições. A soberania de tal homem excederia a da razão publica, unica de legitimidade indubitavel. A abolição, pois, dos vinculos, ou, para falarmos mais exactamente, a revogação das leis positivas que os protegem, e sem as quaes a sua existencia não se comprehende, respeita o direito de propriedade. A questão pode versar sobre a conveniencia ou não conveniencia do principio vincular, e sobre a maneira da abolição ou da conservação, mas nunca sobre o direito que o paiz tem de retirar o seu apoio a esta antiga instituição. Tirada, porém, a base de um direito primitivo e indestructivel, os defensores dos morgados appellam para o direito politico. A monarchia representativa consagra o principio da desegualdade social, fazendo-a representar pela aristocracia de berço, cuja conservação forçada deriva da indole do pariato hereditario. Exigindo-se para este, além de outras habilitações, uma renda avultada, importa que as instituições e as leis mantenham a perpetuidade d'essa renda, em harmonia com as que consagram a perpetuidade das funcções. A permanencia dos vinculos assegura esse resultado, ao passo que a sua abolição importa a não existencia do pariato hereditario. A lei politica estabelece o pariato hereditario e o vitalicio; mas nem determina a proporção de um ou de outro, nem, rigorosamente, exige a existencia simultanea de ambos. Não a exige, porque seria absurda essa exigencia. Sem as leis organicas e com a Carta na mão, o rei poderia substituir o par fallecido sem herdeiro que o representasse por um par vitalicio. Esta hypothese verificada em vinte ou trinta casos teria acabado com o pariato hereditario. Vice-versa o rei poderia deixar de supprir os logares vagos por morte dos pares vitalicios, ou tornal-os hereditarios e acabar assim com a não hereditariedade. A lei de 11 de abril de 1845, exigindo, além de outras habilitações, uma certa renda ao individuo que succede no pariato, levou em mira a manutenção da dignidade e independencia dos membros da camara alta. Ora essas condições não podem verificar-se com uma renda imaginaria: é preciso que esta seja real e effectiva. Mas são justamente os vinculos que menos asseguram a realidade e effectividade de semelhante renda, e que ao mesmo tempo offerecem mais meios para ser sophismada a letra e desmentido o espirito da lei. O mau administrador de morgado (e a regra é ser mau administrador do fundo quem não passa de pouco mais de usufructuario) pode reduzir-se a si proprio á miseria dentro de um ou dous annos, e perder a independencia e a dignidade que a lei requer n'elle: pode, até, transmittir ao seu successor a propria miseria, porque são vulgarmente sabidos os alvitres de que usa o capital, ou, se quizerem, a agiotagem, para illudir o principio da immunidade vincular. Na apparencia, porém, a renda exigida pela lei continua a subsistir: o fundo não desapparece: o administrador actual lá possue nominalmente _uma casa_ de quatro, seis ou oito contos de réis. Na verdade hoje não tem que almoçar, ámanhã não terá que jantar; ao seu successor acontecerá o mesmo; mas que importa? A letra da lei está salva: o que se annullou completamente foi o seu intuito, o seu espirito, a razão que a sanctificava. Se os bens do par fossem sujeitos á lei commum, este facto servir-lhe-hia de poderoso incentivo para ser um cidadão economico, activo e bem morigerado; porque a manutenção da dignidade de par, em si e n'aquelle que houvesse de succeder-lhe, dependeria d'essas virtudes, virtudes que aliás não deixariam de influir nas suas opiniões e no seu procedimento politico, e de reverterem em beneficio da republica. Mas admittamos por um momento que o pariato hereditario seja inseparavel da existencia dos vinculos. Não se segue d'ahi a necessidade de os conservar. É facil reformar o artigo constitucional que consagra simultaneamente a hereditariedade e o vitalicio no pariato, reduzindo-o a esta ultima fórmula. Se a abolição dos vinculos involve um grande interesse social, a solução mais razoavel será a suppressão da hereditariedade do pariato, suppressão que em nosso modo de ver representaria um verdadeiro progresso na organisação politica, acabando com uma idéa falsa. Esta idéa, na qual se estriba o pariato por successão, é a de que a aristocracia, elemento politico, é forçadamente o mesmo que a aristocracia de linhagem: ou, por outra, que o facto indestructivel da desegualdade humana se ha de manifestar eterna e quasi exclusivamente na fórmula dos tempos feudaes. É uma opinião que vale a pena de se examinar. V *Desegualdade e personalidade* A desegualdade natural entre os homens tem sido negada de um modo absoluto nos tempos modernos: tem-se empregado todas as subtilezas da philosophia do direito para demonstrar a possibilidade de destruir um facto indestructivel. Tudo nasce, em nosso entender, de se confundirem as idéas de diversa ordem. A egualdade civil não é só possivel, é necessaria. Deriva do direito natural que cada um tem de desenvolver a sua actividade até onde não impede a desenvolução da actividade alheia. Esse direito suppõe deveres correlativos. A sociedade existe para manter aquelle e estes. É por isso que o estado social é inseparavel da humanidade, e que o homem da natureza, sonhado por alguns philosophos do seculo passado como anterior á sociedade, não passa de uma chimera. Um simples exemplo fará sentir melhor esta incontestavel doutrina do que longas dissertações. O que, trabalhando, deu valor a um tracto de terra desoccupado e inculto e o fez fructificar, desenvolveu legitimamente a propria actividade. Se outrem quizer colher os fructos ou substituir-se ao primeiro occupador do campo agricultado exorbitará da esphera legitima da propria actividade, e deixará de cumprir o dever de respeitar a livre acção alheia. N'este exemplo se resumem e symbolisam as infinitas relações civis que a sociedade mantém e que correspondem ás idéas de egualdade. As instituições que asseguram o livre movimento do individuo dentro da esphera da propria acção, sejam quaes forem, são instituições de liberdade, porque mantém a egualdade civil. Mas a egualdade civil importa a desegualdade social. Outro exemplo tornará tambem evidente esta doutrina. Se em campina illimitada e fertil, mas sem dono e inculta, dous individuos occuparam dous tractos de terra diversos, e um d'elles dotado de maiores forças physicas, de melhores instrumentos, de maior energia e actividade, assignalou mais extensa área aos proprios esforços e accumulou maior somma de trabalho intelligente, e por consequencia maior somma de productos, nem por isso o menos forte e menos habil pode queixar-se de que elle penetrou na sua esphera de legitima actividade. Se pretendesse que a sociedade repartisse com elle uma parte dos valores creados pelo seu vizinho, pretenderia uma injustiça--a quebra da egualdade civil. Por outro lado, se o mais robusto e intelligente, pretextando a incapacidade relativa, physica e moral, do menos energico e menos habil, pretendesse apoderar-se da terra e dos instrumentos do pequeno cultivador, a sociedade seria injusta se lhe désse razão; se tolerasse que elle estendesse a esphera da propria actividade até penetrar na esphera da acção alheia: toleraria a quebra da egualdade civil, se não mantivesse cada qual na orbita que lhe fôra assignalada pelo supremo direito da natureza. Se a manutenção, porém, do livre exercicio da actividade dos vizinhos era n'este caso equivalente á manutenção da egualdade e da justiça, as consequencias que derivassem d'esse facto, e só d'elle, seriam tambem incontroversamente legitimas. Ora uma d'ellas, a mais importante, havia de ser forçosamente a desegualdade social; a desegualdade d'aquellas relações cujas normas se estabelecem, em parte, pelas regras a que chamamos direito publico, direito que a razão e a historia nos apresentam como mais cambiante, menos conforme no espaço, e menos permanente no tempo, do que as regras das relações civis. A desegualdade social dos dois vizinhos manifestar-se-ia em muitos factos impreteriveis. O que por excesso de energia e de trabalho tivesse obtido melhores, mais numerosos, e mais variados productos, gosaria mais, e necessariamente, pela intelligencia e pelos recursos materiaes, exerceria maior influxo no animo dos outros homens. A sua generosidade fora mais ampla, a sua hospitalidade mais opulenta, o seu tracto mais aprazivel, a sua opinião mais seguida: isto é, elle seria socialmente um algarismo em relação ao qual o seu vizinho representaria outro bem inferior. E todavia a desegualdade nascida da egualdade não offenderia o direito, não seria senão justiça. O arroteador do grande predio é o symbolo da aristocracia: como emanação do direito fundamental que virtualmente a gera é que esta se absolve e legitíma. Mas d'ahi nasce o corollario de que ella é essencialmente individual, personalissima. A desegualdade não é de gerações, de linhagens predestinadas: é de individuos. Por isso as suas manifestações collectivas, para serem naturaes e logicas, devem ter ao mesmo tempo o sello da individualidade. A aristocracia, como entidade real, é uma concreção necessaria, mas artificial; é a generalisação da idéa das desegualdades individuaes; é a incorporação das maximas forças sociaes; é o reconhecimento e a organisação de um facto impreterivel. Na verdade, superioridade social herdada e derivando do direito natural da familia pode em alguns casos ser legitima; mas é accidental, e vem entrar em ultima analyse na regra da superioridade individual. Se o pae, que era um membro da aristocracia pela sua riqueza, a legar ao filho, este o será como seu pae, independentemente de todas as instituições positivas, do mesmo modo que deixará de o ser na realidade desde o dia em que perder essa herança, sejam quaes forem as leis que pretendam manter-lhe um caracter social que lhe desappareceu da fronte. A fórma por que adquiriu os valores, que o convertem em uma força de excepção, nada importa, uma vez que seja legitima. É indifferente que lh'os désse o trabalho, a intelligencia ou o berço. O importante, o indispensavel é que elle actualmente os possua: que exista um facto que a força bruta pode destruir, mas que a razão publica não pode deixar de reconhecer. O influxo moral de um nome illustre, herdado de antepassados, é tambem uma força social. Esse influxo constitue a nobreza, a qual, não sendo em rigor um facto indestructivel, é todavia uma realidade. A democracia, quando o condemna ou o nega, engana-se. O valor da _aristocracia de sangue_ assenta n'uma ordem de idéas extranha ao direito; procede do sentimento, digamos assim, poetico das sociedades, porque todas as sociedades tem a sua poesia. A esta luz nada mais legitimo do que a fidalguia; porque o senso esthetico é uma condição natural das sociedades civilisadas, e o orgulho pelas tradições gloriosas do passado constitue uma parte da sua vida moral. A nobreza de linhagem é um monumento do passado. Os que pretendem expungil-a da lista das manifestações da vida social devem por maioria de razão mandar destruir os tumulos dos heroes e dos sabios, e dispersar-lhes as cinzas ao vento, quebrar-lhes os bustos e as estatuas, arrazar os templos, os obeliscos, os monumentos, sejam quaes forem, que ligam as glorias do passado ao presente pelas recordações. Aquelle que affirma ser coisa absolutamente van a herança de um grande nome, não chame vandalo ao que derriba a quadrella da muralha ou a torre do castello antigo para calçar as ruas. Este não faz mais do que elle: nega a significação dos monumentos; nega tudo aquillo que só a poesia nacional sanctifica. N'este systema a unica maneira de ser rigorosamente logico é ir até aonde foi a revolução franceza de 1793. É necessario que ao lado das pedras, que desabam, rolem pelo chão as cabeças. O facto social, em que se estriba a aristocracia de linhagem, está, porém, ligado a uma condição que forçadamente dá a esta o mesmo caracter de personalidade, que é indelevel nas outras especies de aristocracia. Essa condição deriva do principio de que o poetico é inseparavel do moral, o bello do bom. Ora o que se eleva acima dos outros, porque herdou um nome venerado pela opinião, está adstricto a respeitar a moralidade dos seus actos para não perder essa _força_ herdada, que não póde existir sem a sua condição philosophica. Esta doutrina é confirmada plenamente pela observação practica. Os netos degenerados dos homens grandes, se os depojardes de todas as distincções facticias que servem de encobrir o vicio e a incapacidade, invocarão debalde o nome de seus avós como uma _desegualdade_, uma _força_, que os eleva _socialmente_ acima d'aquelles que _civilmente_ são seus iguaes. O sentimento moral, que exteriormente se traduzia em consideração e respeito, desappareceu ao passo que a lei esthetica se annullou. Assim a nobreza hereditaria, dependendo inteiramente da acção do individuo, entra na lei geral da aristocracia--a personalidade. O erro dos escriptores democraticos, que entendem ser possivel a destruição _effectiva_ de uma classe aristocratica, procede de confundirem a fidalguia hereditaria com a do corpo aristocratico; de tomarem a especie pelo genero. É possivel que a especie chegue a desapparecer temporariamente, ou por degeneração moral dos individuos que representam as velhas linhagens, ou pela extincção d'estas; mas o tempo sanctificará as novas illustrações que se alevantam, e em quanto as nações tiverem o sentimento do bom e do bello, isto é, em quanto tiverem uma condição sem a qual não podem existir, a progenie d'esses homens summos herdará a força moral de seus nomes, e só a perderá destruindo-a pela _villania_ pessoal. Mas extincta ou existente, brilhante ou obumbrada, a fidalguia não é uma formula essencial da aristocracia. Para ser revalidado o protesto da desegualdade social em todas as gerações, não é necessaria a assignatura das castas; não é preciso que esse protesto seja firmado com sellos blasonados. O genero fica, embora a especie desappareça. Reflectiram bem os que dizem que as sociedades caminham á completa egualdade democratica, porque se facilita o caminho das mais elevadas situações, das mais poderosas influencias, a todas as vontades energicas, a todos os talentos fecundos, e porque, do fastigio das grandezas e do poderio, familias e individuos caem facilmente na obscuridade e na impotencia social? Esta observação, que muitos julgam profunda, não passa de uma trivialidade sem alcance. A questão é se esse fastigio, esse poderio, essas influencias, essas manifestações, em summa, da desegualdade humana desappareceram; se podem desapparecer ou se ha sempre, ou não ha, sujeitos em quem ellas se personalisem; se, collocados em situação identica e tendo interesses communs, elles constituem ou não uma entidade moral juxtaposta ou sobreposta á democracia. Eis a questão. Que importa se a preeminencia do individuo se explica por um testamento, por um berço, pelo genio, pelo trabalho, ou por um acaso feliz? Seja qual for a origem d'essa preeminencia, d'essa força, a sociedade pode negal-a, combatel-a, annullal-a temporariamente; o que não pode é impedir a sua reproducção. A desegualdade é a lei: a aristocracia a sua manifestação indestructivel. No mosaismo e no brahmismo o sacerdocio foi e é a herança de tribus ou de castas privilegiadas; no christianismo, porém, o sacerdocio acceitou sempre homens de todas as condições e hierarchias. Desde a dignidade do metropolita até ás humildes funcções do ostiario, que situação houve ou ha na igreja, a que igualmente não houvessem ou não hajam de ser chamados o nobre, o burguez, o filho da plebe? E todavia o clero foi por seculos a mais poderosa aristocracia conhecida. As tradições de influencia e predominio do corpo ecclesiastico perderam-se, alteraram-se acaso, porque não era a hereditariedade do berço que as mantinha? Não era e não é o corpo do clero a negação da familia, e por consequencia da hereditariedade? Houve nunca, especialmente durante a idade media, uma classe social mais compacta, mais distincta das outras, com interesses mais exclusivos, com uma acção collectiva mais irresistivel e incessante na vida das nações? O clero que combatia nos campos, nas conspirações, e nos parlamentos contra o poder central; que não raro o fazia ceder, e que o esmagava algumas vezes, valia bem mais do que essa fidalguia hereditaria dos ultimos seculos, que vivia das migalhas distribuidas pela côroa, e que, sem iniciativa nem vigor, comprava com genuflexões nos paços do rei a altanaria que ostentava nas ruas e praças do povo. Parece-nos evidente que a aristocracia, ao passo que é indestructivel como elemento social, é no concreto e em relação aos individuos essencialmente pessoal e por consequencia movel. Assim, na sua manifestação politica, não pode perder esse caracter que lhe é essencial. Pouco tardará a epocha em que a razão triumphe das preoccupações, a realidade de hoje das tradições de uma sociedade que deixou de existir. O pariato deve tornar-se em breve simplesmente vitalicio e talvez amissivel. Dado e não concedido que a existencia dos vinculos fosse uma condição impreterivel do pariato hereditario, a abolição d'elles não faria senão apressar n'esta parte convenientemente a reforma das instituições politicas. VI *Os vinculos garantia de liberdade* Demonstrado, como parece, que nem na abrogação do direito vincular se offende principio algum de justiça absoluta, nem a manifestação politica das desegualdades sociaes está ligada á existencia dos vinculos, antes de entrar nas difficeis questões economicas que este debate suscita, passemos a examinar o que ha mais grave nas objecções politicas que se offerecem contra a abolição d'esta fórma especial de propriedade. As considerações sobre as resistencias, que uma aristocracia territorial permanente e hereditaria pode oppôr ás demasias de um poder central excessivamente forte, parecem-nos fundadas, e nunca se poderão desprezar, em quanto o nosso systema administrativo fôr, como é, uma copia, mais ou menos mal delineada, do systema administrativo da França. Na verdade hoje a unica resistencia séria, que os abusos do executivo e dos seus delegados podem encontrar em certas provincias, é a d'essa especie de aristocracia rural, que vulgarmente se designa pelo nome de _cavalheiros_. A illustração e a riqueza, não excessiva mas solida, consistindo geralmente em bens territoriaes, pertencem principalmente a esta classe nos districtos do norte do reino, onde predomina quasi exclusivamente a pequena propriedade. Sem a fundação de municipios assaz vastos e poderosos, mas organisados de modo que a vastidão do territorio não faça com que a administração se difficulte aos administrados; sem as magistraturas municipaes recuperarem a força primitiva que successivamente perderam; sem um novo methodo de renovação d'essas magistraturas, que mantenha na administração dos concelhos a sequencia e unidade de systema e de idéas; sem se lhes restituirem as funcções que lhes são proprias e que a centralisação lhes traz alheadas; sem, em summa, restaurar a vida municipal, de que resta apenas um vão simulacro; o correctivo contra os abusos do poder central só pode consistir nas resistencias legaes e pacificas dos individuos que, pelo respeito tradicional do povo ao nome da sua familia, pelos recursos materiaes de que dispõem, pela maior cultura intellectual, pelos instinctos generosos que lhes inspira uma educação mais elevada, constituem um elemento poderoso de equilibrio. Quem tem residido nas provincias do norte ou por ellas viajado sabe que naquella classe é que principalmente se dão essas condições de superioridade individual, que suppre até certo ponto nas relações politicas a falta ou o incompleto das instituições locaes. É preciso notar aqui um facto, que ao diante havemos de ponderar mais detidamente. Os vinculos nas provincias do norte não tem em geral os mesmos caracteres que nas provincias do sul: aproximam-se mais, nas suas condições economicas, dos bens emphyteuticos, e não é raro achar individuos que se denominam morgados e que não passam de possuidores de prazos. Tão facil é neste ponto a confusão das cousas pelos accidentes externos. Em geral, o vinculo dos districtos do norte ou é instituido em uma ou mais propriedades de mediocre grandeza, ou em propriedades e em direitos dominicaes. Mas o que em todo o caso se pode affirmar é que as grandes fortunas vinculares são raras. Os poucos inconvenientes economicos dos vinculos mediocres havemos de avalial-os n'outra parte. Para o intuito presente o que importa é attender ás consequencias politicas da sua abolição. Ou mediocres em si, ou compostos de diversas e pouco vastas propriedades, e de censos e pensões senhoriaes, entrando esses vinculos no direito commum, as leis da successão e os accidentes da vida, que accumulam ou dissolvem mais rapidamente as pequenas do que as grandes fortunas, fariam desapparecer em breve a aristocracia provincial, e por conseguinte um poderoso elemento de resistencia ás demasias da auctoridade central, e uma importante garantia de liberdade. Mas, dir-se-ha, assim como a desvinculação, o livre movimento da propriedade, produziria a dissolução das fortunas e das familias patricias, tambem esse movimento elevaria, como já eleva, outras familias, crearia, como já cria, outras fortunas, e uma especie de aristocracia movel e pessoal substituiria a hereditaria como elemento de resistencia e equilibrio. Em these a resposta é concludente: o que não tem é applicação á hypothese. 'Nesta, o argumento a favor dos vinculos estriba-se em factos transitorios e especiaes, factos que só o tempo e os progressos sempre lentos da civilisação moral e material podem destruir. De certo os vinculos não são de um modo absoluto obstaculo ás demasias do poder nesta especie de organisação plethorica, de apoplexia administrativa eminente em que vivemos. São-no relativamente. A restauração da vida municipal, a descentralisação bem caracterisada; seria o remedio natural e completo contra os excessos do executivo. Com elle, não só a aristocracia permanente e hereditaria, mas tambem a individual e movel seriam inuteis como obstaculos ou instrumentos de equilibrio. Mas tracta-se do presente, e no presente as condições da nossa sociedade dão todo o valor ás considerações politicas em que os defensores dos vinculos estribam a manutenção delles. A riqueza maior ou menor não basta para que o cidadão saiba, queira e possa defender o seu direito ou erguer a voz a favor do opprimido. É necessario que a educação o habituasse a uma nobre altivez ou á independencia moderada mas firme do homem livre, e que a cultura do intendimento o habilitasse para discernir e apreciar os proprios direitos e deveres, e os direitos e deveres dos agentes do poder. Ora esses dotes, nos districtos da Beira, Traz-os-Montes e Minho, dão-se principalmente entre os cavalheiros, que, alem das idéas que lhes inculcam na educação domestica, frequentam de ordinario os estudos juridicos, e que, ainda abandonando a cultura das letras, não perdem nunca, digamos assim, o verniz litterario e as idéas geraes que adquiriram na universidade; porque a universidade, com todos os seus defeitos, ainda é o foco d'onde irradia a luz da civilisação intellectual para a maxima porção do paiz. Os advogados, os facultativos, um certo numero de ecclesiasticos, e os administradores de vinculos, constituem quasi exclusivamente a classe illustrada das provincias sertanejas. Na verdade, o filho de um ou de outro lavrador mais abastado, de um ou de outro industrial ou commerciante, recebe a educação universitaria, e despido de ambições honra-se de seguir a condição paterna; mas o geral d'estes busca na carreira das letras uma situação mais elevada ou pelo fôro ou pela medicina ou pelas funcções publicas. Os possuidores de direitos territoriaes ou de predios assaz consideraveis para não serem obrigados a cultival-os pelas suas proprias mãos, e para não procurarem um supprimento de renda pelo exercicio de uma profissão scientifica, são quasi unicamente os administradores dos vinculos. 'Nelles reside, por tanto, e residirá por muito tempo a principal força de resistencia, a quasi unica barreira que encontra uma centralisação excessiva. Nos districtos sertanejos, nesses tractos do paiz onde vive a maxima parte da sua população, só muito excepcionalmente apparecem os grandes capitaes monetarios, as grandes industrias, o grande commercio, e, como já dissemos, nos do norte até é rara a vasta propriedade. Não ha, por consequencia, ahi as poderosas influencias pessoaes que resultam de factos puramente economicos. As grandes influencias só podem proceder de se darem no mesmo individuo condições de diversa ordem--a superioridade da intelligencia, a superioridade da fortuna, a superioridade de um nome illustre que o povo está costumado a venerar, e a elevação de animo resultado da educação domestica, elevação de que é consectario o valor civil indispensavel para defender a liberdade e os outros direitos, ou proprios ou dos pequenos e humildes. Com a ruina das familias nobres essas influencias salutares desapparecerão quasi completamente, e o imperio das portarias e das circulares não achará limites. O celebre dr. Johnson, fallando das substituições inglezas, dizia que tinham a vantagem de não produzirem senão um tolo em cada familia. O dr. Johnson fazia um epigramma de mau gosto, porque era falso. A historia diplomatica, militar, naval, administrativa e parlamentar da Inglaterra prova que os primogenitos da aristocracia ingleza podem ser tanto homens grandes como os segundo-genitos, ou como os filhos da raça puramente saxonia. Entre nós o epigramma do dr. Johnson é uma preoccupação popular, preoccupação que invade até espiritos que tinham obrigação de serem superiores a ella. A idéa da incapacidade dos administradores de vinculos é tão verdadeira como a da ignorancia e imbecilidade mental dos cistercienses, que não eram nem mais ignorantes nem mais imbecis do que outros quaesquer frades. Os que tem visitado os districtos interiores do reino sabem por experiencia que é no seio das familias aristocraticas onde se encontram mais vestigios do que o antigo caracter portuguez tinha generoso, elevado e bom, e onde se acha mais illustração, embora misturada com os preconceitos nobiliarios. É nessa categoria que predomina uma benevolencia efficaz e real para com as classes inferiores, benevolencia muito mais rara entre a duvidosa burguezia saída d'essas mesmas classes. Esta burguezia das provincias, considerada em geral, está longe por emquanto de ser uma forte barreira aos excessos da auctoridade central. Os seus destinos politicos tem de ser grandes quando existirem no paiz instituições congenitas com a indole das tradições primitivas d'elle; quando nos cançarmos de traduzir _ad usum_ administração franceza em portuguez bastardo. Por emquanto faltam-lhe os principaes elementos dos que constituem a força da opinião e o espirito publico; falta-lhe a cultura intellectual, que nos habilita para irmos até ás raias do nosso direito sem as ultrapassar; falta-lhe o orgulho da independencia, que está principalmente na consciencia e no caracter. Tudo isto tem excepções, e excepções notaveis; mas fallamos da regra geral. A burguezia mais ou menos opulenta das provincias, e sobretudo dos districtos do centro e do norte, forma-se pela pequena industria, pelo commercio de retalho, e pelos mediocres grangeios agricolas. Fóra das duas cidades mais populosas, as grandes fabricas, as vastas emprezas commerciaes, em summa, as applicações de avultados capitaes e a existencia d'estes na mão de um individuo, são cousas raras. Mas é acaso de esperar d'aquelle, que começou obscura e quasi pobremente a edificar uma fortuna modesta pelo trabalho, pela parcimonia, pelos habitos da obediencia passiva, quasi da subserviencia, sem educação politica, sem educação litteraria, sem idéas geraes, e que depois de vinte ou trinta annos de esforços, de prudencia, de abnegação, de sacrificios moraes e materiaes, creou uma riqueza, que aliás poderia servir-lhe de esteio, e inspirar audacia para manter a dignidade e independencia de cidadão de um paiz livre; é de esperar, dizemos, de tal homem que lhe chegue tão tarde o sentimento e a convicção profunda do seu direito e o valor politico para o fazer respeitar do poder? Que o leitor busque a resposta na sua razão, e, ainda melhor, na sua experiencia. Para nós é grave, pois, a questão da existencia ou não existencia de uma especie de aristocracia provinciana, que tenha, em geral, por titulo da sua preponderancia o nome, a educação, e a fortuna, em quanto o municipio fôr entre nós pouco mais de que um vão nome, ou de que uma tapeçaria das salas administrativas. É grave essa questão, porque são ainda graves, ao menos para nós, as questões da liberdade e da dignidade humanas. Quando as resistencias d'essa aristocracia aos excessos a que tende naturalmente uma centralisação exaggerada fossem demasiado egoistas, e nunca servissem de egide ás classes democraticas desorganisadas e opprimidas, quereriamos mantel-a como protesto, como laço entre as tradições do passado e a organisação do futuro. Se a historia serve para alguma cousa, lembremo-nos de que o absolutismo se erguia em Portugal á altura de uma instituição quando a um chefe da aristocracia do paiz rolava a cabeça pelo cadafalso, e outro cahia apunhalado aos pés d'aquelle monarcha, tão caro a uma democracia inintelligente, que substituiu a vontade real, como principio politico, ao rude esboço de monarchia representativa com que a sociedade portugueza vivera e progredira durante mais de tres seculos. Diminuir as resistencias individuaes ao absolutismo do executivo, em quanto se não criam resistencias collectivas, é um erro profundo. Direitos, que não tem força para se traduzirem em factos, são, por nos servirmos de uma phrase de Shakespeare, palavras, palavras e mais palavras. São isto, e nada mais. VII *Difficuldades moraes e economicas na abolição dos vinculos* Se considerações de ordem politica parece aconselharem a manutenção temporaria dos pequenos mas numerosos vinculos das provincias do norte, na questão practica da abolição da propriedade vincular suscitam-se dificuldades de ordem economica e de ordem moral, que tendem indirectamente a manter uma instituição, a qual, absolutamente considerada, não tem motivo nenhum racional de existencia. A apreciação d'essas difficuldades deve influir nas resoluções que se hajam de tomar sobre tão grave assumpto. Supponhamos que abolimos os vinculos; que fazemos entrar essa parte de propriedade territorial no direito commum; que lançamos esse capital immobilisado no vortice das evoluções economicas, fazendo-o mover livremente por toda a esphera da sua acção. Foi, em these, um melhoramento social importante. Falta o modo practico de conseguir esses resultados salutares. A lei proclamou que o principio vincular pereceu; que o direito commum rege toda a propriedade. Mas não basta proclamar a regra geral: é preciso ver o modo de a applicar aos factos. Quaes são estes factos? Até agora havia certa especie de propriedade, em que uma porção de dominio pertencia não sabemos a quem (porque o considerar como co-proprietarios os _successores_, entidades contingentes, não passa de uma subtileza juridica), e outra porção d'esse dominio, que se confunde quasi com o usofructo, pertencia a um individuo chamado administrador de morgado. É esta fórmula da propriedade a que deixou de existir. O administrador do morgado passou a ser proprietario d'aquillo de que era pouco mais que usufructuario: pode hypothecar, doar, vender, emprazar, testar, como outro qualquer possuidor de bens allodiaes. Este facto, porém, deve forçosamente produzir consequencias juridicas e economicas. A primeira é para o Estado. O Estado é sempre, ao menos potencialmente, um dos successores, mas successor que existe já, que não é uma entidade contingente. Extincta a linha chamada pelo instituidor, o herdeiro definitivo é o Estado, que não morre, ao passo que as linhas successorias vem mais tarde ou mais cedo a extinguir-se. Convertendo o vinculo em bens livres, a sociedade despojou-se de um direito em beneficio de um homem que não tem motivo nenhum especial para beneficiar. Os vinculos tem encargos pios, que, ou pela propria instituição ou por effeito de providencias legislativas, revertem muitas vezes em beneficio de instituições, cuja existencia as doutrinas economicas não podem condemnar. Seja qual for a resolução que se tome a este respeito abolindo-se os vinculos, ou a propriedade que se quiz fazer allodial ficará forçadamente censitica, ou serão espoliados os institutos de caridade. Embora os jurisconsultos considerem ou não os bens vinculados como hypotheca dos alimentos dos irmãos do administrador, o que é certo economicamente é que esses alimentos constituem uma renda, e que essa renda é representada necessariamente por um capital incluido na somma dos bens vinculados, porque as subtilezas juridicas não alteram a essencia das cousas. Desvinculados aquelles bens, ficarão as pensões dos segundo-genitos consideradas como onus e seguindo os bens atravez de todas as phases de venda, emphyteuticação e hypotheca? Qual será o valor de troca dos predios gravados por pensões cuja duração é indeterminada? Serão os segundo-genitos espoliados dos alimentos para tornar a propriedade inteiramente livre? Á luz economica, a utilidade real do administrador era poder, em quanto vivo, consummir a renda liquida do vinculo, excepto a parte destinada aos encargos. Rigorosamente, ao menos em grande numero de hypotheses, as pensões dos segundo-genitos representando uma renda e correspondendo a um capital estavam no caso da renda fruida pelo administrador. Porque, pois, não entregar aos segundo-genitos como allodiaes porções de bens ao menos equivalentes ao capital das respectivas pensões? Porque ha-de a lei favorecer desegualmente o mais velho convertendo-o só a elle em proprietario? Não repugna esse facto a um dos motivos que se invocam para a abolição--a desegualdade de direitos entre os irmãos? Desde que a lei reconhece que essa desegualdade é uma injustiça pode reservar a reparação d'ella para a geração seguinte? Mas juncto a este direito ha outro direito antinomico, inconciliavel com elle. É o do immediato successor. Salvos os raros casos da lenta devolução ao Estado, o vinculo sempre tem um successor immediato, porque a successão vai até o millesimo gráu de parentesco. O nascimento deu a esse individuo, quem quer que seja, o direito de succeder integralmente no morgado, embora onerado com alimentos. Desde que a obrigação de os solver cessar, por morte dos pensionistas ou por outra qualquer circumstancia, a fruição d'essa parte da renda liquida será sua. Se, reduzidos os bens vinculados a allodiaes, uma parte d'esses bens tiver passado aos irmãos do antecedente administrador, elle será espoliado do seu direito n'essa parte pela lei. Estatuindo-se, porém, que a applicação d'esta sómente se verificasse por morte do administrador actual, evitar-se-hiam esses inconvenientes? Não por certo. O direito do successor existe já durante a vida do administrador. Como pois serão partiveis os bens entre elle e seus irmãos sem offensa grave do anterior direito, sem uma espoliação? Na verdade, em relação á sua legitima elle passa a possuir com pleno dominio; mas servir-lhe-ha isso de compensação ao que perde? Estribado n'um direito que as leis lhe garantiam, achou-se collocado n'uma situação social accorde com os seus futuros recursos. Educação, habitos, profissão, relações de familia, tudo foi calculado para elle ou por elle á luz d'esse direito. Sem culpa sua, a sociedade