The Project Gutenberg EBook of Entre o caffé e o cognac, by Alberto Pimentel This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Entre o caffé e o cognac Author: Alberto Pimentel Release Date: July 16, 2010 [EBook #33182] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ENTRE O CAFFÉ E O COGNAC *** Produced by Pedro Saborano ALBERTO PIMENTEL ENTRE O CAFFÉ E O COGNAC PORTO IMPRENSA PORTUGUEZA Rua do Bomjardim, 151 1873 * * * * * ENTRE O CAFFÉ E O COGNAC * * * * * ALBERTO PIMENTEL ENTRE O CAFFÉ E O COGNAC PORTO IMPRENSA PORTUGUEZA Rua do Bomjardim, 151 1873 * * * * * Ao seu presado amigo Manuel Lopes Martins Offerece O author. * * * * * Obrigado a dar folhetim original aos domingos no _Primeiro de Janeiro_, era ás sextas feiras, entre o caffé e o cognac, que eu, reclinado no espaldar da poltrona, procurava assumpto. Este livro, em que se grupa a maior parte dos folhetins de sete mezes, foi pois meditado entre o caffé e o cognac. Fica explicado o titulo. * * * * * O GABINETE DE CAMILLO Eu já citei algures estas palavras de Alexandre Dumas pae: «Ha sempre nos moveis que vos cercam alguma cousa de vós mesmos».[1] Tão profunda verdade, se carecesse de demonstração, encontral-a-ia no gabinete de Camillo Castello Branco. É aquelle um templo consagrado unicamente á Arte. Alli tem altar a pintura, a archeologia, a historia natural, e a litteratura. Presente-se que se está no gabinete d'um grande romancista porque se adivinha a historia de cada quadro, a novella de cada movel, a epopêa do tinteiro de metal amarello d'onde ha pouco mais de vinte annos tem nascido para gloria das letras portuguezas cerca de cem livros. Tudo alli falla. Ha idillios de saudade suavissima a murmurar ao de cima dos silenciosos companheiros da mocidade; ha marcos milliarios que rememoram successivas phases da vida do escriptor. Os verdadeiros amigos de Camillo são aquelles. Só elles guardam o segredo de intimas commoções, que parecem vibrar ainda em novellas escriptas ha doze annos, e que primeiro lhe arrancaram lagrimas a elle do que a nós. O talento de Camillo é nosso: estamos ha longo tempo familiarisados com elle; tanto o estimamos, que o vamos procurar mal que se annuncia um livro novo. Nós lemos o livro já enroupado em galas de estremada linguagem; mas o seu gabinete lê o esboço da novella tal como lhe sahiu do coração. Nós vemos a estatua; o seu gabinete vê Pigmalião. Quando as lagrimas nos chegam a nós já as sentimos dulcificadas pela amenidade da phrase. Não as vemos; conhecemos-lhes apenas os vestigios. Mas o seu gabinete viu-as. O mesmo é pelo que respeita a personagens. Nós conhecemos o retrato; o gabinete conheceu o modelo. Camillo tem feito a historia de muito homem; só o seu gabinete poderia fazer a historia de Camillo. Nós temos o romancista; o gabinete tem o homem. Ainda mais. Se os moveis quizessem fallar, revelariam o romance de muito escriptor portuguez, que elles têm conhecido e ouvido em intimas praticas, ora contando os seus desalentos, as suas maguas, os seus queixumes, ora arroubando-se em enganosos sonhos, em esperanças quasi sempre mentidas, em aspirações poucas vezes realisadas... Todavia o leitor denuncia-se impaciente de entrar ao gabinete de Camillo. Entremos pois. Corrido um reposteiro, estamos n'uma alegre e clara sala _á-rez-de-chaussée_. Logo nos fascina o pittoresco do _ensemble_. Não é o gabinete de Lucullo; é o escriptorio d'Horacio. Não ha iriados reflexos de crystaes e marmores. Encontramos apenas o _atelier_ do artista. Dizem para a rua duas largas janellas; transparentes amarellos modificam a claridade exterior. No desvão da janella da direita casa-se com o angulo da parede uma pequena mesa triangular coberta de panno amarello; o desvão da janella da esquerda é occupado por uma gaiola, prisão d'um _viuva_, ave cujo nome procede de se vestir de negro duas vezes ao anno. É a _viuva_ o primeiro cuidado de Camillo quando entra ao seu escriptorio; vae vel-a, fallar-lhe, examinar se lhe faltam as regalias indispensaveis para tornar suave a carceragem. Á parede interposta ás duas janellas fica encostado o fogão sempre chammejante de intenso brasido; sobranceiras ao fogão pendem uma gravura representando Lacordaire, e um quadro com o retrato de Vieira de Castro. Visinha do fogão está a priguiceira de palha, onde o romancista, ora com os pés no _fender_, ora resguardados no _couvre-pied_ de feltro, procura repousar-se para o trabalho, intercortado de pequenas pausas, lendo os jornaes do dia e atiçando o fogo. Entre a janella da direita e a porta, encimada por um quadro a oleo que representa as armas da casa de Cadaval, ha uma banca com tinteiro de prata e uma cesta de palha cogullada de cartões de visita, que a meu vêr são o verdadeiro bosquejo historico da litteratura portugueza. O erudicto padre Cardoso, se tivesse conhecimento d'esta cesta, poderia augmentar consideravelmente a sua synopse com os nomes de notabilissimos escriptores portuguezes desde Garrett a esta parte. Este lanço de parede está adornado com os retratos da familia de Camillo e com um quadro a oleo reputado de Murillo por pessoas sobremodo competentes em assumptos de pintura. Na continuação d'esta parede encontramos uma _etagére_ de pau preto com romances francezes e inglezes; sobrepostos á _etagére_ os retratos da familia Ouguella, uma paisagem ingleza a oleo, o collar da academia real das sciencias que pertencera a Vieira de Castro, e uma valiosa placa de prata que apresenta em relevo a imagem de Santo Antonio. Segue-se uma mesa sustentando uma estantesinha entre cujos livros notaremos as obras de Filinto Elysio; sobre a estantesinha ha um relogio; superior um quadro anonymo a oleo, figurando o _Eden_; aos lados duas gravuras francezas, uma assignada por Desjardins--_L'aprés dinée_--, outra assignada por Paul Girardin--_La Benediction paternelle_, e a photographia de José Barbosa e Silva, deputado que foi da nação, e auctor do romance _Viver para soffrer_. Avultam no angulo duas _etagéres_ com livros e bustos. Cobrem a parede do fundo duas estantes envidraçadas, sobranceadas por quadros a oleo, bustos de escriptores estrangeiros, rumas de livros, e pela caixa que guarda o chapéo do uniforme de socio da academia pertencente a Vieira de Castro. Encostada á parede fronteira á porta d'entrada ha uma estante, e pendentes varias gravuras, retratos, e pinturas. Uma das gravuras assignada por Granville representa o lance do _Medecin malgré lui_ em que Sganarelle diz a Géronte: _Voilá justement ce qui fait que votre fille est muette_; ha ainda duas gravuras, copias de Horacio Vernet, denominadas _Le dernier morceau de pain_ e _Le dernier ami_, que o romancista possue desde os vinte annos. Resaltam tambem d'este panno dois quadros a oleo, um relogio de parede, uma copia da Virgem da Cadeira, o espadim de Vieira de Castro, e os retratos de Thomaz Ribeiro, Vieira de Castro, José Julio d'Oliveira Pinto, Francisco Martins, e morgado de Pereira, actualmente em Africa, senhor da honra e solar de Esmeriz, antigo solar dos Pereira Forjazes, de Riba d'Ave. Por estes sinceros amigos d'outros tempos, Vieira de Castro, José Barbosa e Silva, José Julio d'Oliveira Pinto, hoje cadaveres, sente ainda o coração de Camillo pungentissima saudade. Não ha ahi encontrar memoria mais tenaz em recordar desgraças alheias, e alma mais devotada a carpir as angustias d'esses notaveis homens que pereceram deixando immoredouro nome á historia portugueza mais deslembrada do que elles valiam do que o amigo que os prantea ainda no remanço meditativo do seu gabinete. Em seguida á estante deparamos uma jardineira com candeeiro, albuns, e uma urna de prata offerecida pelos portuguezes de Hongkong, como consta da inscripção gravada na mesma urna: AO ILL.mo E EX.mo SNR. CAMILLO CASTELLO BRANCO O. OS SOCIOS DA BIBLIOTHECA PORTUGUEZA DE HONGKONG 1869. Immediatamente á jardineira ficam o sophá e as poltronas d'estofo vermelho com ramagens cinzentas. As demais cadeiras são de pau preto com molduras douradas. Entre o sophá e a janella da esquerda está collocado um contador sobre o qual assentam rumas de livros e outro candeeiro. Resta-nos fallar d'uma estante de musica, que serve de banca a Camillo, quando por incommodo de saude não póde lêr sentado, para chegarmos á mesa onde habitualmente escreve, posta á esquerda da porta d'entrada. São unicos adornos da sua banca um tinteiro circular de metal amarello, um cinzeiro de loiça, uma cabeça de metal onde archiva as cartas recentemente recebidas, livros depositados a um e outro lado, e tiras de papel que Camillo Castello Branco infatigavelmente enche todos os dias. Da banca para o fogão facilmente se deslisa ao longo do tapete que cobre todo o pavimento. Sigamos este breve trajecto para nos repotrearmos na priguiceira de palha em que provavelmente se reclinou o imperador do Brasil, que Camillo Castello Branco presenteou com um quadro dos reis de Portugal até D. João IV. Relanceemos ainda um olhar a este mudo conjuncto de coisas inanimadas que o romancista estima como partes integrantes de sua familia. Parece-nos porém ouvir passos no corredor. É decerto Camillo que vem retomar o seu posto de todos os dias. Soou a hora de trabalhar. Antes de sentar-se, festejará a ave da gaiola, aquecerá ao fogão as mãos enregeladas, e abancará depois para escrever um dos ultimos capitulos do romance _Herança de Londres_ ou para traduzir primorosamente algumas paginas do _Diccionario de educação_, de Campagne. Antes que o artista entre ao seu _atelier_ e retome a penna que descança sobre o tinteiro desde o alvorecer da manhã, saiamos nós, os que não temos direito a surprehender o escriptor na doce quietação da sua vida intima. Entre o romancista que está escrevendo a