retira-lhe, digamos assim, a base da sua vida civil. Será isto justo? A lei que proclamou como iniqua a indivisibilidade dos vinculos, e que todavia a manteve em beneneficio do administrador, no momento em que a morte d'este chama o successor a uma situação perfeitamente identica cessa de tolerar a iniquidade que tolerou até ahi. Removendo o facto da abolição para a epocha da morte do immediato successor, uma parte d'estes inconvenientes da ordem moral poderiam evitar-se; mas nem se evitariam todos, nem a abrogação do principio vincular teria grande importancia. Apenas indicámos aqui uma parte das difficuldades que cumpria resolver, conforme á consciencia e á justiça, em relação á familia. Muitas se apresentariam ainda quando a transformação do direito e do facto houvessem de verificar-se n'uma epocha mais remota. Legislar, porém, sobre factos economicos, que só poderiam realizar-se depois de quarenta ou cincoenta annos, parece-nos absurdo. Suppondo a media da vida humana de 30 annos, e portanto a media da vida que resta aos administradores actuaes de 15, pode tambem calcular-se a media da extincção de todos os administradores e immediatos successores em 45 annos. O que é incalculavel é o progresso que terão feito n'este periodo as idéas politicas e economicas, e a relação em que estaria uma lei actual de desvinculação com essas idéas e com o estado da sociedade: podendo-se affirmar, sem receio de erro, que no fim de tão largo periodo uma tal lei seria obsoleta antes de ser applicada. Depois, a solução da questão dos vinculos é uma instante necessidade. Este modo de ser da propriedade, conservado sem modificação, embaraça profundamente o progresso economico, ao menos n'uma parte do reino. Veremos adiante como a nossa situação exige que se pense attentamente na maneira por que a população está distribuida pela superficie do paiz, e o movimento que cumpre dar á translação e divisão da propriedade rustica. Os vinculos são um grande obstaculo á satisfação d'essa necessidade, e o unico modo legal de desvincular a propriedade--a subrogação--não corresponde ás exigencias da situação presente, antes a contraría como teremos occasião de observar. Mas a jurisprudencia que regula as subrogações é sobretudo immoral e antieconomica. A subrogacão faz-se, em regra, por inscripcões ou apolices de divida fundada, e o que se exige n'esse contracto é o equivalente não do capital mas da renda. A renda media da propriedade territorial não excede a tres por cento, em quanto a das inscripções é, ainda hoje depois de reduzido o juro, de seis a sete por cento, visto que o valor nominal das apolices é mais que duplo do seu valor de mercado. Assim 47$000 réis em dinheiro, convertidos n'uma apolice de cem mil réis, crearão uma renda de 3$000 réis; em quanto, convertidos em propriedade territorial, apenas darão 1$410 reis. Trocado por inscripções o predio, resta portanto um capital de mais de metade do valor d'esse predio, de que o administrador de vinculo parece poder livremente dispor. Como, porém, taes actos para serem válidos necessitam da acquiescencia do successor do vinculo, cumpre repartir com elle: e se o successor é menor, recorre-se não raro á corrupção para obter o consentimento dos seus tutores e curadores; porque a subrogação por inscripções é sempre para elle um mal. O remanescente divide-se de ordinario entre o novo proprietario e o administrador; porque, em regra, semelhantes transacções são feitas debaixo da pressão de necessidades urgentes: o luxo, o jogo, as devassidões, a miseria são as mais das vezes os conselheiros d'estes deploraveis negocios, e a situação mais ou menos apurada do possuidor do vinculo determina as deducções mais ou menos fortes a favor do capitalista. Raras vezes acontece reverter integralmente o agio da transacção em beneficio do primeiro. A lei em que se estriba esta especie de contractos não pertence á nossa epocha. É o alvará de 13 de maio 1797, que permitte a subrogação por apolices. Semelhante meio de aggredir as instituições vinculares não é uma transacção entre o passado e o futuro, porque estas podem e devem fazer-se quando grandes e radicados interesses se oppõem a uteis innovações: é apenas uma astucia indigna de figurar na jurisprudencia de nações livres. Se entendeis que não existe outro meio de libertar a terra vinculada se não destruindo absolutamente os vinculos, matae-os, mas não os _assassineis_. Os expedientes da timidez são os peiores de todos. N'este meio capcioso não ha, porém, só isso: ha outros inconvenientes não menos graves. É o primeiro o jogo de bolsa, a agiotagem dos fundos publicos feita pela lei; é a creação de um elemento de falso credito. Milhares de contos de inscripções, procurados successivamente no mercado, e procurados para se amortisarem, para não voltarem a elle, tem contribuido e contribuem de certo para a elevação do preço dos titulos de divida fundada. Mas essa elevação, que em regra é um indicio de credito, deixa de o ser n'este caso, porque a procura significa, não a confiança, mas a necessidade creada pela lei. Na compra pelo capitalista e na venda immediata que este faz ao administrador de vinculo a troco da propriedade territorial, ao primeiro não importa o que lhe custam os titulos que compra, nem a sua futura depreciação, em quanto o segundo, indifferente até certo ponto a isso, visto que só lhe interessa a manutenção do juro e a regularidade do pagamento d'este, considera como uma vantagem o trocar a propriedade por titulos o mais depreciados que for possivel, porque maior será o seu lucro individual n'aquella operação, operação que desmente as leis do mercado, por isso que é essencialmente viciosa. A procura dos fundos publicos, resultado de especulações livres, podendo, em resultado de outras especulações, converter-se brevemente em offerta, não incita os governos a abusarem do credito; ao passo que a procura das apolices para subrogações é um incitamento para novas emissões, e portanto um meio de facilitar o augmento da divida do Estado. Averbadas nos titulos dos vinculos, essas inscripções immobilisaram-se, e o governo pode ir substituindo-as gradualmente com diversos pretextos, sem que o mercado se resinta, ao menos de um modo facil de appreciar, do augmento da divida publica. Por ventura esse unico pensamento explica o alvará de 1797. Não são os administradores de moderados vinculos, que os cultivam por si proprios em todo ou em parte, e a quem o modico rendimento d'elles obriga a viver longe dos grandes centros da população e do luxo, os que de ordinario recorrem a estas transacções deploraveis. São, por via de regra, os donos de grandes casas, os cortesãos, os titulares, os homens para quem os habitos de uma vida dissipada ou luxuaria se converteram em segunda natureza, os opulentos possuidores dos vastos predios do sul, incapazes não raro de se dedicarem a uma administração complicada e trabalhosa, que mal se accommoda com a sua educação; são de ordinario estes, quando a desordem dos seus negocios os tem collocado em difficuldades insoluveis, que se precipitam na voragem das subrogações. Não faltam exemplos de ser o lavrador abastado, o proprio rendeiro do predio destinado á subrogação, quem se aproveita das circumstancias para se apoderar do solo onde exerce a sua industria. Succede isto quando elle casualmente vem, n'uma conjunctura de angustia, tentar com o cumulo das suas lentas economias a miseria ostentosa do administrador arruinado. 'Nesta hypothese o mal das subrogações é menor. Na verdade aquelle capital, accumulado por privações, por honestos e longos esforços, seria mais utilmente empregado em augmentar as forças productivas do solo; mas ao menos o industrial agricola consolida a propriedade com o trabalho, e as novas economias irão d'ahi ávante preencher fins mais positivos para a sociedade. É, todavia, commum esta hypothese? Não por certo. O desperdicio, o luxo, as noites febris do jogo, os affectos de bastidor, as vãs ambições da vaidade, os extravios de um sensualismo que a saciedade leva até o delirio; as paixões ruins em summa, que arruinam tantas familias das classes mais elevadas, só raramente consentem que nos cataclysmos das grandes fortunas vinculares aquella hypothese se verifique. É o cabedal monetario do especulador, a quem, não sabemos se com justiça, se dá o nome insultuoso de agiota, o que vai de ordinario trocar-se pela propriedade territorial. A razão é obvia. O capitalista está sempre prompto para empregar dinheiro n'uma transacção vantajosa, e elle sabe que o desleixo, a incapacidade, ou os vicios dos administradores dos vinculos são campos feracissimos para a especulação. Mas posto que a abolição completa dos morgados, ainda que fosse em virtude de uma lei irreflectida e imprevidente, valesse mais que a existencia d'elles com o systema da destruição lenta pelo meio indirecto das subrogações, é certo que a abolição traria tambem, em muitos casos, ou uma difficuldade insoluvel, ou uma vantagem para os mutuantes de capitaes, que não seria menos immoral do que as subrogações, porque equivaleria a uma espoliação dos mutuarios. Fallamos do que succederia a respeito dos vinculos, cujos administradores contrahiram dividas mais ou menos avultadas, ficando hypothecados á divida os rendimentos dos bens vinculares durante a vida d'elles, ou d'elles e dos immediatos successores, se os ultimos intervieram no contracto com o seu assentimento. Diz-se que a agiotagem mais infrene preside commummiente a esta especie de negocios. Cremos que nisto ha pelo menos exaggeração. De certo que o juro de ura emprestimo de tal ordem deve ser avultado; mas pode ser avultado sem ser excessivo. Não ha ahi só a renda do capital mutuado: ha um juro de risco. É evidente que a restricção legal de passarem livres aos successores os bens vinculados pode modificar de mil modos as condições do mutuo. Na hypothese de intervir no contracto o immediato successor, o risco é menor mas não deixa de ser grandissimo. A garantia é dupla, mas egualmente incerta: é a instabilidade de duas vidas em logar da de uma. Depois, a idade mais ou menos avançada do administrador do vinculo, ou d'este e do successor quando o successor intervem, os seus habitos de maior ou menor dissipação, a existencia de outras dividas, a deterioração dos bens vinculados e por consequencia a diminuição gradativa do rendimento; esses factos e dezenas de outros analogos determinam a maior ou menor elevação do juro em contractos que, considerados de um modo absoluto, seriam altamente usurarios, mas que as poucas probabilidades do pagamento integral talvez plenamente justifiquem. Mas como se representa esse juro de risco? Uma lei inepta, impotente sempre para impedir a usura, e que, taxando o lucro do capital, não discrimina as circumstancias que o devem fazer variar, fixa ao dinheiro determinado preço para todas as hypotheses. A necessidade, porém, e o capital são astutos: o capitalista e o administrador do morgado sabem como se illude a lei. O juro de risco representa-se no capital e no juro da parte nominal d'este. Quando se recebe uma somma, o contracto refere-se ao duplo; a mais ou menos, conforme o valor do dinheiro, a gravidade do risco, a necessidade do mutuario e a consciencia do mutuante. A transacção, respeitando na apparencia a lei, ludibria-a na essencia: sorte de todas as leis civis, que radicalmente contradizem as economicas. Qual é, porém, a consequencia d'estes factos, que constituem a historia da avultadissima divida que grava os vinculos? É que uma parte d'essa divida representa apenas um juro e juro de risco. No contracto que lhe deu existencia houve um verdadeiro jogo sobre um calculo de probabilidades. O capitalista arriscou-se a perder a somma que realmente emprestou, recebendo como premio no caso de amortisação o capital nominal, além dos juros legaes; a eventualidade d'esse premio equilibrou-se portanto com a possibilidade da não amortisação. Entre as vantagens e as desvantagens deu-se a mutua compensação. Desvinculae, porém, a propriedade vincular e sujeitae-a ao direito commum. Em relação ás dividas que pesam sobre ella violaes um contracto, irregular na verdade, mas irregular porque as leis que sanctificavam a exempção hereditaria dos vinculos, e as que fixavam o juro do emprestimo, o tornavam tal forçadamente. Supponde illicitas, criminosas as transacções d'esta especie: considerae, se quizerdes, o mutuante como usurario e o mutuario como prodigo. A desvinculação pune este e premeia aquelle. A divida nominal, escripta no contracto, é uma; a real é outra. O mutuante receberá, porém, ou por execução ou por outro qualquer modo, o valor expresso. O que terá desapparecido é a desvantagem do risco. A iniquidade é flagrante, e tem-se reconhecido que o é. Como meio de a evitar lembram-se varios arbitrios para restringir a acção do credor sobre os bens desvinculados. De todos esses arbitrios o mais simples e o que parece mais justo e exequivel é o de considerar taes bens como ainda vinculados em relação ás dividas contrahidas, limitando-se o direito do credor á percepção da renda, durante a vida d'aquelle ou d'aquelles que contrahiram o encargo, se n'este periodo não se verificar a amortisacão completa. Mas qual será o resultado d'esta nova situação d'aquella especie de propriedade? A quasi impossibilidade da alienação. Ninguem compraria um predio cuja renda está hypothecada por um periodo indeterminado (e a que, portanto, não se pode fixar o valor) senão por um preço infimo, que salvasse todas as eventualidades, e que o vendedor não acceitaria. A transacção só poderá effeituar-se com o proprio credor; mas este, certo de que é impossivel a competencia, ha-de levar as suas pretensões até onde chegar a possibilidade de se realisarem as vantagens que aliás lhe dá o proprio direito. Assim a transacção tem de ser forçosamente lesiva para o vendedor; lesiva a ponto de impedir a alienação, ou de se realisar a expoliação que se pretendera evitar. A consequencia ordinaria de tal arbitrio seria, pois, a immobilidade dos bens ainda depois de desvinculados; ou, por outra, a desvinculação pelo que respeita aos grandes morgados, sobre cujos redditos pesam avultadissimos encargos e que são os mais numerosos, não alteraria as principaes condições da sua existencia actual que justificam a abolição. O livre movimento do dominio territorial, a subdivisão da propriedade, o desenvolvimento da população e da cultura, o augmento das sizas; tudo isso ficaria, em regra, suspenso até á morte dos individuos pessoalmente responsaveis pelas dividas. É outra vez o adiamento, que parece tornar-se inevitavel desde que, partindo da idéa da abolição absoluta, se pretende legislar sobre a propriedade privilegiada, na qual o interesse publico exige modificações immediatas. VIII *Os vinculos considerados em relação á grande e á pequena propriedade, á grande e á pequena cultura* Antes de debater em relação a Portugal uma questão ventilada com ardor na Europa ha mais de um seculo, a da grande e da pequena propriedade, consideremol-a successivamente como resolvida em favor de um e de outro systema, e indaguemos que influencia possa exercer no predominio de um ou de outro a conservação ou a abolição dos vinculos. Vendo-os a esta luz, os que defendem a sua manutenção presuppõem a grande propriedade como ligada á grande cultura, e a grande cultura como preferivel á pequena. Os que sustentam a abolição presuppõem vantajosa a divisão indefinita da propriedade, embora acompanhada da pequena cultura, que em regra é a consequencia da subdivisão illimitada do solo, e ácerca de cujas vantagens variam as opiniões d'aquelles mesmos que mais ardentemente desejam a suppressão de todas as instituições tendentes a impedir a livre divisão do solo. Os que, preferindo os vastos predios e a grande lavoura aos pequenos casaes, cuja cultura principalmente se caracterisa pelo trabalho braçal, vêem nos vinculos um meio poderoso de manter o systema agricola que suppõem mais vantajoso, podem acaso invocar em seu abono os factos? Podem invocal-os os que pensam de modo contrario? Comecemos pelos exemplos do nosso paiz, que são os primeiros que nos importa estudar. Já n'outra parte nos referimos á differença profunda que se dá entre os vinculos das provincias septemtrionaes e os das provincias meridionaes do reino. Nos districtos do norte a constituição moral dos vinculos é a mesma dos vinculos situados nos districtos do sul; mas a sua constituição material é diversa. Em geral os vinculos do norte são constituidos, em relação á propriedade territorial, n'um maior ou menor numero de predios de dimensões taes que a designação de latifundios lhes seria inteiramente inapplicavel. São quintas, casaes, bouças, campos; nunca ou raramente uma granja, uma herdade analoga áquillo a que damos estes nomes nos districtos do sul. O senhorio directo de predios emphyteuticos e os censos completam para o administrador do morgado o cumulo da renda territorial. Todas as fórmas de exploração agricola se manifestam n'aquella multidão de propriedades vinculadas: a cultura directa, a parçaria, o arrendamento, o colonato. Discorrei pelo Minho. Certos edificios nas villas, nas aldeias, mais grandiosos, ornados de pedras-d'armas, hão-de revelar-vos a existencia de centenares de morgados: mas os campos e a sua cultura, as quintas e as suas dimensões não vos dirão nada; porque a allodialidade, a emphyteuse, o vinculo na sua influencia sobre a agricultura não imprimem aos campos caracteres especiaes que distingam estas diversas especies de propriedade, ou diversifiquem as culturas. Penetremos agora no Alemtejo, sobretudo no Alemtejo central e meridional. Como o Minho é o typo da propriedade e da cultura septemtrionaes do reino, o Alemtejo é o typo mais acabado da propriedade e da cultura meridionaes. As outras provincias são a transição entre os dous extremos. Como o Minho é a terra classica da subdivisão territorial, o Alemtejo é a terra classica dos latifundios. Grande parte d'estes latifundios pertencem a importantes morgados; mas o resto constitue geralmente propriedades allodiaes, sendo os prasos n'aquella provincia, em contradicção com o que succede no Minho, apenas uma excepção rara, e ainda assim caracterisados ás vezes pela indole geral da propriedade no Alemtejo--a extensão demasiada. Um systema de cultura uniforme é applicado ahi sem distincção aos predios livres e aos vinculados. Na Extremadura e na Beira occidental, mas principalmente na Extremadura, predomina a cultura media e a propriedade media, se exceptuarmos as margens do Tejo desde a Barquinha até perto de Lisboa, onde a extensão da propriedade, como na Beira-baixa, annuncia, por assim nos exprimirmos, a aproximação do Alemtejo. Mas, no meio de todos estes cambiantes nas dimensões dos predios rusticos, vemos os vinculos amoldarem-se a todas as fórmas de propriedade e de cultura, e amortizarem em si a quinta, o casal, a granja, o praso, a horta, o pinhal, o montado, a charneca interminavel; com a mesma facilidade com que se amoldam ás manifestações extremas da grande e da pequena propriedade e da pequena cultura. Que se infere d'estes factos? Que outras causas alheias á instituição vincular determinam a maior ou menor vastidão dos predios rusticos e o seu systema de grangeio. Umas são puramente historicas, outras juridicas, outras agronomicas, outras economicas. Não queremos dizer com isto que a instituição não influa, n'um ou n'outro caso, no facto de maior ou menor dimensão dos predios, e na sua situação agricola; mas cremos que de todas as causas esta é a menos importante. Desejariamos que os defensores da manutenção dos vinculos como garantia de grande propriedade nos explicassem a existencia dos vastos allodios do Alemtejo, a sua força de cohesão contra os effeitos do direito commum da successão, pelo engenhoso expediente dos _quinhões_, de que n'outra parte teremos de falar. Esses predios estão provando que não é necessario o principio vincular para impedir a disgregação das grandes propriedades rusticas; que o interesse individual bem ou mal avaliado, as condições do solo e clima, a natureza das culturas dependentes d'essas condições, o estado economico do respectivo districto, e, até, os habitos e preconceitos, podem assegurar a união de amplos tractos de terra, embora deixe de existir uma instituição que o espirito publico reprova, por motivos que, posto sejam especiosos ás vezes, são em grande parte subejamente justificados. Mas tambem quizeramos que os fautores da pequena propriedade allodial e da subdivisão indefinita do solo, que vêem na existencia dos morgados o principal obstaculo á realisação das suas idéas, nos explicassem como é que ao norte do reino a pequena propriedade se harmonisa tão facilmente com a instituição vincular, e ao sul a vasta propriedade passa indivisa de geração em geração ao lado dos latifundios vinculados: que nos dissessem se essas innumeraveis subrogações, pelas quaes se tem libertado a terra para se immobilisarem em logar d'ella titulos de divida fundada, tem influido na subdivisão do solo; e se, dando-se nos predios ainda actualmente vinculados as mesmas condições especiaes agronomicas e economicas que determinam a integridade dos allodios, elles esperam que pelo facto da desvinculação desappareçam nos bens de vinculo essas condições especiaes. A verdade é que, considerada nas suas relações agricolas, a grande propriedade não presuppõe necessariamente nem a grande nem a pequena cultura. Em rigor os vastos predios vinculados poderiam associar-se com ella e, ainda, chegar á extrema exaggeração que a torna um verdadeiro flagello das populações ruraes. Se o nosso paiz não offerece exemplos assaz geraes e evidentes d'esse facto, temol-os extranhos, mas decisivos. É a Irlanda que nos subministra o mais singular. A Irlanda antes das ultimas reformas, e da revolução produzida pelo _Encumbered Estates Bill_, era quasi exclusivamente um paiz de substituições (os morgados inglezes), e, se essa lei previdente de uma immensa liquidação produziu grandes beneficios, os males antigos ainda subsistem em larga escala[1]. Em nenhuma parte se acha tão perspicuamente descripta a associação da grande propriedade com a pequena cultura, e bem assim os effeitos que pode produzir essa associação, dadas certas circumstancias, como na passagem que vamos transcrever de um dos lilivros mais notaveis que se tem publicado na nossa epocha[2]. Posto que algum tanto extensa transcrevemol-a inteira, porque encerra outras idéas e outros factos que talvez não nos sejam inuteis na prosecução d'este trabalho. «Gerava enleio nos fautores exclusivos da vasta propriedade, diz Mr. de Lavergne, a ponderação do estado da Irlanda. Mais que em Inglaterra, mais até que em Escocia prevaleciam ahi os vastos predios. Proprietarios de glebas medianas ou pequenas só os havia nas cercanias das povoações de vulto, onde limitado trafico commercial ou limitada industria tinham favorecido a existencia de uma especie de burguezia. Dividia-se o resto da ilha em latifundios de 1:000 até 100:000 acres ou geiras inglezas. Quanto maiores eram as propriedades, maior era a decadencia d'ellas. As de mais extensa área estavam de cavallaria, como, por exemplo, o celebre districto de Connemara, no Connaught, chamado vulgarmente _Martin's Estate_. As substituições, mais communs na Irlanda que em Inglaterra, tornavam estes bens inalienaveis. O enleio para os que reputam a pequena cultura panacéa universal, não vinha a ser menor. Se a Irlanda era a terra da vastissima propriedade, era tambem a terra da pequenissima cultura. Não se contavam ahi menos de 300:000 casaes inferiores a dous hectares; 200:000 de dous a seis; 80:000 de seis a doze, e de doze para cima apenas 50:000. As leis de successão favoreciam estas divisões, ordenando que as proprias terras de arrendamento se dividissem entre os filhos do rendeiro, o que não era uma disposição van como em Inglaterra. Esta união da grande propriedade com a pequena cultura, que deu optimos resultados n'alguns pontos da Gran-Bretanha e da Escocia, deu-os pessimos na Irlanda. Parecia que os proprietarios e os lavradores se tinham ajustado para a ruina commum, estragando o instrumento da commum riqueza--o solo. Em vez do fecundo habito de residencia local, que caracteriza os proprietarios inglezes, os _landlords_ irlandezes, sempre ausentes dos seus predios, tiravam d'elles quanto rendimento podiam para o gastarem n'outra parte. Faziam arrendamentos a longo prazo, pelo mais alto preço possivel, a especuladores residentes em Inglaterra, e que eram representados por sub-arrendatarios, denominados _middlemen_. Imprevidentes e gastadores como todos aquelles a quem o dinheiro não custa a ganhar, e não tendo, por não saberem applicar algum a tempo e horas nos respectivos predios, senão redditos incertos e precarios, dispendiam sobre posse, e as dividas absorviam-lhes por fim a maior parte da sua supposta fortuna. Do mesmo modo os _middlemen_, só empenhados em accumular lucros sem dispender real e descuidados do futuro, não tendo com a cultura em si nenhuma relação directa e pessoal tinham sublocado a terra até o infinito. A população rural multiplicada excessivamente, visto que subia a 60 almas por hectare proximamente, ao passo que em França sobe apenas a 40, em Inglaterra a 30, e na Escocia baixa a 12, accommodava-se aos seus intuitos. Havia-se creado uma concorrencia extraordinaria entre os cultivadores para obterem porções de terra. Tanto cabedal possuiam uns como outros, e por isso os meios de lançarem em praça eram eguaes para todos: o que cada chefe de familia queria era adquirir algumas nesgas de terra para cultivar com a familia. Assim se desenvolvera o systema das pequenas locações, a que chamaram o _cottiers system_, que não será precisamente mau em si se não se exaggerar. Além de dispensar o capital, quando o não ha, substituindo-o pelo trabalho braçal, tem a vantagem de supprimir a entidade a que propriamente se chama jornaleiro, isto é, o individuo que vive só da procura de trabalho e sujeito ás suas variações. A dizer a verdade, em Irlanda havia pouquissima gente assalariada: os que n'outras partes seriam jornaleiros, vivendo do jornal diario, eram alli pequenos rendeiros. Mas tudo tem limites, e era o que não acontecia na divisão dos grangeios, em razão do numero sempre maior dos concorrentes. Os caseiros tinham a principio obtido casaes, onde uma familia podia, rigorosamente fallando, viver e pagar a renda: dividiram-se estes casaes primeira, segunda e terceira vez, ale que se chegou ás 600:000 glebas de menos de 6 hectares, ou, por outra, á extremidade de não ter o cultivador senão o estrictamente necessario para não morrer de fome, e de importar a menor quebra no volume da colheita primeiro a impossibilidade do pagamento da renda, e a final a morte do proprio rendeiro.» O exemplo da Irlanda é uma demonstração estrondosa da inutilidade dos vinculos para manter pela grande propriedade a grande cultura: prova que, onde se derem causas efficazes para que a pequena cultura prepondere, os vinculos, longe de lhe pôr obstaculos, a deixarão ir até á extremidade em que é um verdadeiro mal, mal que egualmente pode resultar do fraccionamento excessivo da propriedade allodial. Se os vastos predios vinculados nas provincias meridionaes de Portugal não nos dão o espectaculo que nos offerece a Irlanda, é porque nas nossas provincias do sul escaceia a população rural, e falta quem, impellido pela fome, vá disputar a outro miseravel como elle algumas nesgas de terra: é que o sul do reino, sobre tudo o Alemtejo, acha-se em grande parte deserto. Se assim não fosse, a existencia dos vinculos não obstaria de certo a que a procura excessiva da terra, compensando pela elevação da renda parcellaria as desvantagens da divisão dos grandes predios, trouxesse a pequena cultura, não com os seus caracteres beneficos, mas com aquelles que tornam fatal o seu predominio illimitado. IX *Objecções fundadas contra os vinculos* As precedentes considerações parece-nos terem provado duas cousas: terem provado que a abolição dos vinculos nem é facil, nem deixa de trazer serios inconvenientes; e ao mesmo tempo que as vantagens, attribuidas a esta instituição pelos seus defensores absolutos, são em grande parte imaginarias. A aristocracia, a manifestação das desegualdades sociaes, como ella é possivel n'este seculo, vimos que não precisa d'esse meio artificial para se manter, porque deriva das condições impreteriveis da sociedade; mas tambem vimos que a conservação dos pequenos vinculos é o correctivo temporario a uma organisação administrativa que vicia as instituições politicas e que attenta pela força da propria indole contra a liberdade. Em nosso entender tanto os que combatem os vinculos como os que os defendem partem, talvez involuntariamente, de preoccupações oppostas que não os deixam apreciar desapaixonadamente o merito da questão. Tanto uns como outros cedem mais ao affecto do que aos frios calculos da razão. Os vinculos representara o passado: são um resto do edificio social desmoronado, cuja completa demolição julgam commummente indispensavel os homens das novas idéas. Para estes os vinculos devem desapparecer, porque são uma tradição, um memento da antiga monarchia e de uma sociedade affeiçoada por ella. Mas é justamente por isso que os seus adversarios querem amparar o que resta em pé do edificio, ou que, indo mais longe na irreflexão da saudade, desejariam não só conservar este, mas tambem colligir de novo todos os outros materiaes dispersos que servissem para o reconstruir. Este modo parcial e indiscreto de apreciar um facto economico e social conduz forçosamente a conclusões absolutas e extremas; mas as conclusões absolutas trazem a impossibilidade de uma transacção, e nós não consideramos nenhuma solução da contenda como util e possivel senão a que resultar de uma transacção entre idéas oppostas e oppostos interesses. Não a consideramos como util sem uma transacção, porque a abolição radical e completa traria os graves inconvenientes que em parte ficam ponderados, e que aliás estão longe de provar que a existencia dos vinculos é ou foi proveitosa. Não a consideramos como possível, porque, ferindo interesses poderosos e preoccupações arreigadas, estes interesses e preoccupações seriam obstaculo perpetuo a uma lei definitiva sobre o assumpto. N'uma epocha revolucionaria, como a de 1832 a 1834, a abolição completa teria sido exequivel. As idéas e os interesses oppostos eram obrigados a calar-se diante da voz omnipotente da revolução. O tempo teria absolvido as injustiças relativas e os males parciaes pela importancia dos resultados. N'essa epocha, porém, de grandes ousadias, não se ousou tanto, e apenas se manifestou a guerra aos vinculos pela condemnação dos pequenos morgados; d'aquelles a que menos quadravam as accusações que se podiam fazer contra esta especie de propriedade. Dir-se-hia que n'essa conjunctura, em que a sociedade e a monarchia se transformavam, só se tivera presente o pensamento da lei de 3 de agosto de 1770, que consagrava a amortisação dos latifundios como meio de conservar uma opulenta aristocracia hereditaria que cercasse de falso brilho o throno de um rei absoluto. Se, porém, os homens gigantes d'então, ardentes nas suas crenças, implacaveis contra o passado, capazes de combater energicamente pelas proprias idéas, armados de uma dictadura erguida em campos de batalha e baptizada em pegos de sangue; se esses animos feros de uma epocha singular, que provavelmente não achará tão cedo outra que a offusque ou que sequer a valha, tocaram apenas timidamente no collosso vincular por um acto de dictadura sem vigor e sem originalidade, poder-se-hão agora, no meio de uma geração de estatura politica sobradamente modesta, encetar luctas de idéas exclusivas e inexoraveis? As fileiras dos antigos pelejadores, cujo ardor aliás se acha enfraquecido pelo cansaço, rarearam-nas os annos, e os novos não tem braços assaz robustos para o combate. Hoje chama-se á tibieza tolerancia, e aos calculos do egoismo e da pusillanimidade civilisação. Os velhos interesses e as velhas preoccupações tem voz e voto, preponderante ás vezes, nas cousas publicas. Os tumultos, as luctas das facções, as guerras civis são ainda possiveis: as revoluções não. Para isso requer-se que nas veias dos homens haja sangue, no coração crenças, e na sociedade seiva moral. D'este estado de cousas deriva a necessidade das transacções entre idéas e interesses oppostos seja qual for a sua legitimidade. Independente de quaesquer circumstancias, o que existe tem sempre grande força contra a innovação; mas tem-na, sobretudo, nas epochas em que a descrença e o intorpecimento, por assim dizer, epidemicos, invadem os espiritos. Por mais terminantemente que a opinião condemne os vinculos; por mais poderosamente que uma ou outra intelligencia os combata, a inercia, o desanimo, a indifferença hão-de dar uma força de resistencia quasi invencivel a essa instituição, que aliás podia, não sanctificar-se pela sua origem ou legitimar-se pela sua indole, mas defender-se com razões mais ou menos plausiveis na sua manutenção. Que nos cumpre, pois, fazer, se quizermos chegar a um resultado practico e exequivel na questão dos vinculos? Não é combater radicalmente a sua existencia: é combater o que n'elles ha evidentemente nocivo. O facto de certa qualificação nobiliária ser dada a certos individuos não perturba a sociedade a que elles pertencem. Sabemos por experiencia o que valem e o que podem essas qualificações. Mui pouco importa egualmente ao bem commum que o juro de um determinado capital, a renda ou aluguer de qualquer instrumento de producção se transmitta por testamento ou _ab intestato_ a este ou áquelle, a um ou a mais individuos na successão das gerações. O que importa é que esse capital ou esse instrumento se não inutilise; que se adapte, ao menos na maior parte dos casos, a todas as necessidades, a todas as mudanças, a todas as transformações do progresso economico. Obtido isto, a conservação ou não conservação dos vinculos é uma questão que perde a maior parte da sua importancia, e que até se ha-de tornar assaz insignificante para deixarmos sem receio aos vindouros o encargo da sua solução final. A EMIGRAÇÃO 1873-1875 I *Val-de-Lobos, dezembro de 1873.* Ex.^{mo} sr.--Meu amigo, recebi no dia 9 d'este mez uma carta de v. ex.^a, acompanhando o questionario que no dia 18 deve servir de assumpto a uns debates na associação agricola de Lisboa. N'essa carta pede-me v. ex.^a a minha opinião ácerca dos quesitos especificados n'aquelle papel. São elles de duas especies: quesitos relativos a factos, quesitos relativos a doutrina. Quanto aos de facto, sobre a maior parte d'elles as noções que tenho são incompletas e pouco seguras: quanto aos de doutrina, e ainda aos de factos em que me reputo melhor instruido, um voto fundamentado sobre tão espinhosas e complexas questões exigiria um livro, que mal coubera em razoavel volume. Delineal-o e escrevel-o n'uma semana excederia as raias do possivel, não digo para a minha capacidade, mas para a maior capacidade do mundo. É verdade que v. ex.^a pede-me apenas reflexões ao correr da penna; mas em assumptos tão serios, basta o amor proprio para nos induzir á circumspecção, e a consciencia força-nos a tel-a, quando a nossa opinião, por ser nossa, como v. ex.^a tão benevola como inexactamente pensa a meu respeito, pode exercer certa influencia em outros espiritos. Assim, desejando por um lado cumprir os preceitos de v. ex.^a, e por outro evitar, quanto possivel, uma grave responsabilidade, direi successivamente o que me occorrer sobre o questionario, se e quando outras occupacões impreteriveis me derem logar a isso e v. ex.