novella cujo entrecho será amanhã conhecido das classes menos abastadas da sociedade portugueza e das mais remotas provincias, interpõe-se hoje o reposteiro que separa o escriptor do homem. * * * * * O PRIMEIRO DE JANEIRO O _Primeiro de Janeiro_ é como os viajantes que teem de partir ao romper da manhã: passa a noite a fazer a mala. Quem vae de jornada prepara-se para todas as eventualidades: mette ao sacco seis lenços supranumerarios para uma constipação; a casaca para uma _soirée_ inesperada; um frasco d'agua sedativa para uma nevralgia; dois livros para uma hora d'aborrecimento; os sapatos de borracha para um dia de chuva. Ainda como o _touriste_, o _Primeiro de Janeiro_ dispõe-se a poder satisfazer todas as reclamações que o assaltem no caminho: para os impacientes leva na mala os telegrammas, para os negociantes as cotações, para os politicos o artigo, para os ociosos o folhetim, para os alviçareiros as noticias, para os interessados os annuncios, e para as senhoras as modas. Os passageiros vão sentados no vehiculo; elle vae a correr pelo caminho. Quando o comboyo parte, apparece-lhes nas Devesas; quando chega a Aveiro, encontram-no na estação; quando passa em Coimbra, o _Primeiro de Janeiro_ salta aos vagões e diz aos viajantes engalfinhando-se na portinhola: _Aqui estou!_ Que prodigio de ubiquidade é este? Como é que o jornal chega primeiro que o homem! Ah! é porque o homem é o barro, e pesa, e o jornal o pensamento, e vôa. Nasceu da faisca electrica e do vapor; é irmão gemeo da locomotiva. O comboyo leva o homem; o jornal o pensamento. O motor d'um é a machina; o do outro o espirito humano. São os passaros da civilisação, as aguias do progresso. Por isso Arsenio Houssaye disse: «O jornal é a ave errante que atravessa o mundo: prendei-lhe a vossa ideia á asa, e a vossa ideia florirá nos mais remotos desertos.» Nada ha menos complicado que o jornal e mais complexo que elle: é a sociedade, a raça, a civilisação e o seculo. É o thermometro que mostra o grau da vitalidade popular, a lente que reproduz a lucta das gerações, o melhor historiador e a melhor historia. Poderemos chamar ao _Genesis_ o jornal da creação do mundo, o que nos leva a crêr que esta manifestação do pensamento publico não data unicamente dos tempos de Guttemberg, mas vae pelas idades a dentro procurar origem no _fiat_ creador que deu fórma e movimento ao nada. Á medida que a intelligencia do homem ia profundando a sonda n'este mar de bellezas infinitas que o verbo creador espraiou entre as balisas do universo, e se foram arando os mares, e desbravando as florestas, e povoando cidades e consolidando imperios, a vida das nações tomou um incremento que se não poderia registar em longas chronicas, como os commettimentos da antiguidade, senão que dia a dia, hora a hora, momento a momento. A personalidade moral do homem dilatou-se e, na impossibilidade material de estar em toda a parte, diffundiu o seu pensamento em particulas que voaram aos grandes centros attrahidas pela gravitação que regula a harmonia das sociedades. Então o jornal renasceu de si mesmo, multiplicou-se, e começou a collaboração universal dos povos á beira da prensa d'onde todos os dias parte o mensageiro alado a sacudir da plumagem as ideias que o homem lhe prendeu. É o correio do mundo, o postilhão dos seculos; anda sempre e não cança. Cada geração tem o seu temperamento collectivo, as suas paixões, as suas luctas, os seus revezes e os seus triumphos. O jornal, que é tudo isso, irá resuscitando amanhã do tumulo que se fechou hontem, e acompanhará o movimento febril das gerações que se succedem. O que viajar mais depressa, será sempre o mais querido. Espera-o a officina e o albergue com a impaciencia de quem sabe a hora a que deve chegar um mensageiro. A velocidade é indispensavel, mas ainda não é tudo. É preciso que o jornal não seja egoista, não roube ao operario o pão do corpo para lhe dar o pão do espirito, que não esbulhe as creanças do patrimonio que o salario do pae vae dilatando cada dia. Urge pois que o jornal tenha azas para chegar depressa, e que reuna á velocidade a modicidade para sustentar equilibrio entre a receita intellectual, que o jornal representa, e a receita economica, que o trabalho produz. O _Primeiro de Janeiro_ reune estas duas condições maximas, que se completam pela sanidade da doutrina, e mais d'uma vez tem nas primeiras horas do dia entrado ao albergue e á fabrica firmado pelos primeiros escriptores do paiz. Realisa o _desideratum_ que em 1848 intensamente preoccupava o espirito de Alphonse Karr: «Eu publicava então em Paris--diz o author das _Tresentas paginas_--um jornal a 10 reis, no qual collaboravam os nomes mais celebres e mais festejados. Queriamos vêr se as classes populares preferiam--como pensam alguns--o vinho tinto das barreiras ao Château-Laffitte e ao Rheno;--queriamos fazer a experiencia e dar-lhes o Château-Laffitte e o vinho do Rheno pelo preço do vinho d'Argenteuil. Por dez reis--o preço das mais grotescas e das mais odiosas especulações--fazer vender um jornal bem impresso, em bom papel, com artigos dos mestres da litteratura.» O _Primeiro de Janeiro_ entrou abroquellado no certamen. Quiz vêr se o povo preferia o vinho da Bairrada ao vinho do Porto, e conheceu que era essa uma calumnia de pessimistas aristocratas. O povo lia a _Formosa Mangalona_ e o _Vicente marujo_ porque lhe não facultavam um jornal que simultaneamente lhe ensinasse as evoluções do mundo physico e do mundo moral, não porque o jornal tivesse a pretenção de resumir em si a sciencia universal, mas porque da natureza mesma dos assumptos do dia derivavam os conhecimentos que o jornal espalhava. Trabalhou para lhe dar o vinho do Porto pelo vinho da Bairrada, e provou que a inanidade das classes baixas provinha do abuso da zorrapa com que dessedentavam o espirito diante da litteratura de cordel e cego andante. Luctou, batalhou, e conseguiu dar ao povo, por dez reis, um almoço de politica e litteratura,--o romance das nações e o romance dos homens. Alphonse Karr, quando estava empenhado em tão santa crusada, devotou-se inteiramente a ella; não visitava o seu jardim de Sainte Adresse; esqueceu as flores e o mar. O _Primeiro de Janeiro_ vive igualmente para o povo. Emquanto o povo dorme, vae o prelo imprimindo a ideia que pela manhã ha de saltar na rua. Enxameiam á porta os _gavroches_ como soldadesca impaciente de dar batalha. Esperam o almejado momento de transpôr o limiar. E no phrenesi do desespero saracoteam e gritam: --Abram! --São horas! --Já é tarde! Sentem ranger os gonzos. Apinha-se a multidão em vaga encapellada, e entra de tropel. Os empregados da machina dobram os jornaes. O distribuidor está de pé. C'o a mão no junco, irado e não facundo, Ameaçando a terra, o mar e o mundo. --Que leva hoje? --A novidade? --Diga, diga! É o côro dos _gavroches_ que pedem anciosamente o pregão. O distribuidor tem lido previamente o jornal. Faz signal de silencio e vota falla: --Foi o raio que matou um homem. Calam-se, _conticuere omnes_, a fixar na memoria o pregão. O receio de se esquecerem faz com que realmente se esqueçam. Lá pergunta um: --É o homem que matou o raio? --Toleirão! Foi o raio que matou o homem. São-lhes distribuidos os jornaes; os _gavroches_ rugem de impaciencia. Para que não haja rivalidades, saem todos ao mesmo tempo. É um furacão que passa. Que sejam mancos ou não, pouco importa. N'aquelle momento todos teem azas... nos pés, como Mercurio. Estala a multidão na rua similhante a bombarda. É a noticia, o telegramma, o romance, a politica que sapatea no solo. Começa a vida no exterior. Saíu o sol. E o operario antes de trabalhar para o patrão trabalha para si,--vae lêr. O que é feito do _Moienes_, do _Morte-scaloia_, do _Pintasilgo_, do _Pau-preto_, do _Cacaracá_? Desappareceram. Demoram-se apenas um segundo para entregar o jornal e receber o dinheiro. Resta unicamente o _José Custodio_, o melhor typo da collecção, sentado no passeio, repousando a perna manca, a lêr o jornal atravez da sua famosa luneta. É um grande egoista o _José Custodio_. Antes de dar aos outros, quer para si. E depois fia-se no seu talento comico, e sabe, dando ouvidos ao orgulho, que os outros não vão mais depressa por ir primeiro. Basta-lhe apregoar para vender. Estão agrupados os pedreiros a almoçar. O _José Custodio_ vae mancando e gritando: --Licença que veio do governo para os côdeas usar bigode! O sapateiro, quando elle passa gritando, berra de dentro. O _José Custodio_ esbofa-se a apregoar: --É a morte d'um sapateiro que morreu entalado com um pino! O _José Custodio_ é o epigramma, a satyra, a mordacidade vibrante. Por onde elle passa, incendeia o rastilho da curiosidade. Até certo ponto, encontrou um rival no _Jeronymo_, que tinha d'engenhoso quanto o _José Custodio_ tem de mordaz. Eram os pimpões do rancho; _reinadios_ como nenhum! O _Jeronymo_ affeiçoou-se a um cão, ou o cão se lhe affeiçoou a elle. Comprou um carro de pau, que o fiel mollosso tirava, e onde levava o jornal; a ideia do vehiculo suscitou-lhe a tentação de negociar em larga escala. Começou a vender por sua conta folhetos e repertorios. Era um andar que luzia! Um dia aborreceu-se de ser feliz e desertou: o cão desertou com elle. Mas que imaginoso homem o _Jeronymo_! No tempo da guerra franco-allemã arranjou tres canas com encaixes de folha. A ultima tinha no topo uma campainha, um gancho e um saquitel que se moviam por correia. Sahia de noite o supplemento. Batia com a cana na vidraça, a campainha tocava, no gancho ia o supplemento, o freguez abria a janella, e o _Jeronymo_ descia o saquitel que trazia dentro dez reis. Vejam que talento este! Ó prodigio! Um cego muito conhecido, que ainda não encontrou cão fiel e precisa de