^a tiver animo para malbaratar alguns minutos em decifrar as minhas rabiscas. A estreiteza do tempo apenas me consente fazer n'esta carta algumas reflexões sobre o preambulo d'aquelle papel; e ainda, pelo que a estas respeita, espero que nem v. ex.^a nem ninguem dê a idéas tão mal elaboradas mais valor do que na realidade tem. Resulta do preambulo do questionario que o debate, que vai abrir-se na annunciada reunião, tem por alvo principal considerar o assumpto da emigração para a America á luz da connexão que tal facto possa ter com os interesses agricolas. Parece dar-se por provado que as difficuldades, mais ou menos graves, da nossa agricultura procedem unicamente da falta de braços, e da elevação dos salarios, elevação que se presuppõe derivada exclusivamente d'essa falta, e esta, não da _insufficiencia_ dos braços em relação a uma _procura crescente_, mas da sua _diminuição_ por effeito da emigração, que se inculca, talvez por obscuridade de redacção, como vulgar em todo o reino. A discussão terá, pois, por fim averiguar quaes os meios de evitar a emigração do homem de trabalho para fóra do reino, e de fazer com que a torrente d'ella se derive das provincias mais populosas para as menos populosas, sobretudo para as solidões do Alemtejo. Estou plenamente de accordo em que se empreguem todos os meios razoaveis e liberaes, para promover um movimento da população do norte para as provincias do sul, especialmente para o Alemtejo, e para reter na patria as classes trabalhadoras dos districtos insulares. Mas o que não posso é sentir essa repugnancia absoluta, esses terrores profundos, illimitados, da emigração, e o desejo de obstar a ella só para obter salarios baratos para a agricultura. A emigração é um phenomeno complexo nas suas causas, condições e resultados. Emigram uns por calculos e previsões, ou proprios ou dos que os dirigem, pela esperança, bem ou mal fundada, de voltarem algum dia ricos ou abastados á aldeia natal; emigram, não porque não podessem viver, trabalhando, vida modesta e tranquilla entre os seus, mas porque aspiram a mais elevada fortuna. Outros ha que emigram violentados, ou antes que não emigram; que são expulsos pela miseria; que não calculam, nem esperam, nem deliberam; que tão sómente se resignam. Entre estas duas situações ha, a meu vêr, um abysmo: confundil-as quando se tentasse annullar a ultima em beneficio das victimas, e não em proveito d'estes ou d'aquelles, conduziria provavelmente a grandes desacertos; confundil-as, porém, para as destruir com a mira de tirar d'ahi vantagens para certa classe ou certa industria, parece-me ainda peior. Faça-se tudo para supprimir a emigração forçada; mas evite-se tambem tudo o que possa coagir, directa ou indirectamente, aquelle que sente em si ambições e audacia a sopitar os impulsos da propria actividade; evite-se que a sociedade ponha por qualquer modo o seu veto (sem aliás abdicar do seu direito de inspecção) a que a affeição paterna ou a previdencia tutelar busquem, dentro ou fóra do reino, tornar melhor a sorte futura d'aquelle que a natureza ou a lei confiou á sua guarda. Nas questões de interesse privado, nos negocios da vida civil, dou incomparavelmente mais pelos resultados da sagacidade e do livre arbitrio dos individuos, do que pelos da intervenção do Estado. Fallo assim, porque vejo do preambulo do questionario que tambem se quer obviar aos intuitos dos que aos lucros modestos na patria preferem as riquezas que lhes promette a America, o que, segundo se affirma, _raras vezes se realiza_. É isto exacto? Parece-me que os factos affirmam claramente o contrario. Não possuo aqui livros, documentos officiaes, ou informações particularisadas sobre a situação economica dos nossos compatricios residentes no Brazil, em que me possa estribar; mas tenho ouvido calcular a pessoas que reputo competentes o valor medio annual dos ingressos monetarios, que nos traz o refluxo da emigração portugueza na America, em mais de 3:000 contos de réis. Não sei se é verdade: o que sei é uma coisa, que, se não pertence á estatistica economica, pertence á estatistica moral, e que não é menos eloquente que os algarismos; sei um facto de suprema notoriedade. A denominação de _brazileiro_ adquiriu para nós uma significação singular e desconhecida para o resto do mundo. Em Portugal, a primeira idéa, talvez, que suscita este vocabulo é a de um individuo, cujos caracteristicos principaes e quasi exclusivos são viver com maior ou menor largueza e não ter nascido no Brazil; ser um homem que saiu de Portugal na puericia ou na mocidade mais ou menos pobre, e que, annos depois, voltou mais ou menos rico. Esta noção vulgar da palavra _brazileiro_ não surgiu sem motivo entre o povo. É que milhares e milhares de factos lh'a gravaram no espirito. O _mineiro_ do seculo passado converteu-se no _brazileiro_ dos nossos dias. São a primeira e a ultima palavra da historia de uma evolução politica e economica altamente instructivas, que poderia acaso resumir-se no seguinte asserto: «_a nossa melhor colonia é o Brazil, depois que deixou de ser colonia nossa_.» Applaudo, meu amigo, o questionario, porque os estudos que promove podem ser grandemente proficuos ao melhoramento de muitas condições sociaes. O que não posso applaudir são as suas causas finaes e o modo como é apresentado. Acho inconvenientissimo confundir-se ahi a emigração espontanea com a emigração forçada, e infelicissima a idéa de combater egualmente uma e outra, afim de obter salarios baratos para a agricultura. Por via de regra, o emigrado espontaneo, aquelle que a miseria não atira cegamente, brutalmente, para fóra da patria, sabe o que quer; sabe como vai e para onde vai. Conta com o parente, com o amigo da familia, com o protector que lhe hão de dar as recommendações que leva. É pobre, porém não desvalido. Impõem-lhe os seus, ou impõe elle a si proprio annos e annos de laboriosidade, de sacrificios, de abstenções; mas, além d'esses annos, nos horizontes da vida, ergue-se uma luz, uma esperança que o alumia e fortifica. Esta luz e esta esperança ensinam-lhe a norma do seu proceder, e o seu procedimento redundará, não direi em toda a especie de proveitos, mas decerto em proveito economico d'elle e da terra que o viu nascer, e pela qual lhe vai redobrar o affecto o grande incentivo da ausencia. V. ex.^a sabe perfeitamente quaes são as applicações possiveis do producto liquido do trabalho humano. Ou se destina a satisfazer as necessidades, os commodos e os appetites do productor, ou a accumular-se e a converter-se em capital reproductivo, ou, finalmente, a dividir-se entre estas duas applicações. Ambas ellas influem na riqueza publica, mas com diverso gráu de intensidade. A satisfação das nossas precisões ou da nossa propensão para gosar tende a manter prosperas centenas de industrias; mas a accumulacão do capital, quando este chega a converter-se em instrumento de producção, tem uma influencia, sem comparação, mais energica no progresso da riqueza social. São verdades triviaes estas: fôra inutil insistir n'ellas. Qual é, porém, o teor da vida, em geral, do portuguez do Brazil, do futuro brazileiro de Portugal? É o forcejar incessante, pertinaz, por accumular capitaes, reduzindo ao estrictamente indispensavel a satisfação das suas necessidades. Dedica á prosperidade da industria, da agricultura, ou do commercio d'aquellas regiões a menor parte que pode do fructo do seu trabalho. A sua idéa constante, inflexivel, tenaz, é voltar rico, ou pelo menos abastado, á patria. E volta. Se, cançado de sacrificios e trabalho, quer gosar, é á industria, á cultura e ao commercio do seu paiz que atira ás mãos cheias o oiro que ajunctou. Se a sêde do ganho não se extinguiu n'elle, esse oiro converter-se-ha em capital productivo. E nós, nós que prégamos aos operarios a abstenção, a poupança das suas tão modestas sobras para as accumularem nas caixas economicas, havemos de combater a emigração voluntaria para o Brazil, emigração que representa uma caixa economica opulentissima, a qual, por mais que se fizesse, todas as outras junctas nunca poderiam egualar? No preambulo do questionario allude-se ás esperanças burladas de muitos emigrados voluntarios, ás illusões desfeitas, o que exaggeradamente se presuppõe ser a regra geral. Decerto a America illude, e até devora, muitos d'esses que acreditam ir encontrar n'ella prospero futuro. Mas então, porque solicitar, pelo favor directo de providencias especiaes, o homem de trabalho a buscar a fortuna na mineração dos metaes, na marinha mercante, ou na exploração das nossas colonias de Africa? As minas, o oceano e a Africa tambem illudem, tambem devoram. Em vez de solicitar, repelli. Abrireis novos mananciaes de trabalho barato para a agricultura nacional. Disse a v. ex.^a que não applaudo as causas finaes do questionario. Digo mais: deploro-as. São ellas que dão origem á confusão do acto espontaneo com o forçado, com a emigração que provém da maior das tyrannias--a tyrannia da miseria. Na emigração voluntaria ha um uso da plenitude da nossa liberdade, e é por isso que a responsabilidade da sorte futura do individuo recae inteira sobre elle proprio. O progresso social parece-me consistir, sobretudo, na ampliação da responsabilidade individual derivando da liberdade. O absolutismo nada mais é do que a tutela publica na sua manifestação extrema. Na emigração forçada é que seria injusto e cruel attribuir ao emigrado, que abandona o seu paiz sem norte, sem rumo certo, e muitas vezes sem a minima esperança, a responsabilidade de um facto que em rigor não é seu. A sociedade tem de acceital-a. Essa secreção de desgraçados, que o corpo politico súa de si, é anormal. Ha, aqui ou alli, na estructura d'elle um vicio de conformação ou um estado pathologico que produz o phenomeno. A miseria de um ou de outro individuo pode derivar de culpa propria: a que expulsa uma parte notavel da população de um paiz, onde esta, considerada collectivamente, está longe de superabundar, é sempre resultado de um defeito ou de uma perturbação nos orgãos da sociedade. Affligir-me-hia profundamente que o auctor ou auctores do questionario e do seu preambulo imaginassem que eu duvidava, n'um só ápice, da pureza das suas intenções, da sua humanidade, da sua justiça, do seu patriotismo. O que simplesmente me parece é que o problema se poz mal. Suppõe-se a agricultura do sul, sobretudo a do Alemtejo, collocada em difficuldades taes que ameaçam a sua existencia. Suppõe-se que estas difficuldades extremas provêm de uma causa unica--a elevação dos salarios agricolas--e que essa elevação nasce exclusivamente da falta de braços. Em tal caso, a resposta ao _quid faciendum_ é simples. Promova-se o abaixamento dos salarios pela multiplicidade dos braços, e multipliquem-se os braços combatendo indistinctamente toda a especie de emigração: a emigração moral e economicamente nociva, e a emigração socialmente legitima e economicamente boa. A questão reduz-se a achar os meios de inventar e de reter dentro do paiz, por todos os modos que se reputem licitos, trabalhadores ruraes. Supponhamos, porém, que os debates, a que o assumpto vai dar vasto campo, tornam patente que nem os embaraços da agricultura são tão graves como se pintam, nem essas difficuldades, maiores ou menores, nascem exclusivamente, e nem sequer principalmente, da elevação dos salarios, nem esta deriva da diminuição de braços. Pergunto: em tal hypothese, que não é mais gratuita do que a do preambulo; n'esta hypothese, digo, deixar-se-ha de attender á dolorosa questão da emigração pela miseria? Não! O dever commum é, não direi resolvel-a, porque não sei se atinaremos com os especificos, mas envidar os maximos esforços para obstar ao mal. II *Val-de-Lobos, janeiro de 1874.* Amigo e senhor.--Se, como se diz no preambulo do questionario, a elevação dos salarios, que se reputa effeito exclusivo da falta de braços produzida pela emigração, ameaça já a existencia da agricultura do Alemtejo, do nosso granel de cereaes colmiferos, e colloca os cultivadores, por todo o reino, em circumstancias tão difficeis que os rendeiros vão abandonando as terras, é claro que o mal ganhou intensidade e extensão assustadoras, e o paiz, essencialmente agricola, caminha rapido para profunda decadencia. Supposta sem mais exame esta situação, haverá desassombro bastante para não ultrapassar os meios indirectos de obstar ao mal? Não occorrerá facilmente a idéa da compulsão, de restricções e impedimentos á liberdade? O fatal mote _salus populi_ não virá ainda uma vez ser o pretexto de coacções mais ou menos deploraveis? Felizmente o que se apresenta como certo não passa por ora de hypothese, hypothese quanto ao facto e hypothese quanto á causa. A meu ver, o primeiro quesito do questionario deveria consistir em averiguar até que ponto é real a existencia da enfermidade, e a sua verdadeira correlação com o motivo a que se attribue. Como addição a esta especie de quesito preliminar, quizera eu, porém, que se inserisse outro. Suppondo conhecida a media dos salarios ruraes, o que não sei se é facil, cumpriria examinar se essa media será sufficiente para o proletario occorrer ás mais urgentes precisões da vida--ao alimento, ao vestuario, e á habitação da familia--ainda admittindo que o trabalho d'esta possa augmentar os recursos domesticos. Se achassemos que a retribuição do assalariado, embora assim accrescentada, não attingia o alvo, é evidente que ás difficuldades, em que se provasse laborar a agricultura, haviam de buscar-se remedios diversos de qualquer reducção artificial de salarios. A sociedade não pode honestamente sacrificar uma classe a outra classe, e sobretudo sacrificar o pobre, falto muitas vezes do necessario, ao comparativamente abastado, a quem, embora em situação mais ou menos precaria, será raro que falte inteiramente o superfluo. Achamo-nos assim, talvez sem o pensarmos, no terreno das discussões ardentes que perturbam profundamente as sociedades modernas. Encontramo-nos face a face com o socialismo. Era inevitavel. Desde que se affirma que existe n'este ou n'aquelle ponto, n'esta ou n'aquella industria, uma desproporção, para mais ou para menos, entre o preço do trabalho e o valor do producto, affirma-se, no estado economico actual, uma desharmonia, uma lucta grave, entre o obreiro e o industrial. Buscar temperamentos á collisão é entrar forpadamente no campo d'essas discussões, de ordinario tão apaixonadas. Não o reputo grande mal no caso presente. Pode ser, até, um bem, se tivermos força para subjugar o que houver excessivo no afferro ao proprio interesse; se debatermos com placidez, com a luz da imparcialidade e da justiça, que uma consciencia recta e sincera não deixará de ministrar-nos, o assumpto complexo da producção agricola e do trabalho rural, buscando ahi remedio á emigração moralmente forçada. Nas declamações mais gementes, mais irritadas, contra o socialismo, parece-me que ha por vezes o que quer que seja do carpir da mulher que se receia da suppressão de alguns enfeites, ou do resmoninhar colerico do antigo frade, ao fallar-lhe o guardião em reducção da pitança para avolumar o caldo da portaria. O socialismo é um perigo serio; mas o homem deve haver-se perante os perigos com cordura e hombridade: deve olhar para elles fito, em vez de se pôr a ensartar lastimas ou a vociferar improperios. Onde e quando o socialismo, com a taboleta de communismo, de internacionalismo, ou outro qualquer letreiro, recorrer á violencia, responda-lhe a violencia. São negocios que tem de resolver entre si o petroleo e a metralha. Os incendios não se discutem: apagam-se. Mas onde e quando o socialismo nos aggredir com as armas da razão, ouçamol-o. Se a razão estiver da sua parte, de-mos-lh'a. Demos-lh'a porém, não com uma confissão esteril, mas com actos efficazes. Assim, parece me que elle ha-de retrogradar, enfraquecer-se, desapparecer, como desappareceram as cruzadas ou as inquisições; como desapparecem todos os desvarios epidemicos de que adoece de seculos a seculos o espirito humano. Aliás, se, de accordo com o douctor Pangloss, assentarmos em que somos chegados á melhor das sociedades possiveis, não me atrevo a perscrutar a sorte que a Providencia prepara ás velhas nações da Europa. Meu amigo, no amago dos grandes extravios das multidões, de que a historia nos subministra terriveis exemplos, ha quasi sempre uma idéa justa que as paixões viciaram. As resistencias, porém, a esses extravios não escapam de mácula identica. No ardor do combate, a idéa justa obscurece-se, condemna-se, involta na proscripção das doutrinas absurdas e das applicações temerarias. É assim que nenhuma das grandes luctas entre as orthodoxias e heterodoxias deixa de nos apresentar esse triste espectaculo. No socialismo ha duas cousas bem distinctas: as affirmativas e as negações. As mais das vezes as suas doutrinas constituintes, os seus systemas de reforma social, afiguram-se-me abstrusos, infundados, inexequiveis, e não raro iniquos; e as apologias das quinze ou vinte escholas em que elle se divide, e muitas vezes se contradiz, frequentemente faltas de condescendencia para com o senso _commum_, o que me parece pouco democratico. Dos seus queixumes contra a sociedade actual é que me seria difficil dizer outro tanto. É ahi que me persuado está a sua idéa justa. No meio das exaggerações, das amplificações, de certo lyrismo tetrico, a critica socialista tem ás vezes razão de sobra. É d'isto que me temo. Deixem ao socialismo a legitimidade moral que lhe provém da existencia de certos factos, e queixem-se depois do resultado definitivo da contenda. As circumstancias difficeis em que se diz achar-se a agricultura merecerão duvidoso credito aos desinteressados, em quanto por um conjuncto de provas seguras não se mostrar a existencia do facto. As affirmações valerão pouco, se indicios, que todos podem apreciar, lhes forem adversos. Augmenta gradual e quasi constantemente a exportação dos productos agricolas do paiz; a população rural cresce com mais rapidez do que nunca; desbravam-se todos os annos novos terrenos; as aldeias dilatam-se; as habitações dos agricultores revestem cada vez mais o aspecto de aceio e conforto; o transito e o transporte pelos caminhos de ferro e o movimento dos nossos portos elevam-se de anno para anno de modo inesperado. Todas as apparencias, em summa, convergem para nos persuadirem que estamos mais ricos do que eramos ha quarenta ou cincoenta annos. Se essa riqueza é real, como explical-a, na hypothese de uma decadencia profunda na principal industria do reino? Parece altamente improvavel. Ao menos cumpre esperar pelas provas claras e precisas d'essa contradicção economica. Não devo acreditar que a affirmativa de uma elevação anormal dos salarios assente em irreflexivas comparações chronologicas. Na successão dos tempos, o mesmo preço de trabalho pode ser exprimido por algarismos diversos. Depende tudo das oscillações do valor da moeda, em consequencia da diminuição ou accrescimo dos metaes preciosos, e portanto do seu valor. Não me persuado de que haja quem ignore a abundancia sempre crescente d'esses metaes no decurso d'este seculo. Assim, o algarismo 15 pode, por exemplo, representar rigorosamente o mesmo preço de um dia de trabalho, que o algarismo 10 representava ha 30 ou 40 annos. A proporção entre o valor venal do producto e o salario do trabalh o ficará sempre a mesma, porque a depreciação da moeda lá irá manifestar-se de egual modo no algarismo d'esse valor, se causas extranhas, com as quaes o obreiro nada tem que vêr, não vierem influir na carestia ou na barateza do producto. Mas, ainda evitando esse erro grosseiro, em que me parece ninguem cairia, nem por isso fica removido o perigo de nos illudirmos em relação aos salarios ruraes. Repugna á razão e á consciencia que se considerem estes em geral como susceptiveis de reducção illimitada. O obreiro é, por via de regra, o chefe ou o sustentaculo de uma familia. Comprehende-se o padre ou o soldado segregados d'esta e celibatarios: não se comprehende como o poderia ser a classe dos trabalhadores, que constituem tres quartos ou mais da população, sem que esta decrescesse gradualmente até chegar a extinguir-se. A familia do obreiro é inevitavel, e por isso inevitavel que a reducção dos salarios não a torne impossivel. Toda a industria em que o lucro ou retribuição do industrial não possa, em absoluto, conciliar-se com esta condição impreterivel, é uma industria condemnada fatalmente a perecer mais cedo ou mais tarde, sejam quaes forem os arbitrios a que se recorra para a aviventar. Ora, em Portugal, como em qualquer outro paiz, concebe-se o desapparecimento d'esta ou d'aquella industria fabril: o que se não concebe é o desapparecimento da industria agricola. Entre os dois termos, immutaveis, inexoraveis como o destino--existencia da agricultura e sufficiencia do salario--tem a sociedade necessariamente de buscar a solução de quaesquer difficuldades economicas que possam comprometter a nossa, não direi quasi unica, mas capitalissirna industria. Propor que se reduza indefinidamente o preço do trabalho por uma concorrencia artificial e illimitada, sem indagar até onde essa reducção poderá conciliar-se em cada districto ou provincia com a existencia da familia do obreiro, será dissolução: solução é que de certo não é. Sou cultivador, vivo no campo, no meio de outros cultivadores, e ouço frequentemente os queixumes contra a elevação sempre crescente dos salarios. Tenho pensado n'uma questão que me toca tambem. Sei quanto é difficil, ás vezes, saldar _as despesas_ da producção com o valor venal do producto por um saldo positivo; mas d'essas despesas, aquella que o lavrador tem sempre deante dos olhos, pela sua permanencia, é a das soldadas e jornaes. São as soldadas e jornaes que o obrigam mais vezes a realizar em conjuncturas inopportunas o valor dos productos. Não sabendo, em geral, distinguir com exacção as despesas productivas das improductivas, as escusadas das inevitaveis, avalia-lhes a indole apenas pelos algarismos que as representam, pelos obstaculos que lhe suscitam, e pelos apertos em que o collocam. As maiores e mais frequentes são as peiores: eis, em resumo, o seu criterio. Para elle o ideal do improductivo é o imposto, e não acho impossivel que até certo ponto tenha razão. O imposto, porém, que no seu espirito se confunde algum tanto com a extorsão, com a espoliação, irrita-o; mas irrita-o uma vez por anno. O salario, soldada ou jornal, é o espinho que o punge, ora mais ora menos, na alta ou na baixa, mas de continuo; é a fonte perenne de cuidados, de repugnancias, de coleras, de debates. As causas que mais contribuem para attenuar, e ainda para inverter, a proporção entre a importancia do custo e o valor do producto, tanto as que possam provir da sua imprevidencia, das suas poucas luzes, do seu desleixo, das suas preoccupações tradicionaes, da laxidão dos seus habitos, como as que provenham do incompleto ou do vicioso das instituições, das leis, dos regulamentos, que directa ou indirectamente attingem a agricultura, e até as que derivam da perversão dos costumes publicos, raras vezes as considera e aprecia nas suas relações exclusivamente agricolas. Os effeitos d'essas causas não se exprimem em réis, não se especificam no diario, supposto que se dê o caso de ter o agricultor algum simulacro de contabilidade, embora assás simples para lhe ser possivel. Quizera eu que se applicasse a causas tão variadas e complexas o dynamomelro da economia rural, para avaliarmos com justiça e imparcialidade o quinhão que lhes pertence e o que pertence ao salario nas difficuldades em que se diz laborar a agricultura, e que não duvido se deem em certos casos. Se houvessemos de seguir esta vereda, parece-me que seria um pouco extenso o supplemento aos quesitos do questionario que v. ex.^a teve a bondade de me remetter. Mas, se, accusado de involta com outras causas deprimentes da agricultura, o salario rural tiver de ir assentar-se ao pé d'ellas no banco dos réus, é necessario que não lhe ponham mascara; que o levem para alli com o seu verdadeiro aspecto. Não é só nas suas exaggerações transitorias que elle deve ser considerado. A indole do salario agricola é diversa da indole do salario fabril. O fabricante, debaixo do tecto da sua fabrica abrigada atraz do paredão proteccionista, produz para um mercado que não suppre completamente, e cujas lacunas deve vir preencher, saltando por cima do paredão, o producto similar estrangeiro. Os effeitos disso, subretudo n'um paiz pequeno, conhece-os decerto v. ex.^a. Que o motor e os machinismos funccionem bem, que a má administração não comprometta a fabrica, e o operario fabril que fizer o seu dever pode contar com um salario, mais ou menos elevado, mas regular, por todo o decurso do anno. As oscillações são ahi pequenas, e raras as ferias do trabalho. São outras as condições do assalariado rural. Na verdade, a soldada do _criado de anno_ tem, até certo ponto, analogia com a retribuição do lavor fabril, porque assegura, pouco mais ou menos, ao criado a habitação, o vestuario e o alimento por todo o decurso do anno. Mas pela natureza das cousas, por motivos que fôra demasiado longo enumerar, o criado está sempre exposto a passar á situação de jornaleiro. É em relação a este que é grave a questão. No jornal, as variações são repentinas, violentas, desordenadas. N'estes sitios onde vivo, a constituição da propriedade rustica e da industria agricola aproximam-se bastantemente do typo ideal (ideal, ao menos para mim) da boa organisação da agricultura, no _momentum_ actual da evolução agricola--a mistura da grande e da pequena propriedade, da grande e da pequena cultura. A população aqui não é excessiva, mas é assás numerosa: as aldeias crescem e até nascem; a charneca foge para o horizonte ante o reluzir do alferce e da enchada. E todavia, quantas vezes, n'um domingo, depois da missa, na _praça_, o lavrador, o feitor, ou o capataz é _forçado a pagar o vinho_ para o jornal de 340 ou 360 réis durante a semana, e no domingo seguinte faz o _favor_ de o pagar para o de 140 ou 160 réis! Decerto aquelle jornal de 340 ou 360 réis, associado ao producto do trabalho da familia, e ao producto liquido da courella, da vinha, do _foro_, em summa, que, por via de regra, o jornaleiro possue (não sei se v. ex.^a conhece bem a entidade _foro_: o foro é o grande moralisador dos campos, o supplente efficaz do parodio e do mestre, mythos que a poesia politica inventou para entretenimento dos parlamentos e das secretarias); aquelle jornal, digo, excede a verba indispensavel para satisfazer as precisões, aliás tão limitadas, da familia rustica. Mas pode dizer-se o mesmo do jornal de 140 ou 160 réis, ou irão as tenues economias dos dias felizes supprir as lacunas do insufficiente salario, e sobretudo a carencia absoluta d'elle nos dias, nas semanas, nos mezes, até, de chuvas pertinazes, em que a terra empapada em agua se recusa ao consorcio com o trabalho humano? Fôra loucura pensal-o. Os jornaes de 340 ou 360 réis são a excepção: os vulgares são os de 140 e 160 e os que oscillam entre estes algarismos e o de 240 réis, aliás bastante raro, afóra os que se exprimem por zero. Coincidem as altas excessivas, repentinas, com as ceifas, com as sachas e rechegas, com as podas, empas e cavas, etc. Cumpre, porém, attender ao periodo da sua duração. A natureza não se dobra aos caprichos e aos calculos, ás vezes ineptos, do homem: o cultivador que mantém aquelles, ou erra estes, paga-o. Os serviços hão-de fazer-se a tempo, aliás lá está o producto com o látego na mão para punir o réu. São questões de tres, de quatro, de seis semanas. Ora, por aqui, o calendario teima em affirmar que o anno se dilata por 52 d'esses periodos semanaes, a arithmetica protesta que 35 ou 40 são algarismos superiores a 12 ou a 15, e a physiologia e a hygíene mais rudimentaes continuam, impassíveis, a ensinar que a familia do obreiro ha-de comer e vestir-se todos os dias, e abrigar-se á noite das injurias da atmosphera: factos impreteriveis, fataes, emquanto a sciencia não mandar o contrario. Á vista d'elles e do questionario que v. ex.^a me remetteu, estive tentado a indagar se uma porção dos nossos trabalhadores, ao aproximarem-se as epochas d'esses serviços, costumavam ir contemplar as florestas virgens da America, e voltarem só ao despenhar-se o salario das alturas do excessivo nos limbos melancholicos do insufficiente. Obstava a distancia: não tive remedio senão absolver o Brazil, ao menos em relação á minha localidade, das altas desordenadas do salario. Desconfio de que começo a ser importuno com esta carta, já em demasia longa. É vasto o assumpto. Peça v. ex.^a a Deus que a multiplicidade das minhas occupações me não consinta tornar a importunal-o tão cedo. III Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Se, conforme creio, as condições e a indole do salario rural são actualmente como as descrevi na carta precedente, salva uma ou outra modificação accidental, segue-se que não seria licito empregar nenhuns meios directos ou indirectos tendentes a minorar as altas repentinas e transitorias, sem que ao mesmo tempo se tractasse de elevar o salario insufficiente. Mas, fechado no estreito campo da maior procura ou da maior offerta de trabalho, tendo por causa unica a diminuição ou o augmento de braços, o problema torna-se obviamente insoluvel á luz da equidade. Se a multiplicação da offerta influir na descida da alta, influirá do mesmo modo na descida da baixa, e tornará, portanto, cada vez mais miseravel a situação do obreiro. Se, pelo contrario, crescesse a procura sem que a offerta crescesse proporcionalmente, suppondo-se, como se pretende, que as difficuldades em que labora a agricultura d'ahi procedam, tornar-se-hiam cada vez mais intensas essas difficuldades. Resulta d'aqui a necessidade de buscar a solução do problema e o remedio á crise, se existe, n'uma ordem de idéas diversa. A meu ver, o mal não procede da escacez de braços: procede da errada vereda que tem seguido entre nós o desenvolvimento agricola; do deploravel esquecimento de certas leis economicas e de certos principios e doutrinas indisputaveis da sciencia de agricultar. Se isto é assim (depois o examinaremos) a emigração, que só pode influir na maior ou menor affluencia de trabalhadores, é questão distincta da questão dos embaraços agricolas, que não hão-de, na minha opinião, remover-se com a depreciação do trabalho. A emigração da miseria deve combater-se, não porque o agricultor vê n'isso, bem ou mal, o seu interesse, mas porque o emigrante é, como nós, filho d'esta terra; porque a emigração forçada tem para o coração humano as mesmas amarguras do desterro; porque ao cabo das esperanças do foragido (quando para elle exista a esperança) estão muitas vezes as desillusões e a morte. A certeza de que os altos salarios são transitorios, e de que após elles vem sempre o trabalho mal retribuido ou a falta de trabalho, é poderoso incentivo para a emigração; mas sel-o-ha ainda mais a manifestação de que as providencias, sejam ellas quaes forem, para afastar os trabalhadores de emigrarem, tem por principal intuito produzir uma descida nos jornaes elevados. Diz-se que ha embaidores incumbidos de os alliciarem para além do Atlantico, illudindo-os com promessas de vantagens imaginarias. É natural que seja assim, porque a America, em grande parte despovoada e inculta, precisa para o seu progresso dos braços laboriosos da Europa. Mas é justamente por causa d'isso que não reputo prova de grande prudencia auctorisar esses homens astutos a fazerem avultar as cores e lineamentos do seu quadro de brilhantes promessas com as sombras carregadas dos intuitos egoistas d'aquelles, que buscam reter o trabalhador na terra natal para o converterem em instrumento do proprio interesse. Abstrahindo da emigração razoavel, da emigração d'esses que vão para o Brazil com determinado destino, e com a esperança fundada de adquirir uma fortuna que não tem probabilidade de obter no seu paiz, ha nos que a pobreza impelle _per la via dolente_ dois grupos que se distinguem por indole e caracter diversos: uns naturalmente audazes e propensos a guiar-se mais pelos impulsos das paixões e da imaginação do que pela prudencia; outros, timidos e reflexivos, a quem as aventuras repugnam, e que só se precipitam n'ellas pela urgencia das precisões. Reter os primeiros sem violencia, quasi que o julgo impossivel, ao passo que desviar os segundos d'esse deploravel caminho se me afigura comparativamente facil. A ignorancia e rudeza, meu amigo, não excluem a faculdade da imaginação, e a credulidade impera na razão inversa da cultura do espirito. Como evitar nos animos propensos ás maravilhas do extraordinario, do longinquo, do indefinido, os effeitos das narrativas dos que voltam da America opulentos ou remediados? Como occultar, n'um paiz cujas relações com o Brazil são frequentes, intimas e variadas, qual é alli a retribuição do trabalho, a certeza do salario, a facilidade de occupar-se no commercio de retalho, a falta de operarios fabris, etc.? A perspectiva da vida tranquilla, a que não faltem os meios de satisfazer ás necessidades indispensaveis, mas uniforme, laboriosa, sem peripecias (e é isto o mais que a sociedade lhes pode proporcionar) fraco attractivo será sempre para os animos irrequietos, atrevidos, mudaveis, quando ao lado da nudez e da fome, que os martyrisam ou os ameaçam, se alevantarem as seducções, em parte verdadeiras, em parte suppostas, que sorriem d'além do oceano. Sobre a tela de factos mais ou menos inexactos borda a imaginação idylios e a credulidade milagres. E que muito, se a individuos, incomparavelmente mais cultos que os obreiros ruraes, tenho visto tecer d'esses contos de fadas em relação aos lucros do trabalho litterario? Não sou, me parece, dos que podem como escriptores lamentar-se da indifferença do publico americano. As maiores provas, porém, de benevolencia d'este para commigo ficaram sempre muito áquem das vantagens enormes que esses individuos, conforme o que lhes tenho ouvido, tirariam da profissão das letras no Brazil, se a fatalidade não os retivesse na patria, ou certa ordem de embaraços lhes não tolhesse alli a venda dos seus livros. Um grande talento, a quem só faltou uma educação litteraria condigna, e melhor sorte no seu paiz, lá foi acabar, arrastado por essas illusões de poeta, depois de esgottar o calix de amargos desenganos. Sinceramente, meu amigo, creio que a eloquencia dos embaidores dos operarios rusticos seria bem inefficaz, se a peroração do discurso não fosse redigida pela miseria. Porque são raros os seus triumphos entre os da nossa Estremadura e do Alemtejo, que aliás não me parece sejam nenhuns Cresos, e são tão frequentes nas provincias do norte e nos districtos insulares? A resposta que se poderia dar a esta pergunta não seria a mesma que se poderia dar a outras até certo ponto analogas? Porque se precipitam annualmente do norte para o meiodia do reino bandos e bandos de trabalhadores nas epochas das _fainas_ da nossa triste agricultura biennal e triennal? Qual é o embaidor que os arrasta para as ceifas nas campinas do sul, requeimadas por sol abrazador, que ás vezes os fulmina, ou para os alagamentos mornos dos arrozaes, onde ao amanhecer e ao entardecer o nevoeiro, cultivador de intermittentes, semeia dia por dia uma porção da sua terrivel seara? Nos valles do Minho e da Beira, que o suor de quarenta ou cincoenta gerações tornou ferteis, e cuja cultura é em certas relações admiravel, falta o estigma do pousio não adubado, da folha não alqueivada, que pede unicamente ás influencias atmosphericas o azote de que, um anno sim outro não, ou de dois em dois annos, a esgottam rachiticos cereaes. E não falta só nos prediosinhos que numericamente ahi predominam; falta era geral nos mais vastos, que correspondem á pequena herdade alemtejana e á quinta e ao casal estremenhos. Ahi cultiva-se annualmente todo o chão reduzido a cultura, a qual até certo ponto é licito qualificar de intensiva. Não lhes faltam os braços, porque esses amanhos, que podem chamar-se esmerados, fizeram-se; e fizeram-se sem perda, porque aliás a agricultura do norte, cujos productos augmentam, declinaria gradualmente, e a população, que cresce alli, como por todo o reino, apezar da emigração, diminuiria, em vez de seguir em progressão o accrescimo dos productos. A estatistica official d'essa população, comparada entre duas epochas tão proximas, como são os annos de 1864 e 1868, é eloquente[3]. Seja-me agora permittido perguntar: se as _fainas_ da agricultura do sul não tivessem attrahido por salarios, mais ou menos remuneradores, esses milhares de obreiros, que por dois ou tres mezes, e ainda mais, de lá se ausentaram, sem que os serviços ruraes deixassem de se ultimar, em que trabalhos os teriam occupado os agricultores do norte? Até que ponto chegaria a insufficiencia dos jornaes? Depois, quem nos diz que essas emigrações temporarias dentro do paiz representam completamente um equilibrio entre o excesso da offerta do trabalho no norte e o excesso da procura no sul? As previsões e esforços ordinarios do interesse privado asseguram-nos que a procura foi satisfeita por um preço mais ou menos elevado, dentro das condições de tempo, impreteriveis em agricultura. Nada, porém, nos prova que a offerta n'um mercado não excedesse a procura no outro. Em tal caso o excesso da offerta significaria a miseria de mais ou menos numerosos trabalhadores do norte. Em que se occupa grande porção d'esses obreiros, que affluem todos os annos para o sul de certo tempo a esta parte? No plantio de vinhas; e o plantio de vinhas offerece um problema, que eu teria grande gosto em ver resolvido pelos que acham na falta de braços a principal senão unica fonte dos embaraços da agricultura. Creio que ninguem deixará de confessar que, dos diversos ramos da industria agricola, o que mais cresce e se dilata por quasi todos os districtos do reino é a vinicultura. Repovoam-se de cepas os terrenos que desvastou o _oïdium_; campos que produziam cereaes transformam-se em vinhas; de anno para anno, collinas, recostos de montes, pedregaes, pousios apparentemente repugnantes á cultivação, uns apoz outros, vão-se cobrindo de verdura no estio com bacelladas novas; a vide invade as charnecas como o _pioneer_ da America invade os desertos; as solidões do Alemtejo, que de memoria de homens ainda vivos não produziam vinho para o consumo dos seus raros habitantes, exporta hoje centenares de pipas d'este producto. E todavia, se exceptuarmos as lavouras de esgraminha dos terrenos já cultivados que vão converter-se em vinhedos, qual é, no nosso actual systema de viticultura, a machina que se emprega na plantação e subsequentes amanhos da vinha? O braço do homem; exclusivamente o braço do homem. Como, porém, conciliar este facto, que todos podem observar, que se realisa quasi por toda a parte, com essa falta de obreiros, com esses salarios monstruosos, impossiveis, que devoram a agricultura e de que é culpado o Brazil? Dir-se-hia que grandes, medianos e pequenos proprietarios se ligaram e ajuramentaram para um vasto suicidio economico, e que, convertendo o vidonho em alliado da America, a ajudam a cavar a ruina d'elles proprios e dos cultivadores de cereaes. Felizmente não é assim. A vinha cultivada com mais esmero ha-de contribuir para que a emigração diminua, trazendo não só a elevação dos salarios, como a sua melhor distribuição. Com os amanhos reiterados de uma cultura habil, e com um fabrico esmerado e cuidadosa conservação do producto, que devem abrir aos nossos vinhos de pasto os mercados da Europa, o trabalhador dos districtos vinhateiros, que são quasi todos os do reino, evitará em grande parte as ferias que a penuria acompanha, e que o fazem acceitar contractos muitas vezes leoninos, mas que lhe promettem permanencia no trabalho, embora em regiões apartadas. É o que a lavoura de cereaes, quer biennal, quer triennal, sobretudo como ella é entre nós, não pode prometter-lhe. Afóra as sachas e colheitas do milho, as mondas (quando se monda) e as ceifas dos cereaes colmiferos, ella exige só o serviço de abegoaria, e a elevação, as vezes exaggerada, dos salarios que produz não poderá nunca melhorar a condição do jornaleiro. Creio que nenhuma pessoa medianamente versada n'estes assumptos porá em duvida a superioridade da agricultura de França comparada com a de Portugal. E todavia, um dos agronomos mais distinctos d'aquelle paiz, Leconteux, ainda ha oito annos mantinha, na edição que então publicava do seu notavel livro sobre os melhoramentos agricolas, uma passagem que peço licença a v. ex.^a para transcrever. Depois de se referir á rotação triennal, que ainda prepondera largamente em França, embora alli se estribe no alqueive de primavera e estio (o que nem sempre entre nós succede) o redactor principal do _Jornal de Agricultura Practica_ prosegue: «É verdade que, por beneficio da folha de alqueive, a rotação triennal exclusiva conserva illesa a boa ordem no serviço das apeiragens; mas pode dizer-se o mesmo em relação ao trabalho braçal? De modo nenhum. Durante os trez mezes de ceifas e de gadanhar os fenos, é avultado o numero de trabalhadores de que a lavoura carece. A estas fainas, porém, seguem-se nove mezes feriados para os numerosos obreiros que o lavrador chamou ás colheitas. Reduz-se tudo a ficarem na lavoura alguns jornaleiros por eirantes. Mas que succederá á multidão dos ceifeiros? Tem de ir buscar vida, uns na vinhataria, outros nos cortes de lenha e madeira, outros nas suas fazendinhas. Mas se nem todos tem estas saidas, o que succederá aos que não as tiverem? Perguntem á turba de obreiros que annualmente abandonam o campo para se metterem nas cidades, e terão de confessar que o amor do incognito não é o unico motor de taes desvios. Movem-os sobretudo o medo do _não-ha-que-fazer_ nos trabalhos ruraes e o legitimo desejo de ganhar os salarios mais elevados e mais regulares, que subministram os estabelecimentos de industria fabril e as officinas e obras publicas. Que não estejam, pois, todos os dias a fallar aos jornaleíros ruraes das venturas da vida rustica. Remontem dos effeitos ás causas e verão que o systema triennal com folha de pousio é um dos primeiros e mais poderosos causadores de se ermarem os campos[4].» Que se reflicta sobre estas ponderações de um homem competentissimo e appliquem-se a Portugal. As nossas officinas, arsenaes e obras do Estado são nimiamente restrictas comparadas com as de França, ainda dada a differença entre um grande e um pequeno paiz; e na industria fabril maior é a desproporção. Não podem por isso as cidades, os grandes centros de população, absorver a torrente de trabalhadores, que um systema errado de cultura arvense suscita e attrae para depois os repellir. Assim, é a propria indole da agricultura, o afferro intransigente do lavrador a antigas praxes, que facilita a tarefa dos encarregados de induzir os obreiros a emigrarem. O cultivador queixa-se da America: mas quem sabe se a Providencia deu ao Brazil o destino de ser para comnosco um aspero missionario do progresso? Ha um livro bem conhecido de v. ex.^a (porque interveiu mais ou menos na sua publicação), cujo conteudo lança viva luz sobre alguns pontos d'esta grave e complexa questão, postoque não os illumine todos por conter apenas os resultados de trabalhos ainda incompletos. Fallo do volume que tem por titulo _Primeiro inquerito parlamentar sobre a emigração_. É obra de uma commissão da camara dos deputados e faz v. ex.^a parte d'ella. Os documentos annexos ao relatorio são altamente instructivos. Tem a primazia entre elles as informações de pessoas collocadas em situação official, ou habilitadas por experiencia e estudo para tractar a materia. Entre os documentos d'essa especie sobresaem pela sua importancia o informe do sr. deputado Candido de Moraes relativo á emigração dos Açores, o do dr. Bernardino de Almeida, obtido por intervenção do nosso consulado no Rio, o do consul portuguez de Boston, e sobretudo o do sr. Taibner de Moraes, secretario do governo civil do Porto. Posso divergir de qualquer d'elles no que respeita a certas doutrinas e a certos alvitres para obstar á emigração: o que não posso é recusar a seus auctores o conhecimento dos factos e o estudo reflectido d'esses factos. D'estes ha um em que todos concordam quando indagam as causas capitaes da emigração. É elle a insufficiencia dos salarios entre nós. Quanto aos Açores são notaveis as observações do sr. Candido de Moraes. «São, diz elle, geralmente pequenos os salarios dos operarios, e de todos elles são os trabalhadores os que menores attingem, e por isso são miseraveis a sua alimentação e vestuario... Os trabalhadores agricolas tiram do salario escassos meios para a sua sustentação e das familias, por pouco numerosas que ellas sejam, e por isso procuram pelo arrendamento de terras obter esses meios. D'aqui nasce uma concorrencia irreflectida e altamente nociva para esses desgraçados... Succede por isso um grande numero de vezes que esses infelizes completam a sua ruina quando julgam terem alcançado os meios de melhorar a sua condição; e completamente exhaustos, sem poderem satisfazer aos encargos que tomaram, vão acompanhados das familias procurar no Brazil os meios que o seu trabalhar incessante não podia proporcionar-lhes na patria. Condemnar esses homens que fogem á miseria, porque não tem a coragem de se deixar morrer á fome no paiz em que nasceram, parece-me injusto: tolher-lhes a liberdade de sair da terra onde não acham os recursos indispensaveis para subsistirem seria, mais do que injusto, cruel[5].» Um illustre escriptor nosso, o sr. Mendes Leal, tinha, no jornal _A America_, reputado principal origem da emigração a miseria, attribuindo esta a diversas causas que o dr. Bernardino de Almeida em grande parte rejeita. Admitte, todavia, e confessa, que a emigração dos trabalhadores se explica tambem pela penuria, e na sua opinião a penuria procede da insufficiente remuneração do trabalho[6]. O consul portuguez de Boston explica egualmente a nossa emigração para os Estados Unidos pela convicção que o obreiro tem de encontrar alli a remuneração condigna do seu trabalho, que não acha no proprio paiz[7]. No informe do sr. Taibner, onde abundam considerações graves, e por vezes tão verdadeiras como profundas, reconhecem-se francamente as estreitezas que opprimem os operarios ruraes. «Apezar do augmento sensivel dos salarios, pondera o digno funccionario, pode dizer-se que não são elles sufficientemente ente remuneradores do trabalho, e não evitam a emigração, a que dá causa o desejo de melhorar de fortuna[8]. Não será esta mesma opinião a que está no amago do questionario que v. ex.^a me remetteu? Como, sem isso, explicar o quesito 29? Para este se entender racionalmente, é preciso presuppor a sobejidão de obreiros ruraes nas provincias do norte, e por consequencia o seu inevitavel consectario--a insufficiencia dos salarios. Ahi não se indaga se convirá forcejar para que elles se conservem no seu districto ou provincia natal: pedem-se desde logo alvitres para os attrair ao sul e fixar no Alemtejo. Se a escacez de braços e conseguintemente a excessiva elevação dos jornaes fossem, como se diz, geraes em todo o reino, com esse movimento de translação a agricultura do norte ficaria completameate arruinada. Temos, pois, um conjuncto de opiniões respeitaveis sobre a insufficiencia dos salarios ruraes. A estas opiniões vem a estatistica dar plena confirmação, revelando com a irresistivel eloquencia dos algarismos a verdadeira situação do jornaleiro, tanto em relação aos seus recursos como ás suas necessidades. Incompletas por abrangerem só uma parte dos districtos do reino, deficientes por omissões e falta de especificação nos elementos subministrados por alguns municipios, os quadros estatisticos addicionados ao _Inquerito parlamentar_, ainda assim são bastante numerosos nas suas varias especies para poderem deduzir-se d'elles conclusões geraes. Os mappas do valor dos generos e do preço dos salarios durante o decennio de 1862 a 1871, communicados pelas camaras de diversos districtos, suscitam reflexões e calculos que peço licença para submetter á apreciação de v. ex.^a. Já notei, e, conforme creio, provei, que avaliar a sufficiencia ou insufficiencia da retribuição do jornaleiro pela media annual do salario é um methodo illusorio applicado á questão da emigração. Escuso de repetir o que disse, porque me parece de facil intuição. Entretanto acceitarei a fórmula; porque, se, partindo d'essa media, ainda se provar que a insufficiencia predomina em larga escala, desapparecerá a idéa de que a elevação dos salarios e a falta de braços são as causas deprimentes da agricultura, idéa por duas maneiras fatal, porque afasta os agricultores de observarem e combaterem as causas verdadeiras do mal, e porque ha-de ter uma pessima influencia nas deliberações que se tomarem para destruir, não digo já a emigração em geral, mas o que n'ella é, por assim me exprimir, artificial, e que não faz senão conduzir a mais infeliz situação o proletario rural, já de sobra desgraçado. O districto do Porto é aquelle onde, mais do que em outro qualquer, a emigração tem tido notavel incremento. Nos seis annos de 1866 a 1871, de 37:444 individuos que abandonaram o paiz pertenciam-lhe 16:450. N'um periodo de dez annos, de 1862 a 1871, os salarios subiram n'aquelle districto mais de 25 por cento; mas as consequencias d'este facto foram attenuadas e talvez destruidas por uma circumstancia assás grave. Os generos que predominam na alimentação do trabalhador do campo são o milho, o feijão, e a batata. Ora dos 17 concelhos do districto, em 14 subiu o preço do milho, em 11 o do feijão, e em 7 o da batata. Na minha opinião, o phenomeno não proveiu da diminuição dos productos: longe d'isso. Proveiu da sempre crescente abundancia da moeda, devida principalmente ao regresso á patria de avultado numero dos _nossos brazileiros_. Seja, porém, esta ou aquella a causa, signifique a alta dos generos o que significar, o que é certo é que ella diminuiu, se não destruiu, o effeito da elevação dos salarios. Por outra parte, essa elevação dos jornaes prova antes a sua pequenez em 1862 do que a sua exaggeração em 1871; porque n'este ultimo anno a media d'elles em 8 dos 17 concelhos não excedeu a 200 réis, e dos restantes, apenas no do Porto passou de 280 réis. Os districtos onde, afóra o do Porto, a emigração é importante, são os de Aveiro, Braga, Vianna, Vizeu, Villa Real e Coimbra. A commissão obteve notas estatisticas sobre os preços dos generos e dos salarios nos districtos de Aveiro, Vianna e Coimbra, além de outros (Lisboa, Leiria, Bragança e Castello Branco), cuja quota de emigração é insignificante. No de Aveiro, onde o numero de emigrados é o mais avultado depois do do Porto, a comparação entre os preços dos principaes generos alimenticios e os salarios ainda, porventura, é mais instructiva. Entre o primeiro e o ultimo anno da decada de 1862 a 1871 o custo do milho augmentou em 9 concelhos e diminuiu em 6, o do feijão augmentou em 12 e diminuiu em 3, o da batata augmentou em 8 e diminuiu em 5. Como, pois, considerar as pequenas elevações dos jornaes, em geral, senão como compensação da maior carestia das principaes subsistencias? Em 1871 esses jornaes augmentados sobem, na verdade, um pouco acima de 200 réis em 7 concelhos; mas são de 200 réis e ainda de menos em 9. Tal é a enormidade dos salarios que arruinam a agricultura! A estatistica do districto de Vianna é assás deficiente, sobretudo em relação aos jornaes; mas vê-se que alli o preço do milho e feijão subiu em 8 concelhos, diminuindo apenas em um ou dois. Se houve elevação nos salarios, o facto explica-se pela alta nos generos. No que respeita ao districto de Coimbra, as informações são menos incompletas, posto que ainda insufficientes quanto aos salarios ruraes. Ahi a proporção entre o accrescimo e a reducção no preço dos generos é a favor d'esta; mas os salarios parece conservarem-se immoveis, conforme as notas transmittidas pelas camaras municipaes. Dá-se até a circumstancia de diminuirem nos concelhos de Coimbra, Figueira e Cantanhede. Reduzidos, porém, ou estacionarios, por todo o districto, á excepção de um concelho, foram em 1871 de 200 réis e ainda de menos. O trabalho estacionou ou embarateceu como os generos. Qual é o resumo e substancia d'estas observações? É que, de 1862 a 1871, os salarios cujo augmento os fez ultrapassar a meta de 200 réis estão para os que se mantiveram n'esse limite, ou nem sequer o attingiram, na razão de 18 para 36, ao passo que o accrescimo do preço das principaes subsistencias do operario rural está para a diminuição do custo d'essas mesmas subsistencias na razão de 98 para 50. Manifesta-se, pois, uma forte tendencia do salario para se conservar dentro d'aquelle limite, e ao mesmo tempo uma não menos forte tendencia para a alta nos principaes generos alimenticios do trabalhador. Deixo ao discernimento de v. ex.^a tirar as illações que naturalmente dimanam d'estes factos. Encontra-se nos mappas do preço do trabalho rural de alguns concelhos dos districtos de Coimbra e de Castello Branco uma especie valiosa para apreciar bem a situação economica do proletariado do campo. É pena que no grande numero de concelhos em que, além d'esses, de certo existe o facto, não o mencionassem. Seriam mais completas e indubitaveis as reflexões que elle suscita. Refiro-me ás duas fórmas simultaneas da retribuição do trabalho--jornal _a sêcco_, e jornal _com comida_. A differença entre os dois jornaes representa o valor do sustento diario do obreiro e corresponde forçosamente á realidade. Essa differença é claro que resulta de um accordo livre entre o patrão e o operario, cada um dos quaes poderia preferir a solução integral a dinheiro, se porventura se reputasse lesado na avaliação do sustento. Esta é, portanto, razoavel. Das notas de seis concelhos em que se menciona o facto vé-se que, em dois, a manutenção do obreiro é computada em mais de metade do jornal todo a dinheiro, n'um em menos, e em tres exactamente na metade. Adoptarei essa metade para base do calculo, applicando este a uma hypothese vulgarissima entre as familias rusticas--a de um obreiro com mulher e dois ou tres filhos de um até dez annos de idade. Supponhamos que a mulher, cumpridas as obrigações domesticas, pode ainda trabalhar fóra os dias correspondentes aos dias uteis de um semestre, ganhando metade do salario do marido. Supponhamos tambem que n'esses seis concelhos (Pampilhosa, Oliveira do Hospital, Miranda do Corvo, Goes, Fundão, Oleiros) foram os jornaes, em 1871, de 200 réis, embora só o fossem no de Goes, e inferiores em todos os demais. Supponhamos ainda que a alimentação da mulher e de dois ou tres filhos apenas equivalesse á do jornaleiro. As condições da hypothese são o menos favoraveis que é possivel ao que pretendo demonstrar. Pois bem: apezar d'isso, com taes elementos, um calculo simples dá-nos em resultado a expressão de uma verdade bem triste. Salario de 200 réis em 365 dias 73$000 Dito de 100 réis em 180 dias 18$000 ------------ 91$000 Deduzindo: Domingos e dias festivos; 60 para o marido e 30 para a mulher ou 12$000 + 3$000 réis. Dias de interrupção de trabalho por temporaes e chuvas copiosas, calculados no decurso do anno em 30 para o marido e 15 para a mulher ou 6$000 + 1$00 réis 22$500 ------------ Rendimento annual da familia 68$500 Media da alimentação do obreiro em 365 dias 36$500 Dita da mulher e filhos 36$500 ------------ 73$00 ------------ Deficit 4$500 E as pobres roupas e trajos? E a pobrissima habitação? E os impostos em dinheiro ou trabalho? E a falta de serviços? E a doença? Que o jornaleiro não tenha um unico vicio; que não gaste mal um ceitil. Terá por sorte a miseria. Não sei se me illudo sobre a exacção d'este calculo. Se é exacto, deixo a v. ex.^a deduzir d'elle as conclusões que lhe dictar a sua alta intelligencia. IV *Val-de-Lobos, julho de 1874.* Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Creio que já n'uma carta antecedente confessei que a nossa agricultura lucta ás vezes com difficuldades e embaraços, como, mais ou menos, luctam todas as industrias e todas as profissões. Existencias que sem obstaculos, sem revezes, deslisem serenas na vida são raras excepções. A lucta é o progresso: a resistencia das cousas ou dos homens o incentivo dos supremos esforços: os erros que custam caros os melhores mestres. N'este ultimo ponto a difficuldade está em acceitar as lições. Somos propensos a attribuir aos outros as culpas proprias, e é por isso que tantas vezes se inutiliza o proveito que poderiamos tirar dos nossos desacertos. As causas que obstam ao desenvolvimento agricola e á prosperidade a que esta industria das industrias poderia ter-se elevado são complexas e variadas, sendo talvez a principal a sua propria indole e a direcção que tem seguido. É por isso que não posso ver na reducção do salario o remedio para evitar os seus queixumes. Pelo contrario, como symptoma, a lenta elevação dos jornaes, a immobilidade, ou o descenso d'elles são indicios da lentidão do seu caminhar, do seu estacionamento, ou da sua decadencia. As reformas da dictadura de 1832 a 1834 impelliram energicamente a industria agricola na senda do progresso, desonerando-a de multiplicados vexames, vestigios de eras barbaras e obstaculo insuperavel á sua prosperidade. Por este lado a revolução foi longe; mas a revolução não podia transformar uma classe numerosa de agricultores atrazados em homens que soubessem aproveitar practica e racionalmente os effeitos das reformas. Assim, o progresso foi-se manifestando nos districtos do sul, e em grande parte nos do norte, quasi exclusivamente na extensão da cultura e pouquissimo na intensidade. Tem-se arroteado charnecas, lavrado velhos pouzios, convertido pantanos em arrozaes, multiplicado as vinhas e olivedos, desbastado e educado os chaparraes, dilatado por bravios as roças e queimadas. Forcejamos por cobrir vastas áreas de terreno de sulcos de arado sem perguntarmos a nós mesmos se pozemos todos os meios para ser remunerado o nosso trabalho. N'um paiz mediocremente cerealifero, ao menos com relação ás praganas, esgotamos os terrenos ferteis com tristes rotações biennaes e triennaes, em que raramente figuram as hervas de fouce. Pedimos a gandras, a encostas, a chans, comparativamente fracas e pobres, as mais das vezes sem alqueives, quasi sempre sem adubos, a maior porção dos cereaes colmiferos. A cultura alterna é entre nós excepção rara, até porque os terrenos que a admittem não são vulgares em Portugal. No sul do reino, o prado artificial, que poderia tornar altamente progressiva a rotação biennal, ainda não passou de uma curiosidade. Os nossos rios e ribeiras vão direitos ao mar durante o anno inteiro, embora atravessem planícies e valles uberrimos. Ahi a agua e o sol do estio subministrariam alimento a gados numerosos, e conseguintemente produziriam massas avultadissimas d'estrumes, cujos sobejos iriam gradualmente fertilisando os terrenos pobres adjacentes, onde tantas vezes o lavrador tem de contentar-se com tres ou quatro sementes. As vastas charcas, que suppririam a insufficiencia das aguas correntias e a cuja construcção tão favoravel é o accidentado do nosso solo, quem pensa n'ellas? E todavia, com a cultura racional em vez da tradicional, metade dos terrenos fundeiros produziriam o dobro ou mais, preparados para a irrigação, do que produz o todo privado d'ella. Por outro lado, os nossos instrumentos agrarios são em geral os mesmos que eram ha meio seculo, e os vehiculos rusticos conservam-se, como os instrumentos, em hostilidade permanente com as leis da mechanica. O que estes e dezenas de factos analogos influem no curso dos productos agricolas conhecem-n'o pela reflexão e pela experiencia os agricultores que sabem reflectir e experimentar. A outros basta para explicar tudo a transitoria elevação do salario. Costuma dizer-se que o poeta nasce. Em Portugal o que nasce é o lavrador. A lavoura é profissão cujo tirocinio consiste em ser filho de lavrador ou de proprietario rural. A sua divisa é o desdem do livro. O livro é o supremo perigo da producção nacional. A praxe e a experiencia não precisam de saber o que elle diz para o condemnarem. N'este genero de industria a verdadeira superioridade está em não a reconhecer n'aquelles que pelos factos provam que nos levam vantagem. O jurisconsulto pode accommodar aos costumes, ás tradições, aos habitos nacionaes a luz da sciencia que vem de fóra; o economista fazer selecção nas doutrinas alheias de tudo quanto seja util ao desenvolvimento da riqueza publica; o medico modificar pelas condições climatericas do paiz os resultados do estudo e experiencia estranhos; o militar ir apropriando á defesa do Estado o que nos progressos modernos da arte da guerra se coaduna com a nossa indole e recursos, com as nossas aptidões, com a configuração do nosso solo. Assim no mais, salvo em agricultura e em economia rural. N'isto, basta-nos affirmar que ha muitas cousas em que os estrangeiros teriam que aprender comnosco; que disfructamos um clima abençoado, que isto é o jardim da Europa, e outros apophtegmas egualmente sisudos e demonstrados. Este horror ao livro não tem sido por certo menos fatal do que o enthusiasmo cego por elle, achaque de que não pode negar-se que adoece mais de um espirito illustrado. Resultam de similhante horror consequencias funestas, mais funestas porque sem comparação mais geraes, do que essas que derivam do fanatismo pela generalisação, pelas theorias scientificas sem as restricções da experiencia. A agricultura, como as outras industrias, talvez mais do que as outras, exige a actividade physica, o movimento, a vida externa; mas, assim como os que se dedicam ás industrias fabris sabem furtar ás lidas materiaes algumas horas para estudar as questões technicas ou economicas que possam servir ao progresso d'ellas ou contrariar a sua prosperidade, do mesmo modo o cultivador precisa de dedicar quaesquer ocios a inquirir o que ha que aproveitar na observação e no estudo alheios, e a habilitar-se para apreciar o que na organisação economica da sociedade será vantajoso ou nocivo aos interesses da sua classe. A incompetencia do productor rural n'estes assumptos pode em certos casos ser para elle mais desastrosa que todas as emigrações imaginaveis de proletarios. O lavrador portuguez, por exemplo, é, geralmente fallando, proteccionista. Porque? Porque ignora que os seus verdadeiros interesses estão ligados á liberdade commercial. Não sabe referir ao seu paiz as questões que a tal respeito se ventilam lá fóra, e nem sequer sabe que existem. Não sabe, nem quer saber. Applaude candidamente o systema protector, e faz mais: sollicita com affinco, talvez com colera, a manutenção de um systema, que apenas tem o defeito de lhe liberalisar ampla protecção quando não a precisa, e de lh'a retirar, ao murmurio das populações urbanas, quando carece d'ella. Entretanto, á boa sombra d'esse admiravel regimen, tem de prover ás necessidades da vida, ao vestuario, aos objectos de serviço domestico, á alfaia rural, e, até ás vezes, a uma parte do alimento, por preços artificialmente elevados. É até certo ponto a protecção que explica a estagnação dos seus productos e a insufficiencia dos seus recursos. Não pára, todavia, no bom caminho o _homem practico_, firme em detestar o livro e as estrangeirices. No fim de trinta annos de repugnancias, já na verdade hesita em condemnar absolutamente o caminho de ferro, e começa a afrouxar nas suas sympathias pela azinhaga real, na sua commiseração do almocreve, e a tolerar, e, no inverno, quasi a bemdizer, a invenção de Mac-Adam. Não o faz, porém, sem prudentes reservas, porque sobretudo é homem practico. No verão lança olhos longos para a velha calçada do engenheiro juiz de fóra, e, se pode, aproveita-a. As novas estradas são quasi sempre mais extensas pela mania de evitar as ladeiras, e o chão batido de pedra britada esquenta os pés do gado. Nada chega a uma boa calçada. Os seus carros aguentam-se bem com as sobrerodas e os seus bois com as ladeiras, além de que seu pai e seu avô sempre por alli passaram e não morreram por isso. Como ha-de elle deixar, de conservar certo resentimento contra o rasto legal de sete centimetros que lhe tolhe o prazer de margear o leito das novas vias com o gume das rodas do carro de eixo movel, que ás vezes se põe a arder com a _doçura_ dos attritos? A simples substituição do vehiculo do norte e da Estremadura pela carreta alemtejana daria, na verdade, uma differença no menor custo dos transportes acima de dez por cento, com a mesma força de tracção. Não será, porém, mais simples obter essa economia na reducção do salario dos jornaleiros? Quantas ponderações equivalentes, ou pouco melhores do que estas, não tenho eu ouvido a cultivadores, que em outros assumptos de interesse privado, e até em certas questões geraes de agricultura são cordatos e razoaveis! Dos seus contratempos e desastres nunca elles são os motores. Se absolvem a natureza, no que não são faceis, as culpas vão impreterivelmente cair sobre a sociedade. De certo nas instituições, nas leis, nos regulamentos administrativos, na percepção e distribuição dos impostos, ha erros, vexames, desegualdades, desvios, nocivos aos agricultores; mas tambem no modo de pensar da maioria d'elles ha erros, preoccupações, ignorancias, teimosias, não menos deploraveis nos seus effeitos, sem contar com os que procedem de certos factos, não de ordem economica, mas de ordem moral, imputaveis ao cultivador e de que me abstenho de fallar. Na população rural predomina um instincto ou como queiram chamar-lhe, que no proletario será o mais poderoso elemento de bem-estar e de regeneração moral para elle, e de paz e de progresso para a sociedade, se esta souber favorecel-o e dirigil-o; mas que no agricultor mais ou menos abastado é vicio ruinoso e difficil de corrigir, porque a intelligencia obscurecida do vicioso o pinta a si proprio como manifestação de providencias de economia, de amor ao trabalho, quasi de virtude. Fallo d'essa affeição ardente, inquieta, tenaz, á propriedade de raiz, á terra, que se mantém com o mesmo vigor no coração do homem do campo desde a mocidade até ao ultimo dia, até a ultima hora da vida, e que, apenas satisfeita, logo recrudesce. De todas as causas de ruina dos agricultores nenhuma reputo mais desastrosa. É ella que de ordinario deita a perder o lavrador laborioso, poupado, mas pouco reflexivo e menos instruido. O que sobretudo escaceia ao cultivador portuguez é cabedal para o grangeio. Por via de regra, a terra é mais forte do que o seu cultor, e tarde ou cedo esmaga-o. Todavia elle acredita que é acto meritorio, acto de homem que _faz casa_, converter em terras o capital de que ha-de precisar para custeios, sempre incertos no seu _quantum_. Ainda quando elle fosse de sobra, deveria applical-o a melhorar a alfaia agricola, a adubos, a limpeza de arvoredos, a esgraminhar, a desviar enxurros dos valles e a desobstruir ribeiros, a vallagens e esgotos, etc. Mas o proprietario rural é radicalmente anguloso, e desadora com isso. Estremece pela fórma circular. _Arredonda-se_ de continuo, podendo e não podendo. Não é raro, até, vêl-o levantar dinheiro a 8, 10 ou mais por cento para adquirir um campo que lhe dará o equivalente de uma renda de 4 ou 5, se não menos. Se a cousa fazia tanta conta! Se endireitava a lavoura! Se lhe proporcionava tão boa serventia! Havia de deixar que o arrematasse outro confinante que cordealmente detesta? Concluiu-se o negocio: os amanhos, que já se não faziam bem, são cada vez peiores, e na producção apparece o castigo do erro. O capital loucamente amortisado é supprido pelo que, em momentos de apuro, se vai buscar a 12, 15 ou 18, por cento. Vendem-se os generos na baixa; vendem-se fructos ainda pendentes; atrazam-se as soldadas, e a disciplina entre os creados acaba. O gado anda magro, e o arado pára no rego emquanto se fuma ou conversa. O agricultor nada d'isto vê, porque lhe empanam a vista as soldadas em debito. A ruina tarda mais ou menos annos, espera ás vezes pela morte do lavrador, mas vem quasi sempre, implacavel, fatal. Scismam todos como um homem laborioso, economico, que em summa _fez casa_, chegou, depois de _se arredondar_, a semelhantes termos. Os advertidos começam então a lembrar-se das ruins searas que elle tivera desde tantos annos, da pouca e má producção das suas vinhas e olivedos, da morrinha do seu rebanho, das basseiras e ferrujões que lhe levaram dois ou tres bois de trabalho. Mas advertem alguns, ainda mais experientes e circumspectos, que essa é a historia de varios outros lavradores dos sitios, incansaveis como elle em fazer casa. O facto tornou-se vulgar desde que se não paga o dizimo a Deus, e que o reino está comido de pedreiros livres. Depois, os tributos devoram tudo. Ha quem tenha feito a conta. Paga mais a terra hoje do que nas epochas douradas dos quartos, das jugadas, dos relegos, das coutadas, dos dizimos, das milicias, das ordenanças, acogulado tudo com a decima d'el-rei nosso senhor. Obviamente as terras produzem agora menos e as estações mudaram. Tem muitas vezes notado estas cousas o reverendo prior da freguezia e o fidalgo do logar, ancião respeitavel, que foi capitão-mór, e commendador quando valia a pena de o ser. Lembram-se ambos com saudade dos bons tempos em que o lavrador era completamente feliz... nas eclogas da poesia classica. D'essa insaciabilidade de terra resulta ainda outro mal não menos grave--a dispersão do trabalho rural--causa de um sem numero de despesas improductivas. Ha proprietarios que se resignam ao anguloso quando se lhes torna impossivel o arredondarem-se; mas resta-lhes outro expediente para se arruinarem. Como se tracta de satisfazer um vicio, os pretextos não faltam. A acquisição de um campo, de uma belga de terra, de um olival, de uma vinha, de um brejo, de um talho de matto, seja, em summa, do que fôr, embora a meia ou a uma legua do centro da lavoura, é sempre para os taes um negocio d'aquelles que raras vezes se fazem na vida. Como elles esperam rir-se dos vendedores! Estes negocios raros, aliás tão vulgares, trazem por via de regra mais damnos ao agricultor do que todas as altas dos salarios. V. ex.