ganhar a vida, assalariou um rapasinho que o conduz. O cego apregoa, e o rapasinho recebe o dinheiro para vêr se é falso. E é assim que o jornal, que espalha a ideia, ampara a cegueira d'uns, a vida d'outros, e a pobresa de todos. Olá! São elles, os _gavroches_, que pedem o jornal d'hoje. Espera-se unicamente pelo folhetim. Pois bem, o folhetim ahi vae. * * * * * A AGUIA D'OURO O QUE FOI E O QUE É O dia 12 d'outubro de 1833 era de festa para todo o Porto, cidade que vae sempre na vanguarda das iniciativas patrioticas. Celebrava-se o anniversario natalicio de sua magestade imperial o senhor D. Pedro de Alcantara, duque de Bragança, e regente do reino. Ao amanhecer, ao meio dia e á noite salvaram as baterias das linhas de defeza ao norte e ao sul do Douro. O general Stubbs, commandante do exercito do norte, passou revista ás tropas estacionadas em seus acantonamentos nas linhas. Estiveram embandeiradas algumas ruas da cidade e estoirou durante o dia muito fogo do ar. Tanto que foi noite, houve illuminação geral, e abriram-se de par em par as portas do theatro de S. João onde a _sociedade dos actores nacionaes_, em commemoração de tão faustoso dia, representara um elogio dramatico denominado _Gloria de Lisia_, terminado o qual elogio o governador das Armas da Provincia levantou vivas á familia real. A _Chronica constitucional do Porto_, unico jornal que a esse tempo era lido de portuenses, escrevendo do espectaculo diz que _diversas obras Poeticas, e Hymnos encheram os intervallos do Drama que foi á scena_. O snr. João Nogueira Gandra, proprietario da typographia onde se imprimia a _Chronica_, publicou ao depois em opusculo todos os sonetos que se recitaram n'essa noite e na seguinte, em que o espectaculo se repetiu. N'aquelles tempos com tal impetuosidade repuxava o patriotismo poetico do imo peito, que não bastavam as breves horas d'uma noite a dar-lhe vasão. Os vates incendidos em amor da patria ficavam com o metro reservado para a noite seguinte, como hoje os nossos parlamentares ficam com a palavra reservada para a sessão immediata. Deixemos porém as bellesas de 1833 estadeando seus dotes naturaes nos camarotes do theatro de S. João, enviesando olhares mais amorosos que patrioticos aos cysnes que punham fóra da balaustrada o pescoço, cujos musculos se avolumavam apopleticamente quando a onda do estro refervia nos gorgomilos enfartados. Onde iremos nós levar a nossa mysanthropia, fugindo o congresso do que mais selecto havia em ambos os sexos na sociedade portuense? Mais selecto não podemos dizer, porque faltavam muitas pessoas da melhor roda contemporanea, entre as quaes bardos que hoje se diriam satanicos, e que antepunham o contacto das garrafas á contemplação de mulheres formosas. Esses taes leram na vespera o seguinte annuncio inserto na _Chronica constitucional do Porto_: «Amanhã sabbado 12 do corrente, se abre o novo Caffé do Commercio na rua nova dos Inglezes aonde se encontrarão diversidades de Vinhos e Licores engarrafados, Nacionaes e Estrangeiros.» A novidade do acontecimento e a perspectiva de lauto beberete devia de attrahir numerosa concorrencia ao _Caffé do Commercio_, que pela primeira vez se abria n'essa noite na casa onde actualmente está o escriptorio da companhia de seguros _Garantia_. Em conformidade com a opulencia botiquineira d'esse tempo, o novo _Caffé do Commercio_ tinha cortinas de chita e mostrava sobre o balcão uma longa fila de copos, voltado para cima o fundo, que servia de base a um limão. Como ainda então não estivessem arruinados pela dyspepsia os estomagos nacionaes, e houvesse portuguezes que bebiam um quartilho de geropiga com o simples condimento d'uma azeitona, eram minguadas as docerias nos botiquins e ordinariamente limitavam-se a _melindres_ e _bichinhas_. Quando porém os negociantes da baixa se sentiam enfraquecidos á hora do _lunch_ ou da merenda, não se repletavam com assucarices de nenhuma substancia. O petisco mais em voga eram ostras que vinham de Lisboa já cosinhadas no unico vapor de carreira que então havia, e que se comiam no novo _Caffé do Commercio_, a 60 rs. cada uma. Calcule-se do consumo dos liquidos n'aquelle estabelecimento tão prosperamente aberto, depois de saber-se que os mais appetecidos e procurados comestiveis eram ostras, mollusco sobremodo irritante para o systema nervoso, e talvez causa primaria da depreciação da geração actual. Mas voltemos á abertura do novo _Caffé_ solemnisada na rua dos Inglezes com vistosa illuminação que sobrelevava as demais. Apollo presidiu em espirito á bacchica tunantada. Os vates empunharam as lyras e, por muito costumados á dedilhação, até das bambas cordas tiraram muito correctos sonetos, mais lisongeiros ao duque de Bragança que agradecidos ao proprietario do botiquim, não obstante sentirem enervado o braço pela acção cada vez mais intensa dos liquidos. Parece que