^a conhece decerto o excellente livro de Fermin Caballero, sobre a povoação rural de Hespanha, traduzido pelo dr. Deslandes e publicado em Lisboa em 1872. É provavel que não sejam muitos os exemplares vendidos. E, todavia, este notavel escripto deveria ser tão lido e meditado (não digo cegamente adoptadas todas as suas doutrinas) pelos nossos cultivadores pouco instruidos, como o admiravel tractadinho de Matthieu de Dombasle sobre os acertos e revezes nos melhoramentos agricolas o devera ser pelos turbulentos e insoffridos reformadores das nossas velhas praxes, que tenho a fraqueza de não suppor todas más. Infelizmente para o lavrador, que disputa aos chins extremos de devoção pelo culto dos antepassados, a leitura de um livro que contradiz as tradições avitas seria profanação. Que Fermin Caballero faça apalpar aos seus hespanhoes as perdas enormes das lavouras retalhadas e dispersas, cousas são de castelhanos: o cultivador portuguez continuará todos os dias, a todas as horas e por toda a parte, a fazer os taes raros negocios, que mais tarde ou mais cedo tem de lhe inspirar serios queixumes contra os salarios devoradores, devoradores sobretudo quando são pagos com dinheiro de 12 a 18 por cento. Diz-se que a escola é uma grande necessidade para o rustico proletario. Deve ser assim. Affirmam-n'o os entendidos das grandes cidades. Por ora, suspeito que tem outras mais urgentes--a de melhor e mais abundante alimento, a de mais roupa, e a de mais reparada habitação. A quem me parece que aproveitaria desde já a escola é á _burguezia do campo_; mas a escola como eu a concebo, a escola que ensina mais alguma cousa do que a manear a ferramenta do estudo--ler e escrever,--a escola em que pouco se tem pensado. Seria uma attenuação prodigiosa da suppressão dos dizimos, da existencia do pedreiro livre, e até do fatal descobrimento da America. E é n'um paiz onde fallece a instruccão ao commum dos agricultores, falta que lhes mostra do invez as questões economicas; que lhes mantém as tendencias para immobilisarem todos os seus recursos pecuniarios, desequilibrando de continuo os dois instrumentos essenciaes da producção remuneradora--a terra e o capital; é n'este paiz que não existem instituições de credito agricola, d'aquelle credito que, bem organisado, poderia supprir com dinheiro barato a insufficiencia tão vulgar como ruinosa dos capitaes de grangeio, sem que todavia favorecesse o vicio da terra não menos vulgar, nem menos ruinoso! Pensámos nos proprietarios, creando o credito hypothecario; não pensámos na industria rural, esquecendo o credito agricola. Busca-se remover o perigo de que o dono de tal predio, que se chama hoje Francisco, se chame ámanhã Antonio, facto que, aliás, o credito hypothecario geralmente adia, mas raramente impede, e que importa mediocremente á riqueza publica, se é que antes não a contraría. Mas que o lavrador, rendeiro ou proprietario, ou rendeiro e proprietario a um tempo, que exerce um mister indispensavel e que não pode nem sabe exercer outro, se arruine atirando-se á voragem dos juros excessivos para effectuar em epochas precisas, intransgressiveis, os amanhos annuaes; que, arruinado, abandone a profissão; que se esterilise assim uma actividade productiva; que esta se converta em patriotismo eleitoral, e no estudo diurno e nocturno do elenco dos cargos que tem a prover o Estado ou o municipio; eis do que não cogitam os poderes publicos. É que o pretor não cura das cousas minimas, conforme o velho brocardo da jurisprudencia romana. Assim no mais. Durante quarenta annos, por exemplo, de governo representativo não tem sido possivel encontrar um meio sério e efficaz de manter a segurança pessoal do cultivador e o goso completo e exclusivo do fructo do seu trabalho. Pode dizer-se que não existe policia rural. D'aqui a necessidade nos grandes predios rusticos, e ainda nos medianos, da existencia de um ou mais guardas particulares, que desempenhem o serviço de segurança pessoal e real, que parece devera ser a primeira applicação dos tributos que a terra paga. São gravissimas as considerações de ordem moral e social que esse facto suscita, mas limitar-me-hei a uma unica observação de ordem puramente economica. Suppondo de 60$000 réis o vencimento annual de um guarda, entre comedorias e soldada, se essa entidade viesse a tornar-se inutil e desapparecesse, elevando-se ao mesmo tempo a media dos jornaes de 200 a 300 réis, o cultivador poderia pagar por este ultimo preço duzentos dias de trabalho, sem que entre a sua receita e despesa houvesse alteração no saldo. Quiz, meu amigo, lembrar-lhe alguns exemplos dos obstaculos graves, mais positivos que a alta de salarios attribuida á emigração, que embaraçam o movimento da nossa agricultura e que attenuam a acção das causas que deveriam ter-lhe dado maior incremento. Não é possivel nos limites de uma carta considerar miudamente todos esses obstaculos e apreciar os seus effeitos. Temos um systema de organisação militar analogo ao das grandes nações, expressão de uma idéa aggressiva, e que inutilisa de contínuo e aos milhares os braços mais robustos da população rural, em vez do systema proprio dos pequenos estados, adequado unicamente á sua defesa: temos os impostos municipaes applicados quasi exclusivamente aos commodos da parte urbana dos concelhos, com esquecimento da aldeia e da herdade ou casal solitarios: temos o _absenteismo_, posto que menos frequente e esgottador do que o foi na Irlanda, mas temos além d'isso o semi-absenteismo--a lavoura feita de longe--, com o que se tenta conciliar a gloriola ou a necessidade de ser cultivador e as diversões que só se encontram nos grandes centros de população: temos os pastos communs, que significam a negação de boas pastagens e de bons afolhamentos: temos a frequentação exaggerada das feiras e mercados, uma das paixões do lavrador, que na falta de motivos sérios inventa pretextos para ir dispender alli o que não deve e muitas vezes o que não pode, emquanto os creados, livres da vigilancia do amo, addicionam a essas despesas os resultados do seu descuido e perguica, quando não da sua maldade: temos a tauromachia e a lavoura com gado bravo, duas barbarias que mutuamente se auxiliam e que roubam annualmente a uma agricultura sensata grande porção dos nossos terrenos de alluvião, isto é, dos nossos terrenos mais productivos: temos a falta das cadernetas de serviço dos creados de soldadas, que aliás, dados a nossa indole e costumes, talvez fossem inuteis; mas que, todavia, fora conveniente experimentar, porque o creado rural, desleixado, ratoneiro, ou perverso pode trazer grave dispendio ao amo e ser em certos casos a origem da sua ruina: temos as _contas de sacco_ tão vulgares e tão desastrosas, quanto seria impossivel para o lavrador mediano a contabilidade complexa, inculcada em certos escriptos de economia rural, e só applicavel a grandes emprezas agricolas. Sobre estes e outros factos analogos fora facil escrever um livro, onde ficassem patentes as causas reaes e profundas do insufficiente progresso da agricultura portugueza. Elle provaria que o quinhão da responsabilidade que a similhante respeito toca á emigração, é insignificante ou nullo. O que não é possivel, como já disse, é metter a materia de um livro na estreiteza de uma carta. Qual é a illacão a deduzir d'estas considerações e d'estes factos? De certo v. ex.^a adivinha o alvo em que ponho a mira. É em separar a questão da emigração das vantagens ou desvantagens da agricultura, ou antes dos agricultores; é em nobilital-a, elevando-a á esphera das questões de humanidade, de patriotismo, e de ordem social. Isto não impedirá que os arbitrios, a que haja de recorrer-se para pôr barreiras a esse triste exodo de milhares de infelizes, possam influir no augmento da população rural, na sua melhor distribuição, e no accrescimo dos productos agricolas. Imaginar, porém, que ha-de combater-se a emigração forçada, que a miseria alimenta, conciliando a suppressão d'ella com a reducção dos salarios ruraes, cuja insufficiencia resulta dos documentos colligidos pela commissão de inquerito, afigura-se uma pretensão insustentavel, pretensão que só servirá para tornar suspeitos e odiosos áquelles mesmos que desejamos salvar os nossos sinceros esforços para obter esse fim. Nas subsequentes cartas verá v. ex.^a que firmemente creio na possibilidade de se atinar com a solução do problema, uma vez que se pense, não no proveito d'esta ou d'aquella classe, mas exclusivamente em atalhar o mal. _P.S._ Na conjunctura em que concluia esta carta, leio nos jornaes que a emigração tem diminuido n'estes ultimos tempos de modo singular. Os recentes symptomas do rapido desenvolvimento da riqueza publica explicam facilmente o phenomeno. N'esta mesma conjunctura, porém, acabam de voltar aqui varios trabalhadores das aldeias vizinhas angariados para as ceifas no sul e oeste da Estremadura e no Alemtejo, os quaes asseveram terem obtido altos jornaes, que chegaram a elevar-se nas immediações de Lisboa a 640 réis. V. ex.^a tem mais á mão do que eu os meios de verificar se é exacto este asserto. A sel-o, v. ex.^a não deixará de inquirir d'aquelles a quem isso cabe, a razão porque, ao passo que a emigração notavelmente diminue, o salario rural se eleva de um modo não menos notavel. As explicações devem ser curiosas e altamente instructivas para nós todos. V *Val-de-Lobos, setembro de 1874.* Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Vimos, meu amigo, que o interesse d'uma classe abastada, senão rica, e que por muitos titulos merece a consideração de nós todos, não deve, apesar d'isso, influir na indole das providencias destinadas a reter na terra natal o trabalhador do campo. Vimos egualmente que para obstar á emigração não ha outro meio efficaz, liberal e legitimo senão remover, até onde for possivel, a miseria que afflige os proletarios ruraes. Todas as reflexões sobre os inconvenientes do desterro voluntario; todas as narrativas tetricas ácerca da sorte dos que os precederam n'aquelle caminho serão baldadas, porque as refuta peremptoriamente o padecer actual. Á commissão de inquerito, de que v. ex.^a faz ou fez parte, parece que o principal instrumento para arredar o proletario das tendencias para a emigração é a escola primaria obrigatoria. Entende a commissão que o saber ler e escrever o habilitará para ouvir os conselhos da razão e evitar os laços dos embaixadores. Sinto discordar da illustre commissão. Assim como podem fallar, os embaixadores podem escrever. Não faltam escriptos que celebrem as opulencias da America, e os recursos que a actividade e o trabalho encontram alli. Saber ler e escrever não equivale a saber discernir onde está a verdade--se n'esses escriptos, se nos que cinzelam o reverso da medalha. Nem attinjo a razão porque os conselhos verbaes das pessoas illustradas serão impotentes contra instigações egualmente verbaes. A meu ver, o mais efficaz antidoto da emigração, como de quasi todas as resoluções arriscadas, violentas, irreflexivas, das multidões, é a modesta felicidade domestica obtida e mantida pelo trabalho. O estar bem induz á circumspecção; afugenta-a o estar mal. A condição preliminar, indispensavel, para o melhoramento intellectual e moral das classes laboriosas é o seu melhoramento material. Sem isso, todos os esforços, por mais sinceros e energicos que sejam, para derramar a luz da instrucção entre estas populações rudes e agrestes, serão baldados, e illusorias as esperanças apparentemente mais bem fundadas. No actual estado de cousas, o ensino obrigatorio não passa de mais um flagello para a pobre familia obreira, que lhe opporá constantemente uma resistencia passiva, mas invencivel. Afigura-se-me que toca as raias da crueldade dizer--«manda á escola teus filhos»--ao homem que habitualmente dorme vestido na esteira de tabúa, na casa de telha vã, onde, se géa, tiritam de frio elle, a mulher e os filhos, porque a roupa falta; que, se chove, não tem fato para mudar, e ás vezes nem sequer lenha para o enxugar; cuja alimentação é de ordinario ruim, quando não insufficiente; e que, como se isto não bastasse, sente com frequencia apertar-se-lhe o coração ao dizer-lhe o lavrador, no sabbado: «Para a semana não ha que fazer.» D'esses filhos que lhe pedem para a escola, um, dois, os mais velhos, são pastores ou ajudas; sustenta-os, dá-lhes agasalho o lavrador, e os seus pequenos salarios mais de uma vez vão supprir esta ou aquella falta urgente da familia: outro leva a comida ao pai, que trabalha a um ou dois kilometros de distancia, o que facilita á mãi exercer algum mister retribuido: os de seis a nove ou dez annos discorrem descalços pelas estradas ajunctando nas pequenas cestas os excretos que na vespera ahi deixou o transito dos animaes, miseravel industria, que, todavia, no fim do anno produz o valor de alguns cruzados, que resolvem uma ou mais difficuldades da dura vida do obreiro: outro, pouco maior, vai á fonte, á lenha, ao recado; chamam-no para guardar aves domesticas, para colher ervas ou flores medicinaes, para afugentar os passaros que damnam os fructos ou as searas, para dez ou para vinte serviços analogos. E todos esses serviços tem uma retribuição, que se incorpora nos recursos da familia e lhe cerceia o numero das privações. É humano, é justo; digo mais, é moral aggravar a miseria do trabalhador, tornar mais escura a noite do seu viver em nome da luz interior? Bem desejaria eu tambem tecer a minha olympica á escola obrigatoria: as phrases, os periodos, as estrophes andam já vasadas em fôrmas: basta haver novidade na invenção das suturas. Veda-m'o a consciencia. Esperarei que ou a escola se ageite a estas condições da familia obreira, o que vejo longe, ou que, melhorada a situação d'essa familia, a escola deixe de significar para ella um intoleravel imposto. A este proposito accrescentarei só uma ponderação, para a qual chamo a attenção de v. ex.^a. Se ha paiz no mundo onde a escola obrigatoria domine em virtude de leis austeras, severamente executadas, é a Allemanha. Ora, segundo os calculos de Molinari[9], a media annual da emigração allemã orçava por 100:000 individuos em 1851, verificando-se n'ella a regra geral de todas as emigrações europeas--o augmento gradual, embora vacillante às vezes no movimento de ascencão por causas accidentaes. Os calculos de Molinari foram feitos sobre as estatisticas de 1842 a 1851. Não será, portanto, exaggeração suppor que vinte annos depois, em 1870, fosse essa media de 150:000 almas, ou de 900:000 n'este e nos cinco annos anteriores. A proporção entre a população da Allemanha e a de Portugal é a de 10 para 1. Se a nossa emigração egualasse a allemã, seria no mesmo periodo de 90:000 individuos. Todavia, cinco annos depois, de 1866 a 1871, ella foi, no continente e ilhas, de 51:509[10], isto é, de pouco mais de metade. Pode fazer-se conceito da immensa população que a Allemanha cede á America, sabendo-se que nos seis annos, de 1861 a 1866, só no porto de Nova-York desembarcaram 312:065 emigrados allemães[11]. Se, porém, reflectirmos em que a União se compõe de mais de trinta Estados, muitos com portos notaveis aonde tambem a emigração se dirige; que os allemães não buscam exclusivamente fortuna no territorio da União Americana, e que, por exemplo, nas colonias mais importantes, fundadas pelo governo brazileiro, a maioria dos colonos é de origem germanica[12]; pode afoutamente dizer-se que a emigração allemã é proporcionalmente maior tres ou quatro vezes que a de Portugal. Não me parece, por isso, que a lei do ensino primario obrigatorio, ainda cumprida severamente como na Allemanha, ou antes porque o é, seja preservativo moral demasiado efficaz contra o mal que pretendemos evitar. Permitta-me, pois, v. ex.^a que, em vez de considerar a instrucção elementar como meio indirecto de combater a emigração, eu substitua esse meio por outro, na verdade menos espiritual e mais grosseiro, mas que me parece dever precedel-o na ordem das nossas idéas. Consiste em buscar um complemento ao salario rural, de modo que os recursos da familia do trabalhador correspondam ás suas necessidades. Esse complemento dar-se-hia, talvez, na elevação e permanencia dos jornaes, resultado de uma direcção mais acertada, de uma transformação na indole da industria agricola. Podem as leis, as instituições, a crescente illustração do paiz favorecer as tendencias em tal sentido; mas a sociedade tem de parar, n'estes assumptos, deante do alvedrio e da responsabilidade individuaes. Não se legisla o progresso. Resta outra solução, para a qual as leis e a acção administrativa podem contribuir fortemente, respeitando aliás todos os direitos individuaes na sua integridade. Este meio consiste em promover energicamente a associação do trabalho rural com a propriedade rustica, de modo que o producto liquido do trabalho accumulado e incorporado no solo, a que chamamos renda, suppra a fluctuação no _quantum_ e a incerteza do salario. É preciso dirigir todas as diligencias para a suppressão do proletariado rural. É preciso que os obreiros-proprietarios se tornem cada vez mais numerosos, e que sejam os verdadeiros representantes do trabalho agricola, assalariado ou não assalariado. É uma utopia que proponho como remedio ao mal? Parece-me que estou bem longe d'isso. O postulado que julgo indispensavel para combater a emigração, até onde é justo, conveniente e possivel fazel-o, só na apparencia é arduo. Para o realisar gradualmente, temos um meio tão efficaz como trivial, meio profundamente radicado nos habitos nacionaes, tradição romana nunca inteiramente interrompida atravez dos seculos barbaros, e que, na fundação e desenvolvimento dos estados néo-latinos, povoou e desbravou a maior parte do solo habitado e cultivado do nosso paiz e da Hespanha occidental; meio que ainda hoje é um dos instrumentos mais efficientes da ampliação da cultura e do augmento da população, e que de ha muito dá ao trabalhador laborioso e bem procedido accesso á propriedade. V. ex.^a já, por certo, alcança que fallo da emphyteuse com os seus varios nomes e nas suas variadas fórmas. Não é uma theoria de equilibrio mais ou menos socialista; é uma praxe conhecida, que tem por base a liberdade individual e a natureza de puro contracto, simples, comprehensivel, como são por via de regra todas as concepções fecundas. É uma cousa velha, applaudida por uns, condemnada por outros, mas que a população rural cada vez solicita com maior ardor. Em politica as revoluções radicaes podem ser ás vezes necessarias; no que, porém, respeita aos usos tradicionaes e aos costumes juridicos das sociedades, só de ordinario dão bons resultados as modificações, ou as transformações graduaes do que existia d'antes. Nas questões publicas d'esta ordem é inevitavel contar com os habitos, com as tradições, com a historia. A meu ver, um dos grandes erros do socialismo é esquecer isto. Não é menor, todavia, o erro dos que pretendem caracterisar como fatalmente necessaria a miseria de milhares de familias, ou escondel-a debaixo de um acervo de sciencia problematica, de argumentos que não peccam por excesso de solidez, de invectivas e ironias, que peremptoriamente refuta e condemna o grito instiuctivo da consciencia humana. Antes de passar a expor porque e com quaes condições a emphyteuse pode conduzir rapidamente á associação do trabalho actual com o trabalho consolidado a que chamamos propriedade, e d'ahi, por natural consequencia, a attenuar em grande escala a emigração nociva, consinta o meu amigo que ponha termo a esta carta com uma digressão sobre assumpto connexo, e do mais subido quilate. Refiro-me aos perigos que ameaçam a Europa por effeito das paixões excitadas entre as classes laboriosas pelas escolas socialistas extremas, isto é, inexoravelmente logicas. Esses perigos não são por ora demasiado graves entre nós. Contrahida a propaganda de certas doutrinas a uma parte dos operarios urbanos, parece-me que ella se estriba mais no amor da novidade e da moda, do que nas coleras reaes e funestas, que, n'outros paizes, suscita ás vezes o excesso do padecer. Mas hoje é tão intimo o contacto entre os povos civilisados, tão efficiente a mutua acção das idéas e dos factos, que não seria prudente affirmar que taes perigos se não tornarão um dia sérios para nós. As apprehensões ácerca das influencias estranhas parecem sobretudo legitimas no seio das nações pequenas. O generalisar a propriedade rustica; ligar o salario, que se recebe, com o dominio, que se exercita, não é só privar de adeptos as doutrinas dissolventes: é recrutar soldados para a manutenção da paz e da boa ordem. Desde que o trabalhador rural achar no producto liquido da sua fazendinha um complemento mais ou menos amplo do jornal; ou, antes, desde que não considerar o jornal senão como complemento d'esse producto, a negação da propriedade individual, longe de o lisongear, ha-de irrital-o, e os apostolos da demoliçao social farão bem em não evangelisar deante d'elle a lei nova, porque o trabalhador do campo é naturalmente rude. Seria o caso de applicar, porventura com mais verdade, o dito agudo, a respeito de Inglaterra, que De Lavergne celebra:--«Não aconselho ás choupanas, que se amotinem contra os solares. Esmagavam-nas logo. São vinte contra um.»--Depois da fusão, na familia do jornaleiro, do trabalho actual com a propriedade, não aconselharia ás assosiações internacionalistas urbanas que se amotinassem contra esta. Achar-se-hiam em bem restricta minoria. A paixão da terra, tão forte e tão nociva no grande e no mediano agricultor, arde com dobrada violencia no coração do proletario rural. Que sacrificios, que tenacidade, que imaginação, que industria para alcançar propriedade! Quando elle chega a poder proferir, de pé sobre as belgas do chão esmoutado e vallado, as palavras magicas--«O meu foro»--essa fronte, habitualmente inclinada para o solo, com os olhos fitos na enchada, ergue-se e illumina-se de esperança no futuro e de confiança no presente. Todos os ocios voluntarios ou forçados do jornaleiro e dos seus vão-se transformando em trabalho que a arroteia absorve, e que aflora depois na vinha, no tanchoal, no campinho de cereaes, na figueira, na ameixeeira, no batatal. A taberna perdeu acaso um freguez, o baralho e o chinquilho um parceiro, a rixa um arruador. É que o proletario recebeu da nossa mãi commum o baptismo de cidadão. _P.S._ Ao cerrar esta carta recebo o _Jornal do Commercio_ de 8 do corrente, onde vem transcripta a minha penultima carta. Precede-a um artigo do sr. P. de M., que parece destinado a corrigir factos e apreciações contidos no que tenho escripto. Quando accedi á publicação d'estas cartas, desde logo resolvi responder com o silencio ás impugnações mais ou menos innocentes, mais ou menos habeis, mais ou menos irritadas, que eram de esperar. Firo interesses e preconceitos arreigados, rejeito opiniões adoptadas talvez sem sufficiente exame. Como o homem physico, a idéa aggredida defende-se. É cousa natural. O desgosto tem o direito de exprimir-se conforme a indole de quem o padece. Deixal-o manifestar-se em paz, e consolar-se com um facil triumpho. Declaro-me desde já vencido e refutado. Posso, porém, tractar do mesmo modo o trabalho do sr. P. de M.? De certo não. Ao nobre e independente caracter do auctor, ao seu talento, á sua especial competencia n'estes assumptos, ajuncta-se a sua nunca desmentida benevolencia para comigo, benevolencia que, longe de desmentir-se agora, se duplica, talvez, até á exaggeracão. Podemos ver o assumpto a luz diversa; mas somos ambos desinteressados. Pediu-me v. ex.^a a minha opinião: dou-a, boa ou má, sinceramente, lealmente. Sobejam-me annos e fallecem-me ambições: por isso não calculo se agrado ou desagrado a uma escola, a um partido, a uma classe, e ainda ao proprio paiz. Quando, porém, a nobreza moral, a inquestionavel competencia, e o conhecido desinteresse me advertem que errei, entristeço, porque é provavel que efectivamente errasse. O erro, ainda quando involuntario, é sempre um mal. Vou estudar detidamente o trabalho que precede, no _Jornal do Commercio_, a minha penultima carta. Não me custará a retractação, a que é natural me conduza esse estudo: apenas me ficará a magua de ter tomado o tempo a v. ex.^a com as minhas reflexões menos acertadas. VI *Lisboa, outubro 1874.* Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Meu amigo, depois de ter lido com a attenção de que era capaz o escripto do sr. P. de M., sinto não poder converter-me. E sinto-o pelo prazer que teria em reconhecer a importancia do seu voto, e em estribar as minhas opiniões na sua auctoridade indisputavel e indisputada sobre o assumpto d'estas cartas. Ao primeiro aspecto, elle parece concordar commigo na substancia. Dou a miseria como causa suprema da emigração rural, e, no dizer do meu illustre contendor, _em tudo_ quanto escrevo a tal respeito _ha um fundo de verdade_. Occorrem, porém, factos que tornam menos seguras as minhas conclusões. Nem sempre, diz elle, a emigração deriva da miseria. Quem o duvida? Decerto não sou eu, que não só admitto, mas até especifico outros incentivos d'ella, e não só em certos casos a absolvo, mas até a applaudo. A questão é se esta causa existe, e sobretudo se existe em relação á emigração rural, que era o ponto sobre que v. ex.^a me pedia o meu voto, visto ser a essa luz que se considerava o assumpto no questionario que me remetteu. Se existe e actua em larga escala, os poderes publicos devem forcejar por destruil-a; porque a miseria, como phenomeno geral e permanente, deriva sempre de um vicio na economia social. No meu modo de ver a acção d'esses poderes não vai mais longe. Tremo da tutela publica; porque a tutela publica é o ponto de contacto entre o despotismo e o socialismo. Nos actos commummente licitos da vida civil não concebo a intervenção da auctoridade para que um unico d'esses actos deixe de se practicar. N'esta parte o auctor do artigo, espirito esclarecido, liberal e justo, parece que em these concorda commigo. O sr. P. de M., reconhecendo a principio que ha um fundo de verdade no que digo sobre a insufficiencia do salario, reconhece a existencia da miseria que fatalmente deriva d'essa insufficiencia. O que parece não admitir é que ella seja remediavel, porque faz nascer da propria natureza do organismo social esses factos verdadeiros que apontei. Quer isto dizer que a miseria do trabalhador provém indirectamente de uma lei natural? Não creio que seja assim. A sociabilidade é que é uma lei. O organismo social é a manifestação, a fórmula em que ella se traduz. Essa manifestação, essa fórmula depende forçosamente de quem ha-de realisar a lei; depende do homem, ente intelligente e livre, e portanto capaz de aperfeiçoar as suas obras. O organismo social é, por isso, susceptivel de ser transformado. Os progressos da civilisação constituem uma série de transformações d'esse organismo. A historia está ahi para o testificar. Deus me livre de crer na invencibilidade do mal. Assim, no entender do meu tão benevolo contendor, ainda que a miseria podesse enumerar-se entre as causas da emigração, cumpriria curvar a cabeça ante um facto fatalmente necessario. Não crê, porém, que a insufficiencia do salario rural seja uma causa indiscutivel da emigração no continente portuguez. Está longe d'isso. Talvez a admitta só nos districtos insulares, e se, especificando o que os poderes publicos devem fazer relativamente á emigração, não lhes diz que tentem remediar a miseria, a qual, ao menos alli, provém de salarios insufficientes, é que os dolorosos effeitos d'essa insufficiencia são inevitaveis e irremediaveis. Qual é pois a causa supereminente, omnimoda, quasi exclusiva, da emigração? É a indole aventureira e cubiçosa do homem. Esta indole exaggera-se pela acção das idéas de um povo sobre as idéas de outro. A idéa moderna das raças germanicas é o emigrarem os que tem alguma cousa, e os proletarios morrerem abraçados com a terra da patria. As raças celto-romanas, a que de ordinario chamamos povos latinos, são actuadas hoje pela idéa germanica: isto sem livros, sem jornaes, sem missionarios, sem nenhuma especie de propaganda, e só pela força sympathica da idéa. Os que possuem vão-se, os que nada possuem ficam. Se esta theoria é verdadeira, os lamentos dos agricultores são um perfeito engano. Podem rarear as fileiras dos patrões; as dos simples jornaleiros não. Quanto mais a emigração crescer, mais provavel é a baixa dos salarios ruraes. Procede a theoria do sr. P. de M. de duas fontes: 1.^a a propria observação; 2.^a os factos que se dão em Allemanha. Para mim, o primeiro seria decisivo, se as observações do sr. P. de M. fossem, não digo completas, mas assás extensas. Limitam-se a um tracto maior ou menor das costas do oceano. Sabe de casos numerosos em que a idéa germanica se reproduz entre nós; isto é, em que, associando-se ás indoles aventureiras e cubiçosas, essa idéa arrasta homens remediados a liquidarem seus haveres e a demandarem as regiões da America. Não era preciso o testemunho irrecusavel do meu honrado contendor para eu crer esses factos. Ainda dispensando a intervenção da idéa germanica, estou convencido de que os espiritos aventurosos, audazes, desejosos de melhorar de fortuna, proletarios ou não proletarios, terão mais de uma vez trocado a patria pela America. Para isso tem-se a si; e é o que lhes basta. Ambos nós, embora por motivos em parte diversos, julgamos que não convem obstar a esta emigração, e que para o fazer a auctoridade não tem nenhum meio liberal e legitimo. Mas esses factos das orlas do mar serão applicaveis ao complexo total da emigração do reino? O sr. P. de M. conhece 50, 100, 200 casos de tal ordem: mais; muitos mais, se quizer. O algarismo que os representa ha-de ser sempre grandemente inferior ao de 50:000 emigrados que, por exemplo, abandonaram o paiz só n'um dos ultimos quinquennios. O mais que o meu bom amigo pode fazer é tirar illações. Ora, illações de 50, de 100, de 1:000 para 50:000, não me parece que tenham grande valor, sobretudo n'esta questão. A idéa germanica, em que se funda a theoria do sr. P. de M., resulta de um inquerito ordenado recentemente pelo chanceller do imperio allemão. Segundo esse inquerito estatistico, relativo aos ultimos cincoenta annos (se em Portugal apparecesse uma estatistica d'estas, o que se diria, meu Deus!), a emigração allemã até 1840 foi constituida _exclusivamente_ pelos proletarios: _nem um_ só individuo de classes mais felizes buscou fortuna na America. Repentinamente, por uma especie de mutação á vista, o proletariado lança raízes na _Vaterland_, na terra d'Arminio. O espirito aventureiro, a cubica da riqueza surgem n'aquelle anno. É uma cholera moral que invade a Allemanha. A enorme torrente da emigração não pára, não se attenua; cresce. O proletariado, porém, não lhe cede _um_ só individuo. O _maltrapilho_ emigrante passa a tradição. Todos os que emigram tem de seu: liquidam e vão levar os capitaes da opulenta Allemanha á pobrissima America. O paiz exhaure-se. Esses capitaes representam nada menos do que uma somma equivalente á contribuição de guerra imposta á França. Propriamente, o que os francezes pagaram foi um saldo de contas entre a Allemanha e a America. Perdoe-me o meu amigo P. de M. uma supposição vaidosa até á extravagancia. Se eu fosse o principe de Bismarck, com o systerna um pouco militar da administração prussiana, mandava descançar os inquiridores nas casamatas de Spandau, para lhes fazer notar que o gracejo não é admissivel em objectos de serviço. Só deixaria de o fazer, se particularmente lhes houvesse recommendado que achassem esses resultados moralmente impossiveis. V. ex.