deposta a oitava-rima, por inopia de pojantes Camões, a fórma de metro mais patriotica n'aquelles tempos era o soneto, que, por muito familiar que fosse a festa, havia forçosamente de ser allusivo aos acontecimentos politicos da epocha. Um dos cysnes levantou o pescoço e modulou este soneto, que logo foi distribuido pelos circumstantes: Se brama pelos Ceos da Liberdade O espantoso trovão da Tyrannia; Se cobrem trévas a Lusa Monarquia, Fulge o clarão da antiga Heroicidade. Quanto cresce a despotica maldade, Assim dos povos o valor porfia, Com o _Chefe de Bragança_ por seu guia Enchem d'assombro a vindoura idade. Dias felizes, dias venturosos, Augura-nos o Ceo, em dons fecundo! _Maria_ e _Pedro_ nos farão ditosos. Daremos nobre exemplo á Europa, ao Mundo: Que os Povos de ser livres sequiosos, Calcam do despotismo o rosto immundo. O segundo soneto afina pelo mesmo tom emphatico; Thronos ha tido o Mundo, que producto Foram tão só de Leis, e sangue herdado, Quaes desde longo tempo celebrado Os gosa Portugal indissoluto. Outros não foram mais que excelso fructo Da Justiça, e do Merito elevado; Qual Viriato, e qual Sertorio honrado, Reis ou Chefes por solido atributo. Taes houve, e ainda os ha, a quem Cobiça, Ou Acazo erigio, contra seu Dono Fervendo a Execração que a Raiva atiça! A Segunda MARIA em seu abono, Em mais bases que as Leis e que a Justiça Tem sobre corações firmado o Throno. O terceiro soneto troa assim: Se em nossa idade, ó Jupiter, quizeste Com terrivel aspecto olhar a terra, Se os males todos da sanguinea Guerra Surgir do negro Barathro fizeste: A PEDRO tu doaste um dom celeste, Que ao fero Usurpador confunde e aterra: Monstro dos monstros, que no peito encerra Tartareas serpes que vomitam peste! PEDRO, d'altas virtudes coroado, Olha nos Luzos inconcusso abono De elevar sua Filha ao Solio herdado. Nunca Lisia hade ter intruzo Dono; Seu Rei é como os Numes adorado, E tem nos corações firmado o throno. Falta o quarto soneto; Nos faustos Ceos de Lisia triunfante, A Liberdade o grito levantando, Ferros ao Despotismo vai lançando De têmpera mais dura que o diamante. Do Throno o esplendor salva constante D'um principe brioso ao nobre mando: O Solio, quasi em terra, sustentando, Esmaga a Hydra de aspecto vacilante. Oh Principe ditoso, exulta, e vive, Para que esta Nação por Jove eleita Dos teus Decretos os seus bens derive. Da Patria, como Pai a olhar-te affeita, De Lisia, que na gloria hoje revive. Do salvo Povo, os corações acceita. Não obstante o fallar-se de _corações_ nas composições precedentes, parece que a viscera mais attendida na bambochata era o estomago, e a illuminação por igual abundante dentro e fóra. O dono da casa não tinha sobejos motivos para ficar lisonjeado da amabilidade dos convivas que não fallaram d'elle nem do botiquim. O certo é que n'aquella epocha em que não havia editores, os vates lucraram duplamente com o brodio, porque ao depois se imprimiram os sonetos na typographia Gandra, sendo cada soneto precedido d'estes dizeres; PUBLICADO E DISTRIBUIDO A 12 DE OUTUBRO DE 1833: POR OCCASIÃO DA ILLUMINAÇÃO, QUE NA RUA NOVA DOS INGLESES DA CIDADE DO PORTO SE PATENTEOU N'ESSE DIA DE ABERTURA DA CASA DE CAFFÉ DO COMMERCIO Custava o folheto, de quatro paginas, um vintem. Se bem que os versos em 1833 estivessem mais baratos do que as ostras, os poetas, attento o pequeno dispendio da impressão, deviam enfardelar no mesmo sacco, a despeito do anexim, honra e proveito. Ora este _Caffé do Commercio_, que recebeu ao nascer o baptismo da politica, veio depois a mudar-se para a Praça da Batalha com o nome de _Aguia d'Ouro_, sem todavia desmentir, apesar da mudança, as tradições que lhe embalaram o berço. Venus do botiquim, sahiu da onda da revolução e mantem-se revolucionario, posto que decorado ao gosto moderno, com espelhos, mesas de marmore, e apainelado o tecto com manchas multiformes de humidade e immundicie. Não obstante o desgracioso do tecto, alli se travam ainda os grandes acontecimentos portuenses, as pateadas, os _meetings_, as eleições, e alli se discutem as magnas questões do estado. Verdade é que ha outro botiquim onde se conversa de politica,--o _Suisso_. Todavia este caffé usa entreter-se na tranquilla politica municipal, ao passo que os mais animados debates da _Aguia_ versam sobre politica governamental. Da _Aguia_ tem sahido acontecimentos para a historia; do _Suisso_, que nos conste, apenas uma ou outra occasião sae uma embriaguez para a pharmacia. Sem embargo muitas discussões da _Aguia_ acabam por diluir-se em amoniaco. Já disse pois o que foi a _Aguia d'Ouro_ e o que é. Quanto a mim, a _Aguia d'Ouro_ é... o que foi. * * * * * PHYSIOLOGIA DO THEATRO DE S. JOÃO (NO DOMINGO GORDO DE 1873) Elle é grande e triste. Não obstante hade esta noite encher-se de sociedade sedenta de recrear-se. As senhoras estão nos camarotes como livros de