^a sabe, de certo, por pessoas doutas e tementes a Deus, que eu sou um grandissimo impio, peiorado agora com minha nesga de petroleiro. Tolere-me, por isso, um acto de incredulidade quasi brutal. Não creio uma palavra dos fins apparentes e dos resultados objectivos do inquerito. Creio, porém, que milhares e milhares dos mais robustos braços, que o rio caudal da emigração arrasta annualmente, fariam enorme falta ás espingardas de agulha no dia em que a França cedesse ao appetite de ser esmagada de novo. Se o chanceller pensa seriamente em retel-os, não ha-de ser só a estatistica encarregada de dar plausibilidade ás suas providencias; ha-de ser toda a sciencia allemã sem exceptuar a critica de Strauss e a philosophia de Hegel. Quando o imperador Guilherme prohibiu ás companhias de caminhos de ferro que fizessem abatimento nos preços de transporte aos que se dirigiam aos portos de mar para emigrarem, e que esta singular prohibição alevautou altos clamores nos Estados-Unidos, o ministro allemão em Washington viu-se constrangido a confessar que as providencias tomadas significavam precauções contra as tentativas de desforra da França. Não eram capitaes, eram braços que o governo queria reter. E de facto, se os emigrantes não fossem em grande parte simples jornaleiros, simples proletarios, não haviam de ser alguns thalers a mais na despesa do transito que retivessem na Europa a multidão de peculios, equivalentes á contribuição de guerra da França, que iam felicitar a America. Se eu, de má fé, quizesse acceitar a theoria do meu amigo P. de M. sobre a emigração, provaria contra elle que a emigração portugueza é essencial e quasi exclusivamente de proletarios miseraveis. Se admittisse a força impulsiva dos exemplos peregrinos, o pensamento estranho, modificando por uma acção mysteriosa o pensar nacional, acharia uma influencia mais potente pela força numerica dos exemplos, pela maior proximidade, senão affinidade, de raça, e até pela unidade de crenças religiosas, para produzir o milagre. Refiro-me á Irlanda. Se existe uma especie de magnetismo da classe remediada de origem germanica sobre a classe remediada portugueza, porque se não dará o mesmo influxo do proletariado celta sobre o proletariado celtoromano? São, porém, a cubica e a audacia, ou é a miseria que tem expulsado o irlandez da patria? Se em meio seculo a America attrahiu da Allemanha 2.500:000 individuos, só nos Estados Unidos, só pelo porto de Nova-York, e só em 20 annos (1847 a 1866) entraram 1.500:000 emigrados irlandezes. D'estas duas forças uniformadoras, qual é a mais poderosa, e qual d'ellas, portanto, teria actuado mais em Portugal, se esta acção existisse? Posto que seja uma triste convicção, continúo a crer que a miseria é a causa suprema da emigração dos campos. A insufficiencia do salario produz por dois modos a desgraça do trabalhador--privando-o directamente do necessario, e impellindo-o ás vezes, pela dor moral, a buscar o estonteamento na embriaguez, que lhe augmenta a propria miseria. É um phenomeno vulgar; e se, como observa Laveleye[13]--«quasi por toda a parte o salario do obreiro é insufficiente para satisfazer as suas necessidades racionaes»,--esse phenomeno geral abrange-nos tambem. Forcejar por lhe amortecer a intensidade, por destruil-o, se é possivel, tenho-o como dever e interesse communs. Assim, não só removeremos um poderoso incentivo de emigração, mas tambem fortaleceremos a sociedade contra perigos mais serios. Segue-se d'isto, acaso, que não existem outras causas de uma emigração nociva? De certo não. O que não vejo é o remedio para neutralisar essas causas, algumas das quaes só alterações profundas no mechanismo social poderiam remover. Sirva de exemplo o recrutamento, que basta para explicar a emigração dos nossos mancebos pelos portos da Galliza, facto que só pode maravilhar os que ignoram até onde chega a repugnancia, ou antes o horror da mocidade aldeã a arrancarem-n'a por alguns annos do ninho paterno para a lançarem n'um teor de vida desconhecido, mas que ella bem sabe não condizer com os habitos, com as occupações, com os affectos, que constituem a historia completa da sua singela existencia. Pode applicar-se aos que assim o fazem o dicto de Quevedo--_matar-se por no morir_; mas é certo que a isso os arrasta um impulso interior, irreflexivo e irresistivel. Preoccupam quasi exclusivamente o meu caro antagonista os engajadores: vê-os por toda a parte; vê, até, no oceano um dos mais terriveis. O aspecto e o ruido das ondas attrahem para a America. Permitta-me elle que advogue a causa do oceano. Não é muito: a causa de Deus já foi defendida na Convenção franceza. Se o mar tem o segredo de attrahir os habitantes dos districtos de Vianna, do Porto, de Aveiro e de Coimbra, que banha por uma orla, mostra-se de pasmosa incapacidade para o mister que exerce, logo que as suas vagas rolam para o sul da foz do Mondego a visitar as praias e ribas dos de Leiria, de Lisboa e do Algarve, ao passo que o districto de Braga, vendo-o e ouvindo-o apenas por estreito espiraculo, e os de Vizeu e Villa Real, conhecendo-o só de nome, lhe entregam aos milhares seus filhos. Não seria mais simples e conforme á razão pôr de lado influencias em parte contradictorias, em parte incomprehensiveis, e buscar na densidade comparativa das populações ruraes a explicação do phenomeno? Não é facto eloquentissimo serem os districtos onde a população mais rapidamente cresce, e mais densa é em relação á superficie do respectivo territorio, os que subministram numero incomparavelmente maior de emigrados? Que significa isto, não digo em Portugal, digo em toda a parte, senão que a producção, por defeito do solo ou do clima, por pouca intensidade ou imperfeição da cultura, pela má constituição da propriedade, emfim, por qualquer causa natural ou facticia, não corresponde á densidade da população? O excesso d'esta em relação aos seus recursos foi, é, e ha-de ser, em todos os tempos e logares, o incentivo ordinario das migrações que tem povoado e hão-de ir povoando o globo. Mas o desequilibrio entre a producção e as necessidades impreteriveis do total dos productores tem de traduzir-se em miseria para alguns ou para muitos d'elles antes que o equilibrio renasça. Sempre, porém, os symptomas do mal hão-de manifestar-se nos orgãos economicamente mais debeis do corpo social, nas classes trabalhadoras. Por isso continúo a persuadir-me de que é, não a influencia germanica, nem o oceano, mas sim a miseria a verdadeira, co-ré dos engajadores. Pede o SR. P. de M. severidade para com elles. Eu, de certo, não os applaudo nem os protejo; mas, quando theoricamente esquecemos ou negamos as causas mais efficazes d'esta ou d'aquella ordem de phenomenos, estamos arriscados a engrandecer tão desmesuradamente as secundarias quanto o exige a logica do erro. É assumpto de particular estudo este dos engajadores, ácerca dos quaes, se não faltam deplorações sentidas e accusações genericas, falta a indicação particularisada de sufficientes factos especiaes sobre que possam recair apreciações reflectidas. É probabilissimo, não me cansarei de confessal-o, que os animos emprehendedores e cubiçosos, as imaginações ardentes, sobretudo quando os aguilhoar a pobreza, busquem na emigração melhor fortuna. Para elles, porém, a influencia germanica parece-me já de sobra, e os induzimentos dos engajadores um verdadeiro pleonasmo. Em todo o caso, com essas influencias ou sem ellas, ambos nós estamos de accordo em que não se devem nem se podem pôr embaraços a esta especie de foragidos. Restam-nos os animos irresolutos, as indoles timidas, pobres de imaginativa, moderadas nos desejos. Dada a não existencia do irresistivel incentivo da miseria, é racionalmente crivel que esses individuos sem ambições exaggeradas, sem resolução, sem precisões urgentes, emfim, sem nenhum impulso physico ou moral, quebrem violentamente os laços que os prendem á terra de infancia, laços fortes sobretudo no homem do campo, só porque um individuo, provavelmente desconhecido, os convida a deixar o seu prediosinho, a familia, os amigos, os mil affectos, em summa, que nos retem na patria, para se arrojar ás solidões do oceano, dobradamente temerosas para quem as desconhece? Isto é impossivel! Mas o engajador não é uma pura invenção. Acredito; postoque me faltem bastantes factos, precisos e indisputaveis, para avaliar a extensão das suas malfeitorias. Supponhamos, porém, a não-existencia da miseria involuntaria e honesta: desde esse momento o engajador deixa de excitar a indignação e deve ser visto a luz diversa do clarão sinistro que o allumia. Nas profundezas da sociedade, como nas depressões das gandras, ha lagôas doentias, charcos apodrecidos. As paixões e os instinctos degenerados em vicios alimentam esses brejos. Fluctuam ahi entes embrutecidos. São os desgraçados que designamos com os nomes desdenhosos de relé, de gentalha, existencias anormaes, zangões dos enxames humanos. O seu _habitat_ mais commum é no seio das camadas inferiores das populações urbanas, mas o campo não está isento d'elles. Supprimida theoricamente a miseria honrada, a actividade dos engajadores move-se forçosamente na esphera do vicioso, do abjecto, da parte da população moral e economicamente nociva. N'este caso o engajador seria um emunctorio, e longe de se lhe contrariarem os esforços, conviria favorecel-os. Ou me engano muito, ou é esta a consequencia que se deduz, a final, das doutrinas do meu illustre contendor. De certo não a previu quando, indignado, pedia aos poderes publicos que sustessem toda a propaganda que tivesse por fim promessas fallazes. Se entendo bem esta phrase um pouco obscura, parece-me que lhes pede o desempenho de missão difficil. Não me occorre, dentro dos limites dos principios liberaes, meio nenhum practico de impedir propagandas, quer verbaes, quer escriptas, posto que não faltem meios de punir as que offendam as leis. Não sei tambem como verificar antecipadamente se quaesquer promessas, contidas no ambito do possivel, serão ou não cumpridas: questão do futuro que o presente não pode resolver. Parece-me arriscado aconselhar cousas d'estas aos governos, propensos sempre a ultrapassar no exercicio do poder a barreira incommoda dos principios. O perigo da phrase de certo escapou á perspicaz intelligencia do meu illustre adversario, que, liberal sincero, proclama a eterna verdade de que o indivíduo é _em primeira_ e ultima instancia o juiz do proprio interesse. Depois de fundamentar a sua doutrina, o sr. P. de M. accumula as considerações que entende invalidarem a minha. Quanto a elle o operario rural, se não gosa de todos os commodos possiveis, caminha em movimento ascendente para o bem estar, emquanto a grande e a mediana propriedade rural vão em temporaria decadencia. Sem negar as contrariedades e embaraços, não direi da grande e da mediana propriedade, o que não é o mesmo, nem tem a mesma importancia, mas sim da grande e da mediana industria agricola, é obvio que as minhas convicções sobre a situação relativa das duas classes são bem diversas das do meu tão indulgente contendor. Como elle, derivei-as de certa ordem de factos. Esses em que a opinião adversa se estriba pareceram-me, uns insufficientes, outros inadmissiveis, outros gratuitos ou mal interpretados. Illudir-me-hia? O insufficiente, o infundado, o impossivel, o gratuito, podem estar nos elementos de que me servi ou nas consequencias que d'elles tirei. É a esta luz que devo considerar agora as observações do meu amigo P. de M.. Obstaculos da vida privada obrigam-me, porém, a interromper aqui a serie das idéas que me occorrem sobre a materia. Em breve espero atar-lhes o fio e chamar de novo sobre ellas a attenção de v. ex.^a. VII *Lisboa, outubro 1874.* Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--É pela base que o sr. P. de M. começa a demolição das considerações, que me levaram a crer que a emigração rural tem por causa prominente a insufficiencia do salario e conseguintemente a miseria do jornaleiro. Entende elle que, se quizermos habilitar-nos para estudar a questão, devemos previamente queimar os documentos officiaes onde se registam os factos relativos ao assumpto, e ir estudar estes pessoalmente nos diversos districtos do reino, porque os empregados subalternos de administração são ignorantes, inhabeis, sem consciencia da propria responsabilidade, e porque a estatistica não passa de uma sciencia conjectural que cumpre pôr de parte. Hesito, na verdade, em tomar o bordão de peregrino e correr os dezesete districtos do reino só por estes fundamentos, porque duvido de que sejam seguros. Os funccionarios subalternos, expressão demasiado vaga que pode abranger toda a jerarchia administrativa, exceptuados os membros do governo, são como o resto da sociedade, de cujo seio saem e a cujo seio voltam, ignorantes uns, illustrados outros; uns remissos e desleixados no exercicio das suas funcções, outros activos e zelosos; uns sem consciencia do seu dever, outros pontuaes e briosos. A idéa, infelizmente vulgar, de que o funccionario publico é geralmente mau, parece-me inexacta e injusta. Como empregados e como homens não são peiores nem melhores do que nós, os que não pertencemos a essa classe, o somos, quer no exercicio das nossas respectivas profissões, quer na nossa vida civil. Se a palavra official é indigna de credito, não sei d'onde derive o melhor direito da nossa a ser accreditada. Se acaso eu fosse de concelho em concelho interrogar o proprietário rural não lavrador, o lavrador proprietario, o lavrador rendeiro, o caseiro ou colono parciario permanente, o seareiro ou colono parciario annual, o singeleiro, o criado de soldada, o jornaleiro proprietario, e o simples jornaleiro, sobre a situação especial de cada uma d'estas classes e sobre as suas mutuas relações, estou prevendo que, no fim da peregrinação, havia de achar-me possuidor da mais estupenda collecção de affirmativas contradictorias, de mentiras evidentes, de factos improvaveis ou deturpados, de accusações apaixonadas, de convicios reciprocos, resultados ordinarios da lucta de interesses oppostos. Porque preferir esse meio de informação ás declarações da auctoridade local, sobretudo quando é exercida por individuo estranho á parochia, ao concelho, á comarca, ao districto? Se no meio das collisões de interesses a corrupção pode leval-o a transfigurar os factos, não o fará, por certo, em beneficio da classe dos operarios. Para apreciarmos por nós mesmos as situações absoluta e relativa do industrial agricola e do operario rural seria necessario que, além de termos a consciencia segura acerca da propria imparcialidade, exercessemos por dois ou tres annos a profissão de agricultores em cada um dos diversos districtos do reino. Sem isso, a estatistica é inevitavel; ou estatistica obtida dos que tem responsabilidade, que não nego possam illudir, ou estatistica irresponsavel, e, o que mais é, interessada. Abranger a totalidade dos factos economicos da industria agricola de um paiz inteiro pela propria observação não cabe nem na vida nem nas forças de um individuo. Pode essa observação dilatar-se por uma área maior ou menor, mas será sempre assás limitada em relação ao todo, embora produza ás vezes excellentes monographias que sirvam de correctivo aos erros officiaes; mas colligir, de modo mais ou menos imperfeito, a generalidade dos factos só o alcançam a vista e a acção dos poderes publicos que se estendem a todo o paiz. Como nota De Lavergne; as estatisticas geraes servem de aferição ás observações individuaes. «Seria cousa nova--diz elle--o supprimil-as, como se, para vermos mais claro, forcejando por accender um facho, começassemos por apagar outro[14]. Se a rejeição dos meios officiaes de informação me parece inconveniente e injusta, mais singular acho ainda a condemnação absoluta da propria estatistica, votada ao ostracismo como sciencia conjectural. Ha aqui forçosamente um equivoco. A estatistica tem por objecto colligir e ordenar methodicamente os factos sociaes que se podem exprimir com algarismos. Nada menos conjectural. Se em vez de factos se colligem supposições, não se faz estatistica, faz-se novella. Na estatistica applicada é que são possiveis as conjecturas e os erros que d'ellas tantas vezes derivam; mas inferir d'isso a inanidade da estatistica é o mesmo que negar a validade scientifica da arithmetica, porque muitas vezes se erram sommas ou multiplicações. De que dependem por via de regra as leis e providencias de indole generica, sejam de ordem juridica ou moral, sejam de ordem economica? Dependem de um estudo estatistico correlativo. É n'esse estudo que está a sua razão de ser. Quando, convencidos da existencia de uma enfermidade social, desejamos submetter á opinião publica os arbitrios que nos occorrem para a remover, e estes arbitrios tem de estribar-se nos factos que a explicam ou caracterisam, podemos contrapor livremente ao voto das maiorias o voto individual pelo que toca ao valor e significação d'esses factos e ás illações que d'elles se hão de tirar. Domina ahi o raciocinio e não a auctoridade. Quanto, porém, á existencia dos mesmos factos, as nossas affirmativas ou negativas hão-de esteiar-se em demonstrações claras e indubitaveis, ou havemos de admittil-os como a sociedade nol-os subministra. Querer que esta acceite o nosso vago testemunho, contra o testemunho individuado dos seus agentes, parece-me exigir de mais. Podemos recusar as informações d'elles quando evidentemente impossiveis ou absurdas, porque n'esse caso o senso commum exerce a sua supremacia; mas nem por isso as nossas affirmações em contrario precisam menos de provas incontrastaveis. Esta é que me parece a boa doutrina. Mas de que estatisticas me servi eu para verificar se a miseria do operario rural era uma realidade, ou se era fundado o clamor dos cultivadores contra a exorbitancia dos jornaes? Servi-me das indicações subministradas por esses funccionarios do governo, para com os quaes se mostra tão severo o meu illustrado antagonista? Apenas me referi ás opiniões de alguns, que me não parecem ignorantes ou indifferentes. Como prova de que nem elles nem eu nos enganavamos sobre a insufficiencia do salario, recorri á comparação dos preços do meio dos principaes generos de alimentação do trabalhador, e dos preços do meio dos salarios. Estes elementos do calculo encontrei-os nos mappas communicados pelas camaras municipaes. Nos concelhos onde predomina a propriedade rustica, as vereações são compostas de proprietarios e lavradores, ou, pelo menos, de individuos que mereceram a sua confiança, porque são elles que preponderam nas eleições, pelo numero e pelas influencias. Fiei-me, pois, em documentos de magistrados independentes do governo, e, o que mais é, representantes da classe, cuja sorte o sr. P. de M. parece achar mais digna de piedade que a dos trabalhadores. Os preços do meio não foram de certo inventados para servirem aos meus argumentos. A fixação annual d'elles é uma funcção exclusivamente municipal; é um facto notorio, indubitavel, necessario. Depende d'isso a realisação de certos contractos, a solução de certos encargos, e até o cumprimento de mandados judiciaes. Haverá inexacções, para mais e para menos, na fixação de taes preços; mas semelhantes inexacções compensam-se umas pelas outras. Os meus calculos podem ser erroneos; mas as bases sobre que assentam, creio-as inconcussas. É singular! A situação da classe dos trabalhadores melhora gradualmente, emquanto a dos proprietarios ruraes e lavradores peiora. E todavia estamos de accordo em suppor que o signal do melhoramento da classe operaria consistiria em ir-se transformando o simples jornaleiro em proprietario. Parece que n'esse caso deveriamos deplorar a imprevidencia do trabalhador que abandona uma situação progressivamente vantajosa, para entrar n'outra que vai em decadencia. O meu talentoso adversario sentiu que as suas affirmativas tinham o que quer que fosse que suscitaria dúvidas. Explicou-as pois. A grande e a mediana propriedade luctam com difficuldades e encargos novos, a que foge naturalmente a pequena cultura, que tem limitadas precisões, que vive vida frugal, e que não tem de pagar o trabalho que a si mesma subministra. Será esta explicação exacta e sufficiente? Suspeito que não é. Os mais onerosos encargos que definhavam antigamente a industria agricola desappareceram em 1834 tanto para a grande como para a pequena cultura. Esmagam-na os novos tributos directos? A verba total da contribuição de repartição, que nos dizem representar ás vezes 12, 14 e mais por cento do liquido da producção nacional, está por si mesma revelando o que é essa contribuição directa, e ainda melhor se a compararmos com a verba total dos rendimentos annuaes das nossas alfandegas, que, na sua generalidade, representam uma percentagem de 10, de 20, de 30, ou ainda de mais, se quizerem, sobre o valor venal dos objectos que, na maxima parte, forçosamente se hão-de comprar com o producto liquido do trabalho nacional, trabalho que sobretudo se manifesta nos valores creados pela agricultura, e que indirectamente tem tambem de pagar as percentagens do fisco e os ganhos do commercio. Todos nós sabemos um pouco da historia contemporanea do tributo directo, ácerca do qual um illustre deputado, o sr. Carlos Ribeiro, já teve occasião de dizer notaveis verdades. Se, porém, na apreciação da materia collectavel, da renda e dos lucros agricolas, ha erros graves, não creio que taes erros revertam de ordinario em proveito dos proprietarios humildes e dos simples jornaleiros. Mas, sejam quaes forem as nossas opiniões sobre o assumpto, o que me parece evidente é que os melhoramentos materiaes do paiz nos ultimos quarenta annos tem aproveitado, pela maior parte, á grande e á mediana cultura. Possuimos caminhos de ferro, centenares e centenares de leguas de boas estradas, principaes incentivos do desenvolvimento agricola; temos a propriedade menos sujeita a extorsões e violencias publicas e privadas; temos a liberdade e a paz, sempre e em toda a parte fecundas de progresso e riqueza; temos dezenas de productos da industria rural insignificantes ou desconhecidos para a exportação ha cincoenta annos, e que hoje a fazem engrossar em milhares de contos de réis. Affirmando que em algumas leis e instituições do paiz, e no nosso systema fiscal, ha embaraços para a industria agricola, não creio que sejam elles taes que annullem essas immensas vantagens, e sobretudo que não abranjam a pequena como abrangem a grande e a mediana propriedade. O meu tão cortez adversario aponta um facto como prova de que a sorte dos proletarios ruraes tem melhorado. É a frequente accessão de um ou de outro, durante os ultimos vinte annos, á posse da propriedade. Reconheço a verdade do facto e o meu unico desejo é que elle se realise em larguissima escala. Não é, porém, de vinte annos a esta parte que o phenomeno se dá. Dá-se desde seculos remotos. Os archivos do estado, das ordens monasticas e militares, das casas nobres, dos cabidos e mitras, das pessoas, em summa, physicas ou moraes que tinham ou tem o dominio da terra, ahi estão para o provar. Impediu d'antes, impede isso hoje, que a grande maioria dos chefes de familia obreiros sejam simples proletarios? Se nenhum de nós duvida da excellencia do meio, porque comparativamente é elle tão pouco efficaz? Terei occasião de submetter a v. ex.^a algumas considerações, que me persuado farão sentir como no complexo das nossas leis civis e de fazenda se encontram graves obstaculos á posse do solo pelo proletariado, ao passo que fallecem os incitamentos para esta se realisar. O que explica a accessão do simples jornaleiro á propriedade é a sua paixão ardente por ella, o seu amor á terra, que o faz tantas vezes vencer esses obstaculos, que o fez vencel-os ainda em epochas bem sombrias da historia do colonato. Crê, pelo contrario, o sr. P. de M. que o proletario tem hoje não só grandes facilidades de acquisição, mas tambem vantagens superiores ás dos grandes e medianos proprietarios para obter prosperos resultados. Quanto a estas ultimas, diz-nos elle que o pequeno agricultor tem poucas necessidades, vive vida frugal e não paga o trabalho que fornece a si mesmo. São, quanto a mim, bem limitadas as necessidades inevitaveis, impreteriveis, da vida rustica, e estas communs ao grande, ao mediocre e ao pequeno agricultor. As outras, mais ou menos facticias, seria excellente para os progressos agricolas que se contivessem sempre dentro da orbita dos recursos de cada lavrador ou proprietario rural. Não reputo grande fortuna do pequeno agricultor não poder crial-as porque não tem meios de as satisfazer. Por outra parte, a frugalidade não é uma virtude monopolio de nenhuma classe; está á disposição de todas as vontades e de todas as consciencias austeras. A mesa mais ou menos opipara é negocio alheio a este ou áquelle methodo, a aquellas ou a estas condições da agricultura. Tambem não me parece que o pequeno agricultor que não paga o trabalho a outrem tenha alguma vantagem em não dar esse dinheiro, fazendo os serviços por suas proprias mãos. Quem paga o trabalho da producção é o producto. O salario representa a manutenção do obreiro. Que o ganhe comsigo, que o ganhe fóra, ha-de viver e manter-se. A verdadeira vantagem do jornaleiro proprietario é aproveitar a energia dos proprios braços nos dias, nas semanas, nos mezes, em que não encontra quem lhe pague essa energia. Se quando acha serviço alheio, prefere o seu, não faz mais do que depositar na caixa economica chamada a terra o salario d'aquelle dia. A sua situação, assim considerada, é a mesma dos grandes e dos medianos agricultores-proprietarios. Como elles, representa duas entidades economicas--o dono da terra que aufere a renda, e o industrial que aufere o lucro liquido. A importancia dos jornaes que venceu como trabalhador não se confunde nem com a renda nem com o lucro: é uma deducção que ha a fazer no valor bruto da producção. Outra ordem de factos vem confirmar isto mesmo. É vulgarmente sabido que na grande e ainda na mediana cultura o producto liquido é proporcionalmente maior do que na pequena, e o producto bruto maior n'esta do que n'aquellas. Porque? Porque nas primeiras o emprego das machinas, o poder dos motores, a divisão dos misteres, o trabalho não interrompido e por grandes massas homogeneas, a simplificação das operações, e outras vantagens analogas, reduzem o custo, embora tambem, até certo ponto, reduzam o resultado. Na pequena cultura o emprego exclusivo ou quasi exclusivo dos braços, o zelo com que estes trabalham, o esmero com que os serviços são executados, os adubos frequentes, a pulverisação da terra, o aproveitamento nas colheitas, a vigilancia minuciosa nas pequenas cousas, que é um dos motivos da prosperidade moral, mas que exige tempo e applicação, explicam a superioridade relativa do producto bruto. Resultam d'estes factos diversos dois phenomenos oppostos. O grande ou mediano cultivador consome comsigo e com os seus uma pequena porção do que produz, e vende a maxima parte. Com o pequeno succede exactamente o contrario. Consome a maior parte dos productos, elle e os seus. Vende pouco; mas esse pouco, ás vezes associado com os jornaes ganhos em serviço alheio, suppre melhor ou peior aquellas necessidades da familia que não podem satisfazer-se com os generos da propria lavra. Que significa este consumo quasi inteiro dos productos? Significa salarios, seu, da mulher, dos filhos; significa terem-se aproveitado bem todas as forças uteis da familia, emquanto no trabalho interrompido e vacilante do simples jornaleiro uma grande parte d'essas forças são annualmente annulladas. No pensar do sr. P. de M., a pouco onerosa acquisição da terra pelo aforamento, a parceria agricola, e, ás vezes, as sobras do salario, estão facilitando ao trabalhador rural o goso da propriedade. Ignoro como a parceria agricola facilita ao trabalhador o goso da propriedade. Saberá explical-o o sr. P. de M.. Os salarios capitalisados a que se refere conheço-os de ha muito; de uma epocha em que elle, provavelmente, apenas começava os seus longos e profundos estudos sobre estas complexas materias. Paguei-os e vi capitalisal-os, em enxugos de ribeiras paludosas e em extensas lavras de arroz, entre as bahias do Tejo e do Sado. Quem eram, porém, os capitalisadores? Mancebos solteiros, no vigor da edade, que vinham durante mezes trocar a saude e alguns annos de vida n'um clima insalubre por poucas moedas de economias, obtidas mais pelas pequenas empreitadas do que pelo salario. E ainda assim, para enthesourarem limitadas sobras, cumpria-lhes cortar pelo estricto necessario, por uma alimentação já de si insufficiente n'aquellas paragens, e não raro o enfraquecimento physico e a insalubridade do clima tornavam as longas doenças herdeiras d'esses peculios. Os cultivadores sinceros d'ente Tejo e Sado poderão dizer ao meu humano contendor se eu descrevo um facto isolado ou assás commum. Este meio indirecto de chegar á propriedade não me parece merecer nem confiança, nem applauso. Chamo-lhe indirecto, porque não é immediato nem exclusivo para que o proletario rural, isto é, para que o homem que nada possue, senão a propria actividade e a robustez dos proprios braços, entre no goso da propriedade. Todo o individuo que adquire um capital maior ou menor, seja por que modo for, pode convertel-o em dominio territorial. Fal-o, em regra, por um contracto oneroso, embora variem as fórmas d'esse contracto. Ora o sr. P. de M. aponta como primeiro instrumento da conversão do trabalhador em pequeno proprietario o aforamento, que qualifica de pouco oneroso. Se o é actualmente para o pobre, teremos depois occasião de o examinar. Em todo o caso, fazendo essa restricção, reconhece que não pode ser para o jornaleiro um meio senão excepcional, e as ponderações que fiz, na segunda carta que tive a honra de dirigir a v. ex.^a, sobre a quasi impossibilidade em que está o simples trabalhador chefe de familia de fazer economias na alta transitoria dos salarios, não me parecem de desprezar. De certo, se foram mal cabidas, o meu illustre contendor não levará tão longe a sua indulgencia para commigo, que deixe de corrigil-as ou refutal-as. Resta o aforamento; resta a emphyteuse, considerada absolutamente e em si. A emphyteuse, sim; n'essa creio eu. No meu modo de ver, esta enorme vulgaridade, esta tradição dos seculos, para a qual certos theoricos modernos olham com scientifica sobranceria, é a mais poderosa alavanca para a um tempo afastar da emigração os jornaleiros ruraes e alistal-os entre os defensores da propriedade, da paz e da ordem. Apezar de todas as contrariedades, da falta de auxilio social sufficiente no sentido de obter taes fins, esse elemento vivaz e fecundo, ajudado pela ambição de possuir a terra, que domina o proletario rural, está ha muitos annos produzindo o bem. A questão é se precisa de ser modificado e por que modo, quaes os obstaculos que ha a remover para que elle funccione com toda a sua energia, e de que favores carece para esta se tornar mais forte e de mais rapidos e seguros effeitos. Reservo, como já disse, para logar opportuno expor a v. ex.^a o que penso a este respeito. São alvitres de um profano. Os competentes acharão outros melhores; mas cada qual paga á sociedade o seu tributo de idéas em conformidade dos seus recursos intellectuaes, como no imposto directo cada qual _deve_ pagar na proporção dos seus haveres. O que é certo é que sobre este ponto tenho por mim a valiosa auctoridade do sr. P. de M., que não deixará, com a sua mil vezes superior sciencia e experiencia, de supprir, emendar, e estabelecer mais solidamente o que nas minhas opiniões houver incompleto, erroneo ou mal fundamentado. Não desejo que, em geral, o jornaleiro venha a possuir algumas geiras de terra e uma choupana, porque queira ou supponha que n'essa situação fique em melhores condições relativas que o grande e o mediano proprietarios, nem que possa eximir-se de trocar com elles o trabalho pelo jornal. Os meus desejos são mais modestos. Vejo n'isso unicamente um meio real de tornar permanente e sufficiente o salario da familia obreira, applicada e fructifera toda a potencia do trabalho nacional em relação á riqueza agricola. Escuso de affirmar de novo a minha crença ácerca do bem que d'ahi ha-de resultar para reduzir consideravelmente a emigração e fortificar a sociedade, emquanto é tempo, contra os perigos que surgem, embora em remoto horizonte. Que o proprietario cultivador mais ou menos abastado possua os commodos e gosos que o habito converteu para elle em necessidades; mas que o trabalhador tenha os meios de se isentar da miseria pelo trabalho; que a familia obreira desconheça a nudez, a fome e a falta de abrigo. O christianismo, a humanidade e a justiça impõe ás consciencias honradas o dever de adherirem a todos os esforços que se façam em tal sentido. A classe media, a classe predominante, se pensar n'isso, verá que faz um bom negocio associando-se a este pensamento. O egoismo, quando illustrado e sensato, pode muitas vezes ajudar a obter o bom resultado de conselhos sinceros e moderados, que, se até certo ponto aproveitam aos desvalidos, porventura aproveitarão ainda melhor ao interesse d'aquelles que, ignorando a historia dos grandes cataclismos das sociedades, vêm n'esses conselhos leaes o intuito de os prejudicar. O artigo do sr. P. de M. conclue por me chamar a um terreno ardente e escorregadio, no qual cuidadosamente tenho evitado entrar. É o das relações moraes entre o operario rural e o grande ou mediano cultivador. Não vou. Sei aonde elle me pode conduzir. N'esta edade, ama-se a paz. Todavia, isso não obsta a que me associe cordealmente aos votos que o meu illustre adversario faz para que nos campos se restaurem os laços da vida moral. Tem-nos, com effeito, despedaçado quasi completamente as luctas de ambições politicas, a cubiça imprevidente de influencias obscuras, a depravação e a incapacidade do clero, o vicioso e incompleto das instituições, o desleixo dos governos, a impotencia das magistraturas ante a preponderancia de forças extra-legaes. É o que explica de sobejo a decadencia moral do campo. Nos sitios em que vivo, não conheço esses reformadores de má nota, principaes missionarios de idéas perniciosas e dissolventes de que o meu caro contendor se queixa, salvo se eu proprio o sou, sem d'isso dar tino. Creio mais facil descobril-os entre as populações urbanas. Pela minha parte, se pequei, foi na persuasão de que as vozes que soam do pulpito da imprensa não chegam aos ouvidos do rustico trabalhador, e de que, ainda quando as ouvisse, elle não as entenderia. Persuadi-me de que fazia bom serviço ao paiz se dirigisse aos animos dos que podem ouvir-me e entender-me palavras que os fizessem reflectir sobre os seus verdadeiros interesses, e lhes despertassem o sentimento em que, por assim dizer, se encerra todo o christianismo--a piedade para com os que padecem. Estou certissimo de que a alta intelligencia do sr. P. de M. faz plena justiça ás minhas intenções. Que outros a façam ou não, pouco me importa. Todas as classes sociaes, cujos interesses, mais ou menos legitimos, são feridos por qualquer opinião, acham sempre essa opinião perniciosa e dissolvente. É a natureza humana. Nada mais certo do que a necessidade de supprimir a anarchia moral e estabelecer o respeito _mutuo_, não direi entre as diversas classes, mas entre os direitos das diversas classes ou categorias sociaes. No campo e na cidade, a moral publica é egualmente necessaria: n'este ponto, não é possivel a discordancia entre nós. Que o jornaleiro e o creado ruraes se abstenham do tão generalisado vicio dos pequenos, mas continuos furtos e estragos nas grandes, nas medianas e nas pequenas propriedades; que dêem ao cultivador, ao amo, o trabalho que lhes devem pelo jornal ou soldada que recebem, cumprindo um contracto livremente celebrado; que não tornem pouco digna de compaixão a sua miseria, pelo jogo, pela embriaguez, pela devassidão; que aprendam a respeitar os laços santos da familia; que por preguiça, indolencia ou genio brutal, não causem perdas graves e diarias no capital movel ou semovente do agricultor; que não tractem, por todos os meios que a malicia e a dissimulação lhes suggerem, de transtornar os melhoramentos de cultura, que em beneficio proprio, e muitas vezes em beneficio d'elles, tenta com sacrificios custosos o grande ou o mediano cultivador; que não busquem vingança dos procedimentos que reputam injustos com a calumnia, com o incendio covarde, com as aggressões atraiçoadas. Forcejemos todos por arredar d'estes habitos funestos o trabalhador rural. Mas que o grande ou mediano proprietario ou agricultor... Agora reparo que esta carta vai já demasiado longa, e que excedo os limites rasoaveis de ser importuno. Tractarei de me cohibir de futuro, quando outras occupações me permittirem dirigir-me de novo a v. ex.^a. VIII Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Nas cartas precedentes tenho dicto e repetido que, na minha opinião, o mais poderoso instrumento para combater de modo efficaz a emigração do trabalhador rural, quando ella proceda do desequilibrio entre as suas necessidades impreteriveis e os seus meios de as remediar, seria o promover energicamente os aforamentos. Accrescentei que as providencias dirigidas a occorrer a um mal assás grave seriam ao mesmo tempo prevenções não menos efficazes para obstar ás perturbações profundas que ameaçam a Europa, contra as quaes as outras nações se premunem, e de que não devemos suppor que ficaremos isentos. Não basta, porém, dizer isto. É preciso descer a considerações mais particularisadas sobre o systema emphyteutico; fazer sentir toda a extensão da sua benefica influencia; examinar os obstaculos que se oppõem ao seu desenvolvimento; ver como, até onde, e em que sentido, a lei deve promovel-o, sem quebra das maximas fundamentaes do nosso direito publico, mas, sobretudo, sem a minima offensa do direito de propriedade, que precisamos de fortificar e não de enfraquecer. As vicissitudes da emphytheuse, as suas transformações successivas, o seu maior ou menor predominio em diversas epochas e nos diversos paizes da Europa central e meridional, desde a sua origem na sociedade romana até o nosso tempo, são cousas alheias á questão da sua indole actual. Tomemol-a como a constituiu a nossa legislação civil, e vejamos depois se esta legislação tem de ser modificada para que ella possa desenvolver completamente a sua acção em chamar a classe trabalhadora, exclusivamente trabalhadora, ao goso da propriedade. Dos tres elementos em que se decompõe o producto da industria agricola, a renda, o custo da producção, e o lucro do agricultor, elementos que a rigorosa analyse reduziria a um unico--a retribuição do trabalho, tanto physico como intellectual, tanto consolidado como em acção--o que, no predio emphyteutico, apresenta um modo de ser especial é a renda. No predio allodial, o trabalho consolidado e, por assim dizer, n'elle immanente, d'onde a renda deriva, é sempre e integralmente do proprietario. Se este deixa a outrem a faculdade de cultivar, não lhe transmitte a minima parte do seu dominio pleno. A concessão é temporaria, por mais longa que seja, e a quebra de qualquer condição do contracto de arrendamento pode annullal-o. D'esse contracto deriva a fruição do uso transitorio da terra; nunca, porém, a do uso perpetuo. Se, com permissão ou sem permissão do dono, o rendeiro consolida ahi algum trabalho, este, retribuido ou não retribuido pelo proprietario, conforme as circumstancias, incorpora-se forçosamente no dominio pleno. Na emphyteuse o dominio divide-se em directo e util. Ha dois possuidores: um do senhorio eminente, outro do uso perpetuo. Cada um dos dois factos, na sua esphera, é completo, absoluto. Economicamente, o dominio directo corresponde á propriedade do capital de trabalho consolidado na terra até o acto do aforamento: o censo ou foro representa a renda d'esses valores accumulados, o juro d'esse capital productivo. O uso perpetuo ou dominio util habilita o acquirente a consolidar no predio adquirido novo trabalho, capital novo, cuja renda é sua. Abstrahindo da solução do foro e das consequencias que d'isso derivam, o emphyteuta está perfeitamente na situação do proprietario allodial. O codigo civil, abolindo o laudemio, presuppoz implicitamente esta doutrina. O laudemio representava, na hypothese de venda, uma quota dos valores capitalisados na terra pelo foreiro, deduzida do preço total do predio, em beneficio do senhor directo. O codigo respeitou, quanto ao passado, a extorsão consentida e absolvida pelo contracto; mas prohibiu que continuasse de futuro á sombra de uma praxe, cujo unico fundamento era um inveterado abuso. Reconheceu no praso duas propriedades incorporadas no mesmo solo, mas distinctas e ambas completas na respectiva esphera, e por isso equiparou no privilegio do direito de prelação o senhorio e o foreiro. Á luz economica, o foro não pode effectivamente ser senão a representação do juro ou renda de um capital de trabalho associado inseparavelmente com a terra. No estado actual das nações mais ou menos civilisadas a separação da terra e do trabalho seria difficil. Por via de regra, só pode dar-se na abstracção, subjectivamente: no real, andam sempre unidos. A meu ver, o trabalho é a unica base do direito de propriedade territorial, como de quaesquer direitos analogos, e é a essa luz que elles podem defender-se com vantagem das aggressões socialistas. A terra, considerada em si, exclusivamente, é tanto objecto do direito de propriedade, como a atmosphera, a luz, a chuva, o vapor, a electricidade. As suas forças productivas dormem inuteis e infecundas emquanto não as desperta o trabalho, e o trabalho é a prolação do individuo, a manifestação da sua intelligencia e da sua força. A sua intelligencia e a sua força estão lá. Mutilam-no se o expulsam do solo vivificado por elle. Se consumiu o producto que resultou d'aquelle facto, voltou ao individuo o que do individuo saira. Se não o consumiu; se o converteu em instrumento cooperativo da nova producção, essa deriva tão completamente da sua intelligencia e da sua força, como o primeiro producto. Assim por diante. D'ahi a perpetuidade inseparavel d'este direito primario; d'ahi a faculdade da transmissão, que as leis positivas regulam, mas que não criam, porque procede inevitavelmente de um direito primordial. Na emphyteuse o dono do solo nada, em rigor, transmitte ao foreiro; retira, apenas a sua acção sobre a terra; e como o capital do trabalho ahi accumulado não pode separar-se d'ella, em vez de o transmittir por um preço convencionado, como na venda, fal-o representar pelo juro respectivo. É assim que a lei, na falta de outro meio de apreciação, considera como equivalentes ao capital do foro vinte prestações emphyteuticas. Parece oppor-se a esta doutrina o aforamento de terrenos incultos. Se, porém, descermos á analyse dos factos economicos e sociaes correlativos, achal-a-hemos confirmada por aquillo mesmo que apparentemente a infirma. Peço a attenção de v. ex.