marroquim em estantes de mogno. Lêem-se as etiquetas e passa-se adeante. Os bailes de mascaras permittem em toda a parte que se atire uma flôr, um rebuçado, uns versos. Alli não. O mais que se atira é um... olhar. O mais que se faz é um cumprimento. Bonitos livros mas em sanskrito. Tudo luxuoso e frio. É que elle, o theatro de S. João, é grande e triste. No Palacio de Crystal um baile de mascaras é uma batalha; os galopes são cargas de bayoneta. No theatro de S. João valsa-se para passeiar á roda com outra mascara. No palacio bebe-se Xerez ou Porto; em S. João parece que todas as pessoas estão costumadas a tomar vinho em... pilulas. Gostam de comer delicadamente um cacho d'uvas, e sentem-se horrorisadas deante d'uma garrafa. Para ir a S. João basta haver ceiado; para ir ao Palacio é preciso ter comido uma ceia. S. João é uma sala; o Palacio é uma avenida. Em S. João é uma visita; no Palacio é uma escaramuça; a S. João vae o mascara; ao Palacio vão as mascaras. Depois que dá meia noite parece estremecer a grande nave do Palacio na vertigem do galope. É um assalto á quaresma que está perto, uma lucta, um combate; é preciso vencel-a e dançar ainda em quarta feira de cinza. É uma invasão das hostes do carnaval pelos reinos das endoenças. Ah! tu estás ahi, ó roxa penitencia, a dois passos de distancia, palida dos teus jejuns, angustiada pelos teus cilicios, arrependida dos teus erros! Pois bem. Nós somos o vendaval da alegria, que saccode as tranças loiras da Magdalena peccadora. Tu queres impor-nos o arrependimento, e nós queremos vencer-te para que nos deixes valsar algumas horas mais. E rompem de esfusiada pelo salão fóra os pares, parecendo correr todos a aggredir um ponto invisivel, um inimigo mysterioso. No theatro de S. João o baile de mascaras não é uma refrega mas um acampamento. Parece descançar-se em vez de combater-se. As armas estão ensarilhadas, porque é a noite em que mais se dispensa o binoculo. Espera-se que sejam duas horas da manhã para retirar. Quando começa o _sopro do Euro_, o _vil quebranto_ a agitar as arvores da Batalha, principiam a rodar as carruagens. É que tambem as palidas bellezas parecem sopitadas pelo _vil quebranto_. Esta phrase é d'um grande poeta contemporaneo, o snr. Raymundo Felgueiras, no final d'uma formosa quadra que eu li algures: Cahiste, como a rosa desfolhada, Que não via murcho o purpurino encanto, Não aos beijos da brisa perfumada, Mas ao sopro do Euro, ao vil quebranto. Ás duas horas _murcha o purpurino encanto_. Os candelabros bruxoleam. Os porteiros--aquelles homens mysteriosos que ninguem ainda pôde vêr de dia na rua--dormem pelos corredores dentro dos seus amplos casacões. Sae-se pois ás duas horas, fugindo ao tempo, emquanto nos outros theatros se corre ainda atraz do tempo para detel-o. O Camões do tecto tem já fechado o unico olho que lhe resta. João Baptista Gomes resona. Almeida Garrett está aborrecido por não vêr damas a quem esteja galanteando. Gil Vicente, o falso Gil Vicente do theatro de S. João, pensa em escrever um novo romance satyrico modelado pelo seu _Gargantua et Pantagruel_. Que mistiforio é este! Gil Vicente a escrever romances satyricos... em francez! Perdão, é que o Gil Vicente do theatro de S. João não é Gil Vicente mas Rabelais. Eu lhes conto. Quando se tractou de pintar o tecto do theatro, os administradores da casa a esse tempo perguntaram ao meu erudicto amigo o snr. José Gomes Monteiro se conhecia os retratos de João Baptista Gomes e Gil Vicente. Sua ex.ª indicou o paradeiro do retrato de João Baptista, e pelo que tocava ao de Gil Vicente certificou os administradores do theatro de que não havia deixado retrato. Esta circumstancia pareceu contrarial-os vivamente. --Mas, volveu o consultissimo bibliophilo, podem facilmente fazel-o substituir por outro escriptor. --Isso prejudica um pouco o nosso plano. --Sim; nós optamos pelo Gil Vicente, acrescentou outro administrador, e... queremos o Gil Vicente. --Mas se não deixou retrato! --Emfim, se a gente advinhasse como era Gil Vicente! --Ah! isso póde muito bem ser. --Pode ser? --Muito bem... --Como? --Fazendo substituir Gil Vicente por outro escriptor da epocha. --Óptima lembrança!... --Qual ha de ser? --Vejamos... --Vamos a vêr se lembra. --Lembro-me d'um! apostrophou o snr. José Gomes Monteiro. --Qual? --Um escriptor da mesma epocha e cuja individualidade litteraria não deixa de ter seus pontos de contacto com Gil Vicente... --Chama-se? --Rabelais. --Muito bem! Procurou-se o retrato de Rabelais, e pintou-se Gil Vicente, aquelle Gil Vicente que o leitor póde vêr esta noite n'um dos quatro medalhões do tecto do theatro de S. João, e que a mim mesmo, que sei esta anecdota, me fez algumas vezes desconfiar de que não seja Rabelais, porque o meu binoculo me permitte vêr em grandes caracteres o nome de Gil Vicente sotoposto ao medalhão... O caso é que