^a para as subsequentes considerações. Ver-se-ha depois quanto ellas importam para resolver, sem offensa dos principios, certas difficuldades que obstam á accessão do proletario á propriedade territorial. O trabalho humano que vai, transformado em valor, incorporar-se n'um tracto de terra nem sempre tem a apparencia de uma incorporação real. Se, por exemplo, construo um aqueducto para regar um campo, e o levo, atravez de predios alheios ou de terrenos de uso commum, até á beira d'aquelle campo, o trabalho ou capital que custou o aqueducto está inherente, na sua manifestação sensivel, a esses predios ou terrenos; mas o seu valor adhere ao campo que as regas vão fecundar. Ás vezes é um trabalho alheio e individual, feito sem a minima intenção de me beneficiar, que vem, pela força das cousas, tornar-me participante dos seus resultados permanentes, e incorporar no meu dominio uma porção do seu valor. Possuo, por exemplo, um predio situado na parte inferior de um valle varrido por nortadas impetuosas e destruidoras. A parte superior do valle, e as collinas nuas que o cercam pertencem a outro dono. Para annullar a impetuosidade dos ventos, elle povôa as collinas de extensos pinhaes. Foi a sua unica intenção ser util a si; mas sem elle o querer, sem o pensar, o seu capital ou o seu trabalho ajunctou um valor á minha propriedade. Assim em outras hypotheses, que seria facil exemplificar. O terreno inculto, mais ou menos visinho de habitações, proximo de vias publicas, de fontes publicas, de canaes ou correntes que a mão do homem converteu em meios de transporte, tendo facil communicação com os grandes mercados; esse terreno, capaz de ser possuido, porque o complexo dos factos e de instituições sociaes tornou possivel a sua occupação, adquiriu um valor que se uniu inseparavelmente ao solo. Este valor é uma quota do trabalho collectivo da sociedade, que a sociedade destinou ao uso commum, e que só pode realisar-se individuando-se. A estrada é util, porque o individuo pode caminhar por ella; o canal, porque o individuo pode ahi navegar; a segurança, porque o individuo pode ser protegido por ella. Cousas taes e outras analogas tem valor só pela individuação. E esta interferencia do trabalho social na creação de valores que caem sob o dominio particular não é uma hypothese gratuita para explicar sob certo aspecto a propriedade territorial; é o facto constante, passado e presente, que sem interrupção se realisa, tanto quando a civilisação se inicía, como quando progride. Os poderes publicos, colligindo parcellas do trabalho individual e applicando-as com o intuito do bem commum, espargem ineluctavelmente os resultados dos esforços collectivos na creacão ou no accrescimo de valor em objectos de dominio privado, embora a manifestação sensivel fique ligada ás cousas que, na subtancia, pertencem á communidade. Supponha-se um tracto vastissimo de terreno inculto, contendo em si as mais energicas faculdades de producção, mas situado n'um paiz deserto, rodeado de brenhas impervias, murado por alcantís inaccessiveis, retalhado por correntes invadiaveis, e acolheita de animaes ferozes. Que valor apreciavel teriam os terrenos contidos n'essa região, fosse qual fosse a energia creadora dos elementos latentes alli? Nenhum. Abram-se, porém, largas estradas atravez das brenhas, achanem-se os alcantís, converta a arte os rios em vias aquaticas, ou domem as pontes as suas resistencias á communicação dos homens, façam-se brotar as fontes de agua potavel, destruam-se ou expulsem-se as feras, e o que não tinha valor impregnar-se-ha d'elle. Que o homem surja e se apodere de um tracto maior ou menor d'esses terrenos, a individuação realisou-se. Como d'antes, aquella superficie conserva o rude sello que ahi estampara a natureza: nada apparentemente mudou; e todavia, como lá se encontraram o homem e o valor, producto do trabalho social, a propriedade nasceu. As forças da natureza são dom gratuito de Deus. Empregal-as como auxiliares do trabalho é direito commum, direito egual para todos. Se me apoderei das da terra em certo espaço d'ella, só um direito melhor que o meu poderia vir depois destruir esse facto. Ora, o direito de outrem é precisamente egual ao meu. Ha, pois, duas forças eguaes que se equilibram. Portanto, o meu acto, que é anterior, subsiste. Não é ainda a propriedade; mas se o trabalho, quer collectivo, quer individual, veiu associar a esse acto uma parcella de valor--o elemento radical da propriedade--essa propriedade é minha, porque aquelle valor se incorporou e immobilisou no objecto em que exerço o meu direito ao livre uso das faculdades productivas da terra. Por outro lado, se uma parcella do trabalho commum cáe sob o meu dominio exclusivo, tambem n'esse trabalho commum ha, pela acção directa, ou representada no imposto, uma parte com que eu contribui. Que viesse augmentada ou diminuida, em consequencia das leis economicas e dos seus, muitas vezes imprevistos, e sempre incoerciveis effeitos, a quota que me coube é na essencia uma restituição. Assim, no territorio de uma sociedade organisada, om um grau maior ou menor de civilisação, o valor do predio inculto, sob o dominio de qualquer individuo, teve, ou n'elle ou nos que lh'o transmittiram, uma origem tão racional, constitue uma propriedade tão legitima, como o valor do predio cultivado. A unica differença está na diversa intensidade dos dois valores. De certo o possuidor do predio onde apenas se acha consolidada uma quota do producto do trabalho commum, não exigirá o mesmo preço de venda ou o mesmo foro que exigiria, se com essa quota se achasse incorporado o producto do seu trabalho directo. N'isto está unicamente a differença: diversidade de capital e diversidade de juro. Qual é, pois, o facto que se dá na emphyteuse? O possuidor da terra conserva ahi pelo dominio directo o que é seu, e só abandona o uso das faculdades productivas do solo, dom gratuito da natureza. Não ha pois transmissão de propriedade no contracto emphyteutico, quer este seja respectivo a terrenos incultos, quer a terrenos cultivados. Na emphyteuse ha um acto e um contracto: contracto de censo, de juro, de renda perpetua, como a linguagem juridica lhe quizer chamar; acto de abstenção do uso de certas forças naturaes que não podem constituir propriedade. Das precedentes considerações derivam duas consequencias luminosas que podem guiar os poderes publicos nos seus esforços para trazer o proletariado rustico a melhores condições de existencia, libertando-o da emigração quando a ella o fórça a miseria, ligando-o á manutenção da ordem e da propriedade pelo proprio interesse, tornando-o cooperador mais energico e efficaz do accrescimo da riqueza publica, e moralisando-o pelo bem estar domestico. A primeira consequencia é que todas as disposições legislativas tendentes a obter estes fins devem especialmente promover a emphyteuse nos terrenos incultos, onde, de ordinario, o foro é moderado, e onde o colono não pode deixar de incorporar no solo uma parte avultada do seu trabalho; convertido em valor immanente, em capital productivo, que augmente de anno para anno o bem estar da familia obreira, e crie para ella a verdadeira propriedade territorial. Aparcellar, por pequenas emphyteuses, vastos terrenos já reduzidos a cultura, tem vantagens e desvantagens que mutuamente se annullam e que seria longo e extemporaneo discutir aqui. Nos baldios, as desvantagens desapparecem e as vantagens subsistem, como depois veremos. A segunda consequencia é que no complexo de leis e providencias destinadas a elevar a condição moral e material do trabalhador agricola, o respeito ao direito de propriedade e á justiça nunca se ha-de preterir, á sombra de qualquer pretexto de utilidade commum, ou de qualquer sophisma politico mais ou menos subtil. O estado pode distribuir a quem entender, e como entender, a porção de solo que tem legalmente debaixo do proprio dominio. É uma pessoa moral que usa do seu direito. Se prefere a individuação allodial, em grandes ou pequenos tractos de terra, commette, a meu ver, um erro, mas erro legitimo. O que não pode é dispor do que é alheio, em nome das conveniencias sociaes. As leis agrarias, as leis de sesmaria, mais ou menos applaudidas outr'ora pela irreflexão, seriam na epocha actual, em relação á propriedade individuada, um absurdo brutal, uma pura violencia. Os desvarios do socialismo podem desculpar-se e perdoar-se quando rugem nos grandes receptaculos das profundas miserias; mas o socialismo, descendo das regiões do poder, que representa a sciencia, a consciencia e a vontade justa e serena da sociedade, será fatal ainda mais para as gerações futuras do que para a geração presente. Se a liberdade é contagiosa, o despotismo é prolifico. A mancenilheira, que mata, cresce e braceja como as arvores cujos fructos mantêm a vida. Em questões cuja solução possa collidir com a liberdade e a propriedade individuaes, cumpre sobretudo que a lei seja suasoria, e tenha, quanto for possivel, um caracter facultativo. A persuasão da lei consiste em oppor um interesse maior e novo ao interesse menor e antigo. Deixem o resto ás tendencias ingenitas do coração humano. Tenho pouca fé no bem que pode provir da extorsão ou de outra violencia, da quebra dos direitos originarios dos cidadãos. Vai-se longe, guiado pela mão da logica, logo que se entra n'este triste caminho. IX *Val-de-Lobos, janeiro de 1875.* Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Meu amigo, n'estes sitios, onde a oliveira, nos annos de safra, representa o mais importante papel agricola, e onde sempre as sementeiras das nossas terras, geralmente pobres, carecem de ser temporans, não sobra demasiado tempo ao cultivador, durante os mezes de outubro a dezembro, para estar enfileirando idéas, e sabe Deus se apenas phrases, sobre o papel. É por isso que tenho deixado respirar v. ex.^a da tediosa leitura das minhas cartas. Se, porém, a tardança lhe foi allivio, vai esta provar-lhe que ainda não expiou de todo o delicto de as haver provocado. A ultima das que a precederam suscitou a severidade da critica. Achei-me, sem saber como, paradoxal. Pasmará v. ex.^.a Não pasme. É que a palavra paradoxo significa hoje cousa diversa do que pensa. No nosso tempo significava uma proposição verdadeira ou falsa (de ordinario falsa) contraria ao sentir commum. Pois bem. Sabe v. ex.^a em que consistiram os meus paradoxos? Em suppor que havia direitos primordiaes, originarios, absolutos, e em imaginar (_horresco referens_) que o possuidor legal de um terreno inculto era dono legitimo d'elle. Podem ser dous erros grosseiros: mas que fossem paradoxos é o que nós não suspeitariamos quando frequentavamos as escolas. São-no hoje: que quer v. ex.^a que eu lhe faça? E todavia estes dous erros estão no amago de uma questão suprema--a da legitimidade ou illegitimidade das condições e essencia do liberalismo, do molde social por cuja manutenção ambos nós temos longamente combatido; v. ex.^a com os seus poderosos e variados meios; eu com os meus fracos recursos. Se porventura são erros, se acertos, havemos de averigual-o. Custar-me-ha entretanto considerar os taes paradoxos como desacertos, e provavelmente a v. ex.^a succederá o mesmo. Estou velho, e v. ex.^a tambem. Os velhos são tenazes em manter as suas opiniões da edade viril. Até, ás vezes, ignoram redondamente muita cousa boa, que não foi do seu tempo. Digo isto por mim. Ando no inverno da vida tão arredado do mundo e dos livros, que o ignorar os mais recentes progressos do espirito humano não é em mim nenhum milagre. A civilisacão, como os rios caudaes, deslisa pela amplidão das eras majestosa e serena, e todavia rapida. Quem não a acompanha nas suas incessantes evoluções acha-se abraçado com o erro quando cria abraçar a verdade. Nada mais facil do que estar eu dando hoje um lastimoso exemplo da exacção d'esta doutrina. Consinta-me, em todo o caso, v. ex.^a que, antes de proseguir, recorde e resuma aqui, nas menos palavras possiveis, o estado da questão sobre a qual teve a imprudencia de pedir o meu voto. É uma razão de ordem. Tracta-se da emigração para a America. Na minha opinião, salvo certos actos vulgares de protecção e policia, rigorosamente contidos dentro dos limites constitucionaes, nada ha a fazer sobre este assumpto, que seja fecundo e legitimo, senão proceder de modo que a miseria, causa efficaz da emigração, e quanto a mim a mais efficaz de todas, cesse de impellir os nossos trabalhadores ruraes para além do Atlantico. As demais causas de emigração ligam-se com a liberdade e responsabilidade individuaes, e n'um paiz livre, nada ou muito pouco seria licito aos poderes publicos tentar para as remover. Parece-me tambem que o grande e, talvez, unico meio de combater vigorosamente essa miseria consistiria em associar ao trabalho rustico a propriedade territorial, de maneira que mutuamente se auxiliassem para melhorar a condição do obreiro. Seguindo esta senda, fariamos ao mesmo tempo crua, mas incruenta guerra ao leviathan que surge ameaçador nos horizontes politicos, o internacionalismo, furtando-lhe o proletario do campo, o proletario seriamente perigoso, sobretudo nos paizes de apoucada industria fabril. A emphyteuse, na simplicidade a que a reduziu o codigo civil, não lhe deixando da emphyteuse romana senão a essencia e o nome, e que a lei pode ainda tornar mais facil, e promover, além d'isso, energicamente, afigura-se-me um instrumento completamente adequado á realisação d'esse grande intuito. Nem o busquei, nem o achei em nenhum recanto de qualquer livro exquisito, d'esses que nos vem de fóra e nos quaes tanta gente abdica a propria intelligencia. Nasci, cresci, vivi, envelheci ao pé d'elle. Tenho-o visto funccionar toda a vida: vejo ao redor de mim os seus maravilhosos effeitos. A emphyteuse está radicada nas tradições e nos habitos do nosso paiz. Acceitam-n'a, comprehendem-n'a o burguez e o rustico, o rico e o pobre, o douto e o ignorante: acceitavam-n'a e comprehendiam-n'a quando era uma cousa multimoda, complexa. Ninguem se crê nobilitado por ser senhorio directo; ninguem aviltado por ser emphyteuta. Se a frequenta mais a pequena propriedade, não a desconhece a grande. As provas do que vale para converter charnecas em campos ridentes, e para augmentar a pequena e mais esmerada cultura, estão escriptas na face da terra por todas as provincias do reino. Pode, em summa, dizer-se afoitamente que Portugal é o verdadeiro representante da emphyteuse na Europa moderna. Para um auctor de paradoxos, lá parece que estas idéas encerram trivialidades de mais. É o sentir commum; sobretudo o sentir dos homens do campo, cuja propensão para este antigo contracto é indisputavel. Na substancia, o meu modo de ver carece absolutamente de originalidade. Todas as demais considerações em que tenho entrado são accessorias, e em geral tendentes a justificar de antemão as condições com que entendo se deve applicar o meio proposto para se obter o fim desejado. A critica, na sua indubitavel superioridade, podia olhar com desdem para estas velharias e vulgaridades; mas, se admitte a existencia da molestia, podia tambem substituil-as pelas prescripções da sua therapeutica. Se, como supponho, porque a critica é ás vezes ambigua, queria condemnar a emphyteuse de hoje, que se divorciou do passado, não era preciso confundir factos distinctos da historia. Era mais simples e instructivo demonstrar os inconvenientes ou a inutilidade do meio proposto, se é que o reputa inconveniente ou inutil. É verdade que allude vagamente a anteriores e fugitivos escriptos, onde se contêm as fórmulas dos medicamentos applicaveis ao caso; mas isso parece-me que é exigir muito da retentiva de um espirito gasto e cansado. Depois, os que nos lerem, que serão bem poucos, porque estas questões não divertem a frivolidade, não tem obrigação de conhecer esses escriptos, e de os haver decorado. Convinha, por isso, expor, ou ao menos indicar os melhores arbitrios. Nunca é demais reaccender o pharol que allumia o navegante nas trevas do oceano. O sol esconde-se todos os dias á tarde; mas tambem ainda não se esqueceu de surgir todas as manhãs no oriente. A critica lamenta que se não fizesse, a proposito da emphyteuse, a historia clara e resumida de todos os vexames e extorsões de outros tempos, que até epochas bem recentes pesaram sobre a industria rural do nosso paiz. Não sei se isto é commigo, ou se é um artificio rhetorico para a critica poder fazer essa historia com aquella elegancia descuidosa, que só é dada ás grandes syntheses modernas. Se é commigo, a minha intelligencia não alcança que proveito se possa tirar, para a solução de um problema actual, do livro que pede a critica; porque não é nada menos o que ella pede. Do modo como se exprime, parece deduzir-se que, no todo ou em parte, a emphyteuse foi o instrumento d'esses vexames e extorsões. Sem isso, como perceber que papel havia de fazer no debate o exigido volume? A razão, porém, d'essa exigencia pretende dal-a a critica.--A historia da emphyteuse, e _em geral_ do operario rural (parece que o emphyteuta era uma especie do genero operario rural, do moderno proletario rustico) serviria para proporcionar á _classe desvalida_ o conhecimento do passado, afim de não desanimar e não ter a sua situação actual como a peior possivel.--Peço á critica me soffra dar tambem razão de mim. Estava persuadido de que as classes desvalidas do campo nem sabiam ler, nem tinham tempo para isso, e de que, ainda quando o soubessem ou o tivessem, não entenderiam a tal historia, de sua natureza obscura e difficil. Depois, a minha capacidade seria insufficiente para a fazer comprehender aos entendimentos mediocremente subtis das dictas classes desvalidas. Entendi que era melhor estudar os meios de tornar a sua sorte menos dura do que prégar-lhes a resignação e dizer-lhes:--«Paciencia, meus amigos. A vossa situação não é tão má como a pintam. Já houve peior do que isto.» Creio que, dicto a ellas e em relação a ellas, a prédica era não sómente inutil, mas tambem de mais que duvidosa exacção. Eu imaginava que a triste historia da oppressão das populações rusticas era alheia á emphyteuse; imaginava que, na origem, foi a historia do ergástulo dos latifundios que perderam a Italia, da escravidão rural entre os romanos, escravidão aggravada ainda mais pelas conquistas dos barbaros nas provincias do imperio em dissolução; imaginava que, depois, o escravo immobiliario tanto romano como germanico, cultivador do predio rural, fôra melhorando de condição ao passo que se convertia em servo da gleba ou adscripticio, e que fora n'essa situação que se transformara juridicamente de _cousa_ em ente humano, de ente humano em _pessoa_. Cria que, no occidente da Peninsula, uma parte d'estes adscriptos tinham passado nos seculos XI e XII a colonos pessoalmente livres de uma terra serva, e que fôra esta servidão (a servidão _adscripticia da terra_, de que falla a critica, nunca chegou ao meu conhecimento) que fizera adherir ao solo cultivado grande parte dos encargos, sujeições e vexames, que o servo adscripticio herdara do escravo immobiliario, e que o colono livre herdava do adscripto. É o que uma sciencia, que vejo ter caducado, ensinava ácerca da origem d'essa enorme variedade de direitos senhoriaes que, mais ou menos, continuaram a opprimir a agricultura até os nossos dias. Que tem com isto a emphyteuse? A emphyteuse romana era um contracto livre entre o proprietario e o colono espontaneo. Esta especie de colonato, perpetuado atravez dos seculos, nada tinha que ver com a condição das familias de origem servil que de paes a filhos cultivaram a honra, o couto, o proprio allodio não nobre, e o territorio reguengo. A tradição romana da emphyteuse exerceu n'aquella epocha, e ainda mais nos seculos immediatos, vasta influencia, mas foi em transferir uma parte do direito de propriedade, isso a que chamamos dominio util, para o industrial agricola. Se fez alguma cousa no sentido economico, foi tornar menos facil o abuso e a extorsão, definindo por um contracto os mutuos direitos e obrigações do senhorio e do cultivador. O simples reguengueiro, que agricultava o predio do Estado só porque seus paes e avós o tinham agricultado, passava a ter condominio n'esse predio pelo aforamento, ao passo que aldeias inteiras mudavam egualmente de situação juridica pelos aforamentos collectivos, que variavam de condições até o ponto de se tornarem alguns em rudimentos de concelhos. As _rações_ ou quotas de fructos, fluctuantes e incertas, convertiam-se em prestações fixas, que podiam não ser menos onerosas, mas que ao menos eram certas e sabidas. Ao mesmo tempo, nos dilatados alfozes dos grandes concelhos que se constituiam, sobretudo no sul do reino, a distribuição das terras, pelo sesmo, multiplicava largamente a propriedade allodial posto que tributaria, como nos seculos anteriores a diffundira a _presuria_ villan. O exemplo dos aforamentos nos territorios reguengos, e o temor de que os proprios colonos fossem buscar a fruição da propriedade plena, embora tributaria, no seio dos grandes municipios, induziam naturalmente os senhores de honras e coutos a transferir do mesmo modo para os agricultores um quinhão no dominio das terras immunes. A emphyteuse nem aggravava, nem alliviava encargos. Fazia mais do que isso: suscitava no coração do homem do campo dois altos sentimentos--o da propriedade, embora incompleta, e o de certo grau de independencia. Para nós seria bem pouco: para homens apenas emancipados era uma revolução; uma d'estas revoluções lentas e serenas, que de ordinario são as boas e duradouras. Herdeiros dos _presores_ plebeus dos tres primeiros seculos da reacção christã e herdeiros dos _privati_ mosarabes, confundidos com aquelles, já no seculo XII, sob o nome commum de _herdadores_, e representando a propriedade allodial não immune;--vizinhos dos concelhos a quem se distribuiram terras com pleno dominio e que tambem se confundiram com os antigos herdadores;--foreiros das aldeias por titulo collectivo, e foreiros por titulo singular de predios avulsos, nos reguengos, nas honras e nos coutos;--reguengueiros convertidos já em proprietarios nos fins do seculo XIV, mas obrigados á solução das rações, que tomaram de certo modo o caracter de um tributo, e que subsistiram até os nossos dias como vestigio do antigo stygma da servidão;--eis os individuos que, na velha monarchia, correspondiam ás varias especies de proprietarios actuaes, afóra os possuidores com dominio pleno dos predios privilegiados, que as revoluções contemporaneas, com sobejo fundamento, fizeram entrar no direito commum. Ao lado, porém, ou mais exactamente, abaixo d'este grupo, estava outro que não era fadado, como elle, para constituir, passados seculos, a parte mais numerosa e respeitada, senão a mais rica e mais culta da classe media--a dos proprietarios ruraes e agricultores. Constituiam ess'outro grupo os individuos de origem servil ou plebeia, que por causas diversas não tinham attingido a esphera da propriedade territorial ou que haviam perdido esta, e que eram conhecidos pelas varias denominações de malados, de solarengos, de homens de criação, de mancebos, de cabaneiros, de serviçaes, de soldadeiros, denominações que se encontram com frequencia nos antigos documentos, sobretudo nos foraes e nas compilações do direito consuetudinario dos concelhos. No seculo XIII aquella infima classe abrangia já uma avultada porção de individuos, que tinham por unica propriedade o trabalho. Tão consideravel era o seu numero, que se julgou necessaria, no reinado de Affonso II, uma lei contra a vadiagem, obrigando todo o que não possuisse bens de raiz a viver de algum mister ou a assoldadar-se com alguem, sob pena de ser expulso do reino. O preço do serviço d'estes proletarios, em conformidade das falsas idéas economicas d'aquelles tempos, era, annos depois, taxado, sobretudo em relação aos serviçaes do campo, n'uma lei de Affonso III. Na legislação dos subsequentes reinados e nos artigos de cortes as referencias a esta classe de individuos não são raras. Negar a sua existencia entre nós seria desconhecer, não só a historia social do reino, mas tambem a de todas as sociedades modernas. A critica, porém, confunde, não digo que de má fé, mas por menos pausada reflexão, esses dois grupos, tão distinctos d'antes como o são agora. Evidentemente andou por aqui a synthese. Depois de enumerar os varios tributos directos, os direitos senhoriaes, as rendas, as prestações emphyteuticas, os serviços, as rações e foragens das terras reguengueiras não aforadas e das immunes, diz que poderia oppor esse quadro á situação presente do _operario rural_, mas que não o fará. Tomo a liberdade de a contradizer, para ser mais justo com ella do que ella o é comsigo mesma. Não só não o fará, mas tambem não poderia fazel-o, porque é incapaz de fazer disparates. Pois o operario rural tinha, geralmente fallando, alguma cousa que ver com os tributos directos dos concelhos e da coroa, com os direitos senhoriaes das terras nobres e ecclesiasticas, com as gravosas prestações emphyteuticas, com os quartos e foragens reguengueiras, com os dizimos e primicias? Recaiam esses onus sobre elle, ou sobre o proprietario ou lavrador a quem servia? A consequencia de tantas extorsões era não se cultivarem senão as terras que podiam supportal-as e achar-se assim a maior parte do paiz inculto; era viverem o lavrador e o proprietario rural não privilegiado uma vida quasi tão angustiosa como a do operario; era o estacionamento ou o decrescer da população; era o fugir-se á miseria pelo respiradouro das emprezas maritimas e das conquistas, que consumiram as forças vivas do reino e que, enriquecendo-o na apparencia, o empobreceram na realidade, convertendo-o n'um gremio social, cujas feições caracteristicas foram por seculos o madraço e o mendigo. Sobre o salario rural não recaíam, nem por incidencia, esses onus. Creio o salario actual insufficiente emquanto provas positivas, que ha tanto tempo espero, não vierem infirmar as revelações da estatistica: não sei como n'esses tempos elle poderia ser inferior ao insufficiente. O trabalhador morria. Depois, para obstar á depreciação do trabalho lá estava o fatal caldeirão da portaria monastica, instrumento de equilibrio economico, que, dispensado por nós, a França aproveitou para fundir em _atelier national_. Assim, já no principio d'este seculo, quando ainda pesavam sobre a agricultura os mais gravosos d'esses antigos encargos, o salario rural attingiu ás vezes, n'algumas provincias, o preço de 500 réis, equivalentes quasi a 700 réis actuaes, maximo a que difficilmente pode hoje chegar[15]. O liberalismo fez desapparecer quasi inteiramente toda essa farragem de extorsões legaes. Quem ganhou com isso não foi o operario rural; foi o industrial agricola e o proprietario, quer allodial, quer emphyteutico. Seria entre estes, entre os que viveram em epochas passadas e os que vivem hoje, que racionalmente se poderiam instituir comparações. Deixo de o fazer em attenção á critica. Ella já me disse que a sorte actual dos agricultores e proprietarios ruraes era tanto ou mais digna de dó que a dos rusticos trabalhadores. Essas comparações deviam mortifical-a. A mim é que suspeito me não poria em grandes apuros a comparação das condições de existencia material do antigo ganha-pão com as condições economicas dos nossos proletarios ruraes. Não sei, meu amigo, se nas precedentes reflexões tenho disparatado muito ou caído em grosseiros paradoxos. Se tal é, seja indulgente com os tristes efeitos d'este rustico viver, que me obscurece o espirito. Affigura-se-me que essas reflexões deixam a pobre emphyteuse illibada dos crimes sociaes que lhe imputaram. Poder-se-hia, até, invocar em seu abono uma especie de _alibi_. Depois dos romanos, a propriedade emphyteutica só existiu entre os povos neo-latinos e no Baixo-imperio do oriente. Qual, porém, dos direitos senhoriaes, das extorsões, dos serviços pessoaes, das desvairadas exigencias dos poderosos e do fisco, que enumera a historia dos estados barbaros fundados nas provincias romanas, deixa de enumerar a historia dos paizes puramente germanicos? De certo a emphyteuse não os produziu, nem foi d'elles instrumento alli. Não estava lá. O que lá existiu parallelamente foi a escravidão pessoal e depois a servidão da gleba. Porque, pois, attribuir aos mesmos factos duas causas inteiramente diversas? Que o abuso do dominio territorial havia de influir mais ou menos nas transmissões emphyteuticas para a população rural gradualmente libertada, é certo, porque era inevitavel. Mas de quaes instituições, ainda d'aquellas que continuamos a manter e que reputamos mais necessarias ou mais beneficas, não abusava a prepotencia na edade media e nos seculos do absolutismo? A indole e as tendencias de qualquer epocha revelam-se em todos os aspectos, em todas as fórmulas da vida social. O sentimento das desegualdades humanas era tão exaltado e tão exclusivo, como o vai sendo hoje o da egualdade democratica; duas idéas verdadeiras, quando limitadas, que a exaggeração egualmente falsifica. A inferioridade, a vileza dos entes que trabalhavam, dos entes uteis, em contraposição á superioridade, á nobreza dos ociosos, quando não dos nocivos, foi uma crença radicada e duradoura de que se impregnaram as faixas e o berço das nações modernas, porque era ao mesmo tempo germanica e romana. A exaggeração, levada até o absurdo, manifestava-se em todas as relações sociaes. Só o christianismo foi a negação fulminante, a antithese d'aquella brutal persuasão, e a egreja catholica ufana-se de contar no gremio do seu antigo clero, das suas antigas celebridades, os mais perseverantes adversarios d'ella. Ao christianismo devem principalmente as classes trabalhadoras a sua emancipação. Se a egreja não fez mais, não fez, talvez, quanto devia e podia, é que se compunha de homens; e em todos os gremios, em todas as jerarchias, e em todas as epochas, são sempre os menos, são quasi sempre os poucos, que ousam luctar contra a corrente impetuosa e implacavel das opiniões dominantes. Repetirei, acabando esta carta, o que disse a principio. Não concebo a que fim practico pretendia chegar a critica, fazendo a resenha, a meu ver de um modo pouco exacto, de certo numero de extorsões, de direitos senhoriaes mais ou menos oppressivos, e até de tributos nem peiores nem melhores, juridica e economicamente fallando, do que alguns tributos actuaes, que a analyse deixaria em bem mau estado, se a analyse fosse cousa toleravel n'esta epocha das grandes syntheses. Tudo isto tem tanta relação com a emphyteuse do codigo civil como com o descobrimento da Australia. A critica, todavia, conclue _de tudo isso_ que a emphyteuse serviu muitas vezes mais para açoute do que para redempção dos pobres, e que o _homem de trabalho_ era, até epochas bem proximas, avexado pelos dizimos ecclesiasticos e _seculares_, pelos senhorios nos arrendamentos, pelos senhorios directos nas pensões e _rações_ dos predios emphyteuticos _e dos prazos_, pelo systema fiscal nas quotas tributarias, pelas camaras nos impostos municipaes e derramas. Mas, em summa, admitte-se ou não se admitte a emphyteuse? Se não se admitte, então _per te_ não admittamos nem arrendamentos, nem camaras, nem systema fiscal. Se, porém, a admittimos, deixemo-nos de viajar no passado, e vejamos como havemos de utilisal-a em beneficio do presente. Mergulhar-se nas trevas dos seculos medios, para nos ensinar que os campos ou terrenos cultivados pertenciam precipuamente aos padres e aos fidalgos, que devoravam tudo, e que os concelhos eram _recinctos_ para onde os cultivadores fugiam e onde tomavam outros officios, entre os quaes avultava o de serem creados dos principes e senhores, livrando-se do arado para viverem na ociosidade; devassar, digo, os arcanos mais secretos da historia, para nos ensinar estas e outras cousas singulares, é trabalho que pode ser util a mim e a alguem mais que, como eu, ignore essas particularidades; mas parece-me que em nada aproveita ás dolorosas questões do presente, que os poderes publicos tem de resolver, e em que os homens de boa e sincera vontade, com os seus maiores ou menores recursos, tem o dever de auxilial-os. Quando outras occupações mais instantes m'o permittirem, procurarei submetter á apreciação de v. ex.^a a minha defeza de ter soltado as condemnadas proposições de que existem direitos primordiaes ou originarios, e de que os predios incultos são de seus donos. Isto é negocio mais sério do que a absolvição historica da emphyteuse. Se essas proposições são desarrazoados paradoxos, o liberalismo é um absurdo e a Carta uma blasphemia. Tirem o caracter absoluto e intransigente a certa ordem de principios, e terão de descer de degrau em degrau, através das vacillações e divergencias dos socialistas, até ás regiões sanguineas e candentes do communismo. O que eu sei com certeza é que, ou seja pela emphyteuse, ou seja por outro qualquer honesto arbitrio, é melhor chamar o proletario do campo á propriedade rustica, do que deixar, com imprevidencia fatal, que o chame a communa ao chuço e ao petroleo, para subverter os dois fundamentos da vida social--a familia e a propriedade. X *Val-de-Lobos, 26 de fevereiro de 1875.* Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Um quinto artigo do sr. P. de M. acaba de fulminar-me e a minha ultima carta. Somos ahi discutidos, eu e ella. Aquelle artigo tem dois objectos: a manutenção das doutrinas contidas no que o precedeu, e uma desforra de quem lhes não guardou respeito. Peço a v. ex.^a me consinta que tambem divida esta carta em duas secções: uma sobre as doutrinas, outra sobre a desforra. Entremos na secção das doutrinas, que são o que importa aos que se interessam n'esta questão. Quanto á desforra, ninguem, creio eu, se inquieta por isso. Veremos por seu turno o que ella vale. Que foi o que alevantou a tempestade em que presinto que hei-de a final soçobrar? Pensando nos meios a que poderiamos recorrer para chamar ao goso da propriedade rustica o proletario rural, comecei por excluir d'esses meios as leis agrarias, as leis de sesmaria, que, renovadas por mais de uma vez, nunca impediram que Portugal fosse ao mesmo tempo um breve paiz e uma vasta charneca. As causas complexas e profundas que determinaram a decadencia da agricultura, a rareza da população, e a miseria das classes operarias, não se removem com leis agrarias. Depois, essas leis, condemnadas como impotentes pela historia, são no meu modo de ver injustas e illiberaes. Mudar-lhes o nome, atavial-as com disfarces não as tornariam melhores. Disse-o, e dizendo-o, não imaginava offender ninguem. Suppunha que já as tinham collocado entre os monumentos archeologicos das ruinas do Carmo. Sonhava. Fez-me tristeza o acordar. Estava e estou convencido de que, no seio das nações que chegaram a certo grau de civilisação, todo o predio cultivado ou inculto tem valor de troca, isto é, que constitue objecto do direito de propriedade; que no inculto o valor provém unicamente do trabalho social, no cultivado provém em parte d'este, em parte, mas principalmente, do trabalho de determinados individuos. Desde que n'um e n'outro ha valor, ha em ambos propriedade. De quem é esta no inculto? Cria e creio que é de quem o possue. O Estado, representando a sociedade, e convertido em pessoa moral por uma convenção, por uma ficção de direito, é capaz de possuir, do mesmo modo que as demais pessoas moraes: e não só é capaz de possuir, mas tambem de exercer outros direitos civis compativeis com a sua indole. Mas tudo isto é inventado, facticio, não natural. Como corpo politico, como condição e garantia da mais alta manifestação da sociabilidade humana, actuando como poder publico é que não pode equiparar-se á pessoa physica. Tudo quanto produz, os valores que cria n'esta qualidade, que determina o verdadeiro caracter do Estado, ha-de forçosamente individuar-se para ser util. Sicyès, o grande publicista da revolução franceza, dizia:--«Se o estado social não tem por _unico_ alvo a felicidade dos individuos, não atino com o que seja o estado social.» Achava eu razão ao padre Sicyès. No mundo real e á luz economica, o Estado é apenas o meio de simplificar e dirigir os esforços individuaes a um fim commum, e de multiplicar, ás vezes, de maravilhosa maneira, os effeitos d'elles pela collectividade, pela unificação. Quanto a fruir os resultados, digam á entidade politica, o Estado, que pleiteie nos tribunaes, que mande os filhos á escola, que transite pelas estradas, que navegue nos rios e canaes, que adore Deus nos templos, que cultive os campos, que negoceie nos mercados. A individuação, quer transitoria, quer permanente, dos effeitos do trabalho social é inevitavel. Transitoria nos resultados directos, que são as utilidades de uso commum, torna-se permanente nos indirectos, que vão levar um valor de troca á posse e ao dominio particulares. E assim devia ser. O Estado não trabalha: collige os esforços individuaes e dá-lhes nexo e fins communs. Se o producto d'esses esforços não revertesse em beneficio dos individuos, ficavam estes obviamente logrados. Mas se isto é verdade em relação aos productos directos do trabalho social, por maioria de razão deverá sel-o tambem em relação aos indirectos. A noção de que n'uma sociedade civilisada não ha predios sem valor de troca é idéa aurea, a qual já hoje não é licito disputar. Não concebemos como exista um predio, onde, indirectamente e mais ou menos, o trabalho collectivo não o vá incorporar. Mas, n'essa coordenação de esforços, n'essa realisação de utilidades pelo trabalho social, realisação quer directa e prevista, quer indirecta e casual, quem actuou? Foi o Estado, pessoa moral, entidade facticia, equiparada artificialmente á pessoa physica, ou foi o Estado, instituição politica, poder publico, compendio e orgão da sociedade? Foi obviamente este. Mas este, quando a ficção juridica não o converte em pessoa civil, é iacapaz de direito de propriedade. Produz apenas pela acção directora as cousas de uso commum, transitoriamente utilisadas pelos individuos. Da existencia d'estas cousas de uso commum deriva o valor do predio inculto, do mesmo modo que deriva um augmento de valor no predio cultivado. Em virtude de que principio ha-de o Estado apropriar-se de um valor que nasceu independente da sua intenção, elemento indispensavel para a realisação de qualquer direito? Como nasce para a entidade não pessoa civil, mas sim poder, administração, justiça, um direito só possivel na pessoa civil? E se esse direito se dá no Estado-governo, e se em nome de tal direito elle expulsa do predio inculto o que o possue, como ha-de deixar de apoderar-se do accrescimo de valor que indirectamente deu tambem ao predio cultivado? Onde ficaria n'esse caso a egualdade perante a lei, manifestação suprema da egualdade civil, que tambem se funda n'um direito originario? Entre esses direitos primordiaes, cuja existencia o sr. P. de M. nega no seu penultimo artigo, e que no ultimo diz respeitar profundamente, ha um--o primeiro na ordem d'elles, o direito á existencia--que, n'uma das fórmas da sua realisação, consiste em apoderar-se o individuo dos dons gratuitos da natureza, quer estes sejam productos immediatamente utilisaveis, quer sejam forças latentes, que, associadas ao trabalho humano, criem novas utilidades. É evidente que o direito de propriedade não pode ter principio sem que preceda essa fórma de realisação do direito á existencia pela apprehensão das forças puras da materia. Mas se nos direitos originarios, isto é, no absoluto, não pode haver mais nem menos, porque titulo será mais sagrada a apprehensão das forças latentes, do que a apprehensão dos dons immediatamente utilisaveis? Porque excluirá a _creação_ do direito de propriedade o _exercicio_ do direito de apprehensão dos dons fungiveis da terra? Para simplificar a questão separemos theoricamente, no predio inculto, o valor adquirido em virtude do trabalho social. Deixemos n'elle tão sómente as utilidades gratuitas. Do seu lado o sr. P. de M. tambem ajuda a simplifical-a. Estabelecendo a sua doutrina, um pouco conquistadora, da utilisação forçada dos terrenos incultos, estende-a aos de alguma utilidade, embora escassa. Sentiu, talvez, que lhe seria difficil encontral-os perfeitamente inuteis para seus possuidores. Quer tirar-lh'os mediante compensação, acto que, no seu ultimo artigo, parece equiparar á expropriação por utilidade publica, porque (diz elle) tem os mesmos fundamentos. Quer, portanto, que, ainda no caso de aproveitar no inculto os dons naturaes, o detentor, que exerce alli um direito primordial, seja substituido por outro detentor. Chamo-lhe assim, porque o segundo tem de o ser emquanto não constituir a propriedade, e pode, até, não vir a constituil-a. Mas--dir-se-ha--se o fizer, augmentará a riqueza publica e restituirá algum do pão _roubado a innumeras familias_ pelo primeiro detentor. É certo que a riqueza publica ha-de augmentar com a cultura do inculto (o _pão roubado a innumeras familias_ é modo de dizer), o que eu tambem vehementemente desejo se obtenha, não por violencia, mas por favor do Estado e livre accordo dos interessados. Á luz economica, a substituição será util, se o novo detentor fizer o que promette. Mas a difficuldade juridica subsiste, e as nações não se regem só pelas leis economicas e pelas conveniencias materiaes. A moral e o direito tambem tem voto na governança, e desconfio, até, de que tem voto de desempate. É axioma juridico que, se o exercicio do meu direito perturba os interesses de outrem, não se me pode impor por isso a minima responsabilidade. No systema do sr. P. de M., não só se me deve impor, mas, se faço a outrem o desarranjo de não o deixar constituir propriedade no que possue e disfructa em virtude da lei natural, essa responsabilidade vai até á suppressão absoluta do meu direito ao usufructo dos dons gratuitos da natureza. O que, porém, excede a minha comprehensão n'aquelle systema é querer-se compensação para o detentor expulso. Compensação de que, e como? Segundo o sr. P. de M., os effeitos do trabalho collectivo que cria o valor, objecto do direito de propriedade, não podem redundar em beneficio peculiar d'este ou d'aquelle; ou, por outra, a sua incidencia não pode juridicamente especificar-se: hão-de redundar em proveito de todos. Mas raramente os resultados directos d'esse trabalho, e nunca os indirectos, abrangem todos os cidadãos. Ora, se o valor creado por elle, por mais indirecto que seja, não pode tornar-se propriedade particular, aquelle valor tem forçosamente de ficar sempre no dominio do Estado, que não ultrapassará as suas attribuições, antes cumprirá o seu dever (concedido que, como governo, possa ser proprietario) se chamar a contas todos os possuidores de bens de raiz, quer cultivados, quer incultos. Se acha que ás cousas possuidas por um individuo accresceu valor, resultado indirecto do trabalho collectivo, e que o mesmo valor não accresceu aos bens de todos os outros cidadãos (ainda aos dos que os não tem), recolhendo a si o accrescimo, não faz mais do que reivindicar o que é seu. Assim, a compensação dada ao possuidor do predio inculto não tem razão de ser. Restam os productos espontaneos immediatamente utilisaveis que elle usufrue, aliás sem melhor direito que os outros, conforme quer o sr. P. de M. Estes productos não tem valor de troca; não podem, portanto, apreciar-se. Por isso a compensação é tão impossivel, como substituir o amarello pelo redondo, ou o cubico pelo encarnado. Mas, dado este systema, que sem duvida é judicioso, exequivel e justo, acho ainda uma dureza na precedente doutrina, doutrina aliás fundamental. A theoria continúa a reger a materia depois de empossado o novo detentor, que _ha-de_ vir a ter o direito de propriedade quando associar ás forcas naturaes o _seu_ trabalho. O valor consubstanciado no predio por effeito indirecto do trabalho collectivo é do Estado, que não pode dal-o a um, porque é de todos. Que se ha-de pois fazer? Ou o Estado, pessoa moral, vende aquelle valor criado pela acção do Estado-governo, ou, considerando-o como um capital que vai mutuar, fal-o-ha representar pelo juro. No primeiro caso, o proletario, que não tem com que compre cousas taes, em vez de ser chamado ao dominio territorial, ficará excluido peremptoriamente d'elle, e a consequência unica será a accumulacão de mais propriedade rustica nas mãos dos que já a possuem, ou do capital habilitado para a adquirir. No segundo caso, temos o aforamento, a emphyteuse de ominosa memoria, que, apezar de todas as demonstrações historicas em contrario não refutadas, nem por isso deixa de ter sido instrumento de extorsões e vexames, que por via d'ella podem resuscitar. Dão-se hypotheses, que o systema do sr. P. de M. forçosamente ha-de abranger, e cuja solução, que me atrevo a antever, a consciencia publica tem de applaudir com assombro. As convulsões da natureza, por exemplo, os phenomenos meteorologicos imprevistos e violentos convertem ás vezes o predio cultivado n'uma cousa mais desolada, mais improductiva, mais nua, do que o era quando esses terrenos ainda incultos, mas por isso mesmo mais capazes de resistir ao furor das procellas, apenas offereciam ao homem fructos espontaneos e forcas latentes. A hypothese não é rara. Ainda ha pouco Macau nos deu um horroroso documento do facto na propriedade urbana. A tempestade destruiu tudo no predio rural, quebrou ou arrancou as arvores frondiferas, areiou os campos, revolveu as vinhas, derrubou a morada e as officinas da granja. Os gados morreram, as apeiragens levou-as a cheia. O dono, attonito, desanimado, sem meios para renovar o seu capital fixo e movel, falla em vender o predio. Ouve-o o Estado e grita-lhe, estribado nos bons principios: «Alto lá, burlão! Que é o que pretendes vender? Os fructos espontaneos, as forças latentes? São utilidades que se não vendem. Quererás, porventura, alienar o valor que te accrescentou ao predio a excellente estrada por onde conduzias os productos ao mercado? A justiça que encontravas nos tribunaes quando te disputavam alguma estrema? A segurança real e pessoal com que alli vivias, mantida pela força publica? As vantagens, em summa, que eu fiz adherir ao teu predio e que não posso ceder-te? Não sabes que tudo quanto ahi resta é valor que me pertence? Destruiu a tempestade os fructos accumulados do teu trabalho. Chamo-me eu a tempestade? Se practicares o acto que meditas, a Africa te espera. A burla está prevista no codigo penal.» Depende a applicação do systema do sr. P. de M. de providencias cuja contextura ignoro e desejaria conhecer para admirar. Deve ser uma das mais notaveis assignalar precisamente o que é terreno inculto e o que é terreno cultivado. Cumpre que os caracteres de um e do outro sejam definidos, bem exactamente descriptos, indubitaveis, de modo que se torne impossivel confundirem-se. A confusão seria o arbitrio, e o arbitrio em questões de propriedade chama-se despotismo e espoliação. Não convirá, ao menos n'isto, o sr. P. de M.? Não pretendo negar a solidez do systema, nem embrenhar-me em questões de principios. Exponho duvidas sobre a applicação practica d'elle; sobre o _quid et quomodo faciendum_. É possivel que vão por ahi algumas exuberancias de logica. Não sei retel-a a tempo, segundo dizem; mas eu não tenho culpa de ter nascido com a intelligencia debil. Se ha culpa, é da logica, em aproveitar-se d'este imbecil do meu espirito, para correr á solta pelo campo das desattenções. Desejo aplanar difficuldades aos progressos da evolução. As doutrinas revolucionarias de 89 sobre os direitos originarios e imprescriptiveis do homem estão velhas e gastas, como a minha razão. Os deuses vão-se. Com o mau habito de repugnar ao arbitrio e de odiar a oppressão, tanto de muitos por um, como de um por muitos (identica anarchia, identica tyrannia), desejara que o absolutismo dos Cesares e o absolutismo das multidões achassem diante de si e desenhando-se-lhes nas consciencias, ao menos para uso dos remorsos, padrões que assignalassem os limites entre o campo da auctoridade e as gandras silenciosas do despotismo. Quizera que, no logar do antigo direito natural que expira, se consagrassem principios novos accordes com os novos systemas, com as evoluções e com as evoluções das evoluções _in infinitum_. Quizera que o pretendente a detentor do predio inculto, ao sacudir d'alli o detentor antigo, podesse estribar-se n'algumas maximas juridicas geralmente acceitas. É provavel que o desapossado clame; é provavel que invoque as doutrinas herdadas pelo seculo XVIII às sociedades modernas; é provavel que faça um discurso ao pretendente. O perigo inspira. Naturalmente diz-lhe assim, pouco mais ou menos:--«Cidadão proletario, exiges que te ceda este solo inculto que possuo, para d'elle fazeres surgir as forças latentes da natureza e casal-as com o teu trabalho, a fim de procrearem o direito de propriedade, demonstrando ao mesmo tempo o transformismo de Darwin pela selecção sexual, cousa importantissima para a solução da contenda que vens alevantar. A tua pretenção, meu amigo, parece-me um pouco exorbitante. Tu queres auferir d'este solo as forças naturaes; eu aufiro já d'elle os seus productos espontaneos e gratuitos. O teu direito de apprehensão é excellente, mas o meu não é ruim. Sou preguiçoso e nasci com vocação campestre: contento-me de assar a minha caça nas raizes carbonizadas do carrasco e da aroeira; de estirar-me ao sol no inverno sobre o colchão perfumado do tomilho e do rosmaninho; de aspirar voluptuosamente no estio os effluvios da giesta e da madresilva; de scismar vagamente ao lusco-fusco, olhando para o viso crespo e dentado da collina deserta, a que fazem espaldar, colgado do ceu, os ultimos clarões do dia; de me dessedentar, debruçado sobre o arroio que passa; de attender, ás vezes, ás insinuações imperiosas do estomago com a azinha e o medronho da selva ou com a camarinha da gandra e a amora do silvado. Deus me livre de obstar ao teu direito de trabalhar, perfeitamente egual ao meu de fruir. Terás uma vantagem: acharás quem te compre o fructo do teu trabalho, e eu não acharei quem me dê um ceitil pela fruição dos dons da natureza. Se vender este predio, dar-me-hão o restricto equivalente do valor de que o impregnou, sem intenção e pela força das cousas, o trabalho social, em que tambem á fina força me fizeram lidar, com grave prejuizo da minha indolencia. Vae, amigo, trabalha. Se te appetece a agricultura, agriculta. É ampla a face da terra, e posso asseverar-te, sem medo de errar, que o genero humano ainda não desbravou nem apropriou, pelo trabalho dos individuos ou do Estado, a decima parte d'ella. Ha no mundo charnecas a trasbordar. Se o Estado faz gosto de que sejas lavrador n'estes sitios, não digo que não. Vae ter com o Estado, e dize-lhe que me offereça vantagens, não tocando no meu alvedrio. Pode ser que troque por ellas estes dons naturaes; que sacrifique a minha vocação campestre. Acredita que sei calcular, e que não nasci absolutamente idiota. Emquanto isso não se arranja, deixa-me priguiçar n'este chão brenhoso, como tu has-de priguiçar quando a propriedade adquirida pelos teus esforços, e em que terás um direito tão absoluto como este meu, te habilitar para o fazeres, sem que ninguem te ralhe por isso. A differença estará em que os teus commodos e gosos serão, como é de razão, bem superiores aos meus. Com que então, o usofructo não vale nada? Um civilista era capaz de te dizer que o meu constitue uma especie de propriedade. A natureza deu-me o que podia dar: eu acceitei o que podia acceitar. Contracto perfeito. Não irei tão longe. O trabalho, querido proletario, é um dever moral. Confesso-o. O que não te confesso é que seja uma obrigação juridica. Podes vituperar-me no sanctuario da tua consciencia: não podes condemnar-me no tribunal da tua justiça. Se não te apraz sair da tua patria, do teu concelho, da tua freguezia, isso é altamente louvavel: prova que tens um coração amoravel, mavioso; não me perturbes, porém, no exercicio do meu direito. N'esse caso, muda de rumo, e deixa-te de agriculturas. As forças naturaes tem modos indefinitos, senão infinitos, de se associar com o trabalho. Não sejas birrento. Um capricho não destroe um direito. Vês aquelle ribeiro? Aproveita as suas forças latentes: constroe um moinho á beira da agua n'aquelle descampado, além da minha estrema, e faze-te moleiro. Se é tarde para aprenderes o officio, nem por isso ficas com os braços atados. Não desesperes do consorcio do teu trabalho com as energias da natureza. Submette, por exemplo, aos teus esforços a maleabilidade do ferro augmentada pelo calorico, e sê malhador de ferreiro. Mette depois as sobras do teu salario na caixa economica. Estás proprietario. Explora, até, a minha intelligencia, aproveitando-te dos meus conselhos. Ainda melhor: explora a tolice humana, uma das forças naturaes mais energicas. Faze-te védor d'aguas ou constructor de estados sociaes novos; inventa um remedio secreto ou uma imagem que faça milagres; vende bilhetes de loteria ou bullas da sancta cruzada. Depois capitalisa. Faze tudo, menos bulir no meu usofructo das utilidades gratuitas que, n'este tracto de terra, me subministra a natureza.» Sei que os sophismas e os insulsos dicterios do retentor do predio inculto caem diante da irresistivel theoria que supprime os direitos primordiaes, guardando-lhes aliás todos os respeitos e sepultando-os com todas as continencias. Mas se o retentor effectivo fica desarmado pela theoria, tenho minhas suspeitas de que o pretendente a retentor não fica melhor armado. Desconfio de que atraz d'aquelles gracejos de mau gosto estejam aninhadas algumas formidaveis verdades. Restará a forca material para dirimir a contenda; mas a força bruta, em questões de direito, significa anarchia ou tyrania. É por isso que espero sejam substituidos os direitos originarios ultimamente fallecidos por uns direitos originarios novos que se amoldem ao progresso das successivas evoluções sociaes, e que, demittidas do serviço publico as maximas juridicas antiquadas, se formulem outras de indole perfeitamente evolutiva, isto é, que vão seguindo, pela folhinha, a pista das festas moveis. E o capitulo da desforra? Ia-me esquecendo. Ficará para mais opportuna occasião. XI *Val-de-Lobos, 16 de marco de 1875.* Ill.^{mo} e ex.^{mo} sr.--Foi apoz uma primeira e rapida leitura do quinto artigo do sr. P. de M. sobre a extirpação das rainhas heresias economico-juridicas, que pedi licença a v. ex.^a para dividir a presente carta em duas secções ou capitulos. Depois, quando pensei no segundo, hesitei muito sobre se deveria reduzir-me a significativo silencio. Moveram-me em sentido contrario duas considerações. O silencio podia ser offensivo para o meu antagonista, e ao mesmo tempo nocivo para uma idéa que reputo altamente boa e practica, e de cujas vantagens, se fôr applicada, estou intimamente convencido. Ha muita gente, e ás vezes preponderante, que acha sempre razão a quem, para debellar uma idéa, discute um individuo. Esta especie de criterio amolda-se a todas as capacidades. É ruim o individuo? Ruim deve ser a sua doutrina. Má arvore, mau fructo. É assim que os habeis argumentadores, quando a discussão os cansa ou os irrita, recorrem, ás vezes irreflexivamente, a esse ardil de guerra, que, se não mata, debilita, ao menos, a opinião adversa. Eis as razões que afinal me induziram a fazer alguns reparos sobre a substituição da analyse das minhas opiniões pela analyse do meu caracter e da minha intelligencia, substituição a que, aliás, alguem achará um merito--o de provar de modo irrefragavel que a maneira mais justa, mais facil, mais simples, de chamar os proletarios rusticos á posse de poucas geiras de terra, e de os converter em defensores da propriedade é espoliar os donos dos terrenos incultos para repartir estes com elles. No artigo do sr. P. de M. ha dois logares que suscitam reflexões graves e dolorosas; graves e tristes para elle, dolorosas para mim. N'esta longa discussão, busquei sempre manter illesa a pessoa do sr. P. de M.. Não fiz senão o meu dever. Posso ter tractado com pouco respeito, talvez com excessiva dureza, as suas idéas; nunca, porém, as expliquei por vicios de caracter, por uma indole moral ou intellectual aleijada. Era mau e era pueril. Ralharia, por certo, a consciencia commigo, e a consciencia não me diz nada. Tenho o direito de avaliar as opiniões: não o tenho de avaliar o individuo a proposito d'ellas. Se o fizesse, daria um terrivel documento da irritação que se me attribue. Só a irritação absolve taes lapsos. Os jesuitas, quando os faço agoniar, chamam-me atheu, protestante e pedreiro-livre. Acho isto regular. Mas entre mim e o sr. P. de M., cousa analoga seria monstruosa e moralmente impossivel. Entendo que elle erra ás vezes, como elle entende que eu erro. Digo-lh'o, e elle diz-m'o. A discussão é isto. Se não é, em que consiste? As minhas cartas ahi estão. Onde aggredi o caracter, a indole, ou descubri os _dotes_ condemnaveis do sr. P. de M.? Nem tinha motivos para isso, nem que fosse fundada a aggressão, vinha a provar cousa nenhuma no debate. Onde fiz o anachronismo de ir buscar o sudario frio do morto para o lançar sobre os hombros do vivo? Demonstraria isso, acaso, que os donos dos predios incultos são ou não são donos d'elles? Ainda quando por esse meio se impedisse ou facilitasse a pacifica evolução de uma lei agraria, nunca por causa d'isso ousaria nomear-me a mim mesmo juiz substituto do juiz effectivo dos mortos, do magistrado inflexivel mas justiceiro, que se chama a posteridade, e muito menos ousaria matar ninguem, posto que hypotheticamente, para avolumar o rol dos culpados sujeitos á minha usurpada jurisdicção. Sinto mais pelo meu antagonista do que por mim que elle busque tornar suspeito o individuo, como meio de tornar suspeita a idéa; mas sinto incomparavelmente mais que assevere havel-o eu transformado em communista, quando é elle que, em relação a mim, teve, segundo diz, serias apprehensões ao ler, n'um escripto meu recente, que _parecia ser chegado o tempo_ de se darem ouvidos ás caramunhas socialistas do homem de trabalho. Sinto, sobretudo, e isto não só por elle, mas tambem por mim, que o sr. P. de M. affirme que as minhas crenças sociaes e politicas _mais modernas_ se declaram _á ultima hora_ cartistas. V. ex.^a que, como eu, estima as excellentes qualidades do meu contendor e leu a minha ultima carta, lamenta decerto, como eu lamento, que, promettendo não perder a tranquillidade de animo, elle desminta a promessa na mesma conjunctura em que a faz. Espero que o sr. P. de M. (vai n'isso o seu pundonor) citará o escripto e a pagina, e transcreverá textualmente a passagem, origem da sua anterior consternação e dos seus profundos terrores ácerca das minhas intenções tenebrosas. Poupará assim á synthese moderna o trabalho de me fulminar. Negára o meu adversario a existencia dos direitos originarios, que eu invocava em defeza dos possuidores de predios incultos. Lembrei-lhe as consequencias d'essa negativa, que envolvia a condemnação do liberalismo e da Carta: lembrei-lhe que, recusada a immutabilidade d'aquelles direitos, o perigo de cair, de deducção em deducção, atravez dos systemas socialistas, nos tremedaes do communismo, era inevitavel. Sabe v. ex.^a, sabem todos que pela imprensa tiveram conhecimento d'aquella missiva, que nos periodos a que o meu antagonista se refere, ha isto, e unicamente isto. Creio até que, passado o impeto da paixão, no fim de vinte e quatro horas, e apenas publicado o seu quinto artigo, o sr. P. de M. sabia já, como nós, que a significação que dera ás minhas palavras era de todo o ponto falsa. Ou ellas equivaliam a uma inepcia, ou, para valerem um argumento, cumpria que tivessem exactamente a significação contraria. Era preciso que eu suppozesse no meu contendor respeito á Carta e afferro ás crenças liberaes. Ninguem diz ao que se ungiu com lodo e se enfileirou nas cohortes da anarchia e do crime:--«Olha que te perdes; olha que, se abandonas os principios eternos do justo, vais precipitar-te pelos despenhadeiros obscuros, que conduzem á morte da consciencia; olha que desmentes o credo liberal, os dogmas da tua religião politica; olha que negas a Carta: sim, a Carta, cujas imperfeições é possivel que tambem eu conheça um pouco, mas que é o pacto social do teu paiz, e que eu, tu, nós todos temos obrigação de respeitar e manter, emquanto os poderes legitimos não a alterarem ou substituirem; a Carta, sim, que, apezar dos seus defeitos, nos assegura uma liberdade real, ampla, tranquilla, liberdade que tem sido fonte de constantes progressos, e que está attrahindo a attenção e a sympathia da Europa, pela tua pobre terra, tão insultada e até calumniada em tempos bem pouco remotos.»--Acha-me o sr. P. de M. cartista da ultima hora; acha o cartismo a minha crença _mais moderna_. Isto a mim! Era o sr. P. de M. uma creança quando o cartismo era um grande e nobre partido. N'aquelle tempo havia em Portugal partidos. Segui-o do berço ao tumulo; segui-o desde que se ergueu como um protesto contra o tumulto das ruas até que, desvairado, foi suicidar-se no tumulto dos quarteis. Amortalhado nos estandartes da soldadesca, diziam-n'o vivo. Que me importava, se, atravez da téla, bem via que estava morto? Fui cartista emquanto houve cartismo, da primeira até á ultima hora. Fiquei depois solto. Pertencera a um partido; não pertenci a um cadaver. Desde então até hoje pensei e senti exclusivamente por minha conta, em politica, bem como em tudo. Achei-me só e isento. Se fiz bom negocio n'esta isenção, não alcancei fazel-o de graça. Tive de recalcar bem fundo no coração todas as ambições. Nenhuma parcialidade, desde a do pseudo-cartismo até a mais recente das que lhe succederam, ha-de encontrar o meu nome no rol dos seus adeptos. Tambem durante o periodo de quasi quarenta annos, nenhum governo deixou commemoradas nos archivos das secretarias as mercês que d'elle solicitei, ou que sequer lhe soffri. É por isso que na escala da gerarchia social o meu logar, passado bem mais de meio seculo, é ainda o mesmo onde nasci. Das reliquias dos sete mil e quinhentos loucos do Mindello, não sei ao certo quantos mais dos não inteiramente obscuros, podem dizer o que eu digo. Se houvera servido n'alguma cousa este paiz, e tivesse por isso direito a solicitar recompensa, pediria que me deixassem morrer em paz e depois dormir esquecido no adro da aldeia visinha. Eisaqui o resumo e o fito das minhas crenças mais modernas e a historia do meu cartismo da ultima hora. Virá tempo em que o meu honrado adversario tenha pena de haver dito o que n'esta parte me disse. Quando eu deixar o mundo, ainda cá ha-de ficar a injustiça. Poucas mais palavras agora. Acredite o sr. P. de M. o que lhe vae affirmar um velho luctador da imprensa, que crê ter dado alli provas, não só de alguma energia e pericia, mas tambem de sinceridade austera. O seu ultimo artigo ageitava-se admiravelmente a crueis represalias, porque o dictára a colera. Esteja bem certo d'isso. Algumas d'ellas iam-se accumulando sobre o papel. A meio caminho, envergonhei-me de mim. Rasguei o que estava escripto. Aos sessenta e cinco annos, que me batem á porta, não ter equanimidade para reprimir o amor proprio, uma das poucas e enfraquecidas paixões que nos perseguem até a velhice, é fraqueza que humilha o orgulho legitimo. Domando a vaidade, fico bem commigo. Ha miseraveis que, ás vezes, cumpre punir duramente, quando não o sejam a tal ponto que imponham o silencio; mas tractar como uns ou como outros um homem de brio e de talento que se transvia, pode não ser injusto em abstracto, mas é em concreto iniquo. O que não quero é tornar a fazer o papel de Mephistophles; arrastar de novo o sr. P. de M. a batalhar n'um campo que, em momentos mais placidos, reputaria defezo. Embora com prejuizo meu, cessarei de lêr os seus artigos sobre a emigração e a agricultura. Continuando a dizer a v. ex.^a o que penso ácerca de um assumpto, que cada vez se complica mais, transformando-se, a ponto de se converter em materia principal o que era incidente, é natural que as minhas opiniões repugnem ás suas frequentemente, porque vemos as questões sociaes a diversa luz: eu ao frouxo clarão das preoccupações cartistas que me invadem de novo; elle aos vivos esplendores de atilada e consciente democracia. Abstendo-me de o ouvir, a collisão das doutrinas é mais que provavel: a disputa é que fica sendo impossivel. Se todavia, depois de madura reflexão, o sr. P. de M. entender alguma vez que a bem do paiz e das proprias convicções é necessario desenhar com vigor os defeituosos lineamentos do meu caracter, deixo á sua disposição o meu ser moral, não só nas manifestações da vida publica, mas até nas da vida familiar e intima. Desculpe v. ex.^a este, acaso immodesto, desafogo, e creia sempre que sou, etc. ÍNDICE Advertencia *Os Vínculos* (1856) I Preliminares II Processo agricola--Propriedade rural. Opportunidade da discussão III Abolição dos vinculos--O pró e o contra IV O principio vincular considerado na sua legitimidade V Desegualdade e personalidade VI Os vinculos garantia da liberdade VII Difficuldades moraes e economicas na abolição dos vinculos VIII Os vinculos considerados em relação á grande e á pequena propriedade, á grande e á pequena cultura IX Objecções fundadas contra os vinculos *A Emigração* (1873-1875) Carta 1.^a Carta 2.^a Carta 3.^a Carta 4.^a Carta 5.^a Carta 6.^a Carta 7.^a Carta 8.^a Carta 9.^a Carta 10.^a Carta 11.^a LIVRARIA BERTRAND 73, Chiado, 75 *Obras de A. Herculano* _Historia de Portugal_, desde o começo da monarchia até o fim do reinado de D. Affonso III, 4 vol. br (5$000) _Historia da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal_, 3 vol. (1$800) _Enrico_, o Presbytero (600) _O Monge de Cistér_, 2 vol. (1$200) _Lendas e narrativas_, 2 vol. (1$200) _O Bobo_ (600) _Poesias_ (600) _Opusculos_, 4 vol. (2$400) _Estudos sobre o casamento civil_, 3 folh. (600) _A reacção ultramontana em Portugal_, ou a concordata de 21 de fevereiro de 1857 (200) *De Bulhão Pato* Vida Intima de Homens Illustres Biographias de Almeida Garrett, F.M. Bordalo, Lopes de Mendonça, José Estevão. Santos e Silva, Rodrigo Paganino, J. Luiz Gonçalves, L.A. Rebello da Silva, Silva Gaio, Gonçalves Dias, Guilherme Braga, A.F. de Castilho, F. M. Champalimaud, 1 vol. (600) *No prelo* _O conde soberano de Castella_, Fernão Gonçalves, por A. de Oliveira Marreca. _Historia da civilisação iberica_, por J.P. Oliveira Martins. Monografia do Café Historia, Cultura, Producção e Consumo Por Paulo Porto-Alegre Socio da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Um bello vol. in-8.^o de mais de 500 paginas. *Cartas Elementares de Portugal* Para uso das escolas. Approvadas pela junta consultiva de instrucção publica para as escolas primarias, e duas d'ellas duas vezes premiadas na exposição de Philadelphia de 1876. Por B. Barros Gomes. Um folheto in-fol. contendo as cinco seguintes cartas e respectivas descripções, e uma Lista especial dos concelhos, com a sua caracterização agronomica, e a sua população humana e pecuaria: I. Carta concelhia. II. Carta de relevo, orographica e regional. III. Carta dos arvoredos. IV. Carta agronomica. V. Carta da povoação concelhia. Preço 1$200 réis. *Muita Parra e Pouca Uva* Por Francisco Gomes de Amorim Contem: Historia de um caranguejo.--O Algarve.--A carteira do janota.--A quinta das Laranjeiras.--O cypreste e o pecegueiro.--A vida dos vinte annos.--Juizo do anno de 1874.--Drama entre rouxinoes.--A villa Estephania.--No album de José Ferreira Chaves.--Pancracio Longuinhos. Preço 500 réis. NOTAS [1] Dunckley, _Charter of Nations_, p. 398. [2] L. de Lavergne, _Economie Rurale de l'Angleterre_, ch. 23. [3] *1864* *Districtos* *População* Porto 410:665 Braga 309:508 Vianna 195:257 Aveiro 238:700 Coimbra 268:894 Vizeu 353:543 *1868* *Districtos* *População* Porto 423:665 Braga 320:655 Vianna 204:679 Aveiro 252:562 Coimbra 282:593 Vizeu 368:559 [4] _Principes de Culture Améliorante_ (1866), pag. 292. [5] _Primeiro inquerito_, pag. 78. [6] Ibid. pag. 114. [7] Ibid. pag. 159. [8] _Inquerito_, pag. 173. [9] _Diction. d'Econ. Polit._ v. _Émigration_. [10] _Inquerito_, pag. 495 e 502. [11] _Osgood, New-York 19^{th} Century_, p. 103. Nos dois annos de 1865 e 1866, os emigrados allemães entrados em New-York subiam já a 83:451 e 81:287. Ibid. [12] Veja-se o curioso livro--_O Imperio do Brazil na exposição de Vienna_, p. 240 e segg. [13] _L'Instruction du Peuple_. [14] _Les ouvriers européens_. [15] _Memor. Econ. da Acad. das Sciencias_, T. 5.^o p. 15 e 16. End of the Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo IV, by Alexandre Herculano *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE *** ***** This file should be named 17177-8.txt or 17177-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/1/7/1/7/17177/ Produced by Isabel Calderon Dinis (Projecto Enclave) and edited by Rita Farinha (Biblioteca Nacional Digital--http://bnd.bn.pt) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: https://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. *** END: FULL LICENSE ***