Rabelais, á hora que os camarotes se despovoam, parece preparar na mente, a julgar pela contracção sarcastica das faces, um novo romance satyrico em que moteje da composta austeridade da sociedade portuense n'um theatro onde, ha cincoenta annos, se queimou fogo artificial no palco, executado por João Semelhes, e um palhaço divertiu os espectadores com a graciosa _Macaquinha_, e se dançou o _Fandango_, e se fez a exhibição da _Corda Bamba_. Para os leitores que duvidarem da fidelidade d'estas asserções vou copiar alguns periodos de dois annuncios d'espectaculo n'aquelle theatro, no tempo em que alli trabalhou uma companhia de funambulos, o que devia d'acontecer ahi por 1824. Os avisos trazem apenas indicado o dia; não me foi possivel precisar a epocha. No primeiro _aviso_, correspondente a 24 de julho, lêem-se estes periodos: «O _Palhaço_ divertirá os Senhores Espectadores com novas, e diversas habilidades, entre as quaes executará a Scena do Bebado, dando fim a esta primeira parte a graciosa _Macaquinha_.» Mais abaixo: «Madama _Joannita_, e o _Diabrete_ dançarão os Boleros, dando fim o divertimento com duas peças de Fogo Artificial de composição Italiana, executadas por _João Semelhes_, cujas constão de hum brilhante sol com variedades de côres, entre as quaes apparecerá o raro fogo azul, e outra que figura uma Rosa Italiana transparente, donde apparecerá por tres vezes um distico aluzivo a _Sua Magestade_ fidelissima (D. João VI) formando-se no fim em uma brilhantissima Gloria, rodeada de lindissimas estrellas.» Do segundo _aviso_, correspondente a 3 de fevereiro, basta citar estas linhas: «... dançará depois _Madama Joannina_ o _Sólo Inglez_, a que hão-de seguir-se os vistosos _equilibrios_ do _Menino_, depois dos quaes se dançará o _Fandango_, terminando-se todo o devertimento com a _Corda Bamba_, onde o insigne _Diabrete_ fará admiraveis difficuldades.» A sociedade d'aquelle tempo riu e applaudiu com sincero enthusiasmo todas as facecias e evoluções da companhia de funambulos. Agora, por maior que seja a festa e o artista, parece que ninguem traz gratas sensações do theatro de S. João mórmente d'um baile de mascaras. Faz-se um silencio sepulchral nos intervallos. Ás vezes apenas se escuta um levissimo rumor: é uma fita que se agitou ou uma petala que se despegou d'um toucado. Em epochas mais turbulentas atiram-se estalos á plateia. Os artistas italianos, quando lá fóra lhes perguntam pelo clima de Portugal, já vão respondendo: --É bom; o peior que tem é o estalo. O estalo no Porto é como a _febre amarella_ na America e a _carneirada_ na Africa. Tirante o accidente do estalo, o clima do theatro de S. João não prejudica ninguem. Sae a gente como entrou: quente se entrou quente, fria se entrou fria. Antigamente, quando se ceiava nos camarotes da quarta ordem, podia a gente sahir de lá com uma indigestão, ou, quando se exhibia a graciosa _Macaquinha_, rebentar um suspensorio, ou finalmente chamuscar o casaco quando o Semelhes queimava fogo artificial no palco. Qualquer d'estas contrariedades podia ser perigosa, mas sendo a vida uma serie de perigos, viver era aquillo. Agora, ó Catalani, ó Milanez, ó madama Joannita, ó phosphorecente Semelhes, eu lembro-me tristemente de vós, e desejo-vos; principalmente se ha estalo, invejo-te, Semelhes! * * * * * PHYSIOLOGIA DO THEATRO BAQUET Ha theatros que procuram a gente, em vez de ser a gente que os procura a elles. Para ir ao Palacio de Crystal, por exemplo, é preciso ir lá procural-o ás ribas outr'ora solitarias que se aprumam sobre o Douro. Quando vamos ao theatro de S. João, sahimos de casa no proposito de ir ao espectaculo, como quando vamos almoçar á Foz ou jantar á Ponte da Pedra. É uma caminhada que se faz simplesmente por distracção. Todavia com o theatro Baquet não acontece o mesmo;--é o theatro que nos procura, é elle que nos dá na vista, que nos chama, que nos tenta. Sahimos de casa para comprar um par de luvas, um chapéo, um casaco, umas botas, uma _badine_, um relogio, um frasco com conserva, uma caixa de charutos, um oboé, para tomar um banho, para mandar tingir um collete, para reconhecer um attestado, e até para comprar tortas, por divertimento, porque eu já conheci um comilão de _tortas_ ás direitas, que as trazia no bolso, e que de instante a instante se mettia n'um portal, como quem accende um charuto, para comer uma torta. No theatro guardava uma provisão de tortas na copa do chapéo, e ia-as comendo de intervallo a intervallo, fazendo no botiquim unicamente a despeza de um copo de agua. Mas voltando ao Baquet,--sahimos de casa para comprar qualquer coisa, e damos comnosco na rua de Santo Antonio. Fazemos a transacção, paramos á porta do theatro a lêr o cartaz, e vemos a passeiar no atrio o snr. Antonio Moutinho de Sousa, floreando a sua _badine_ na posse da mais tranquilla felicidade, de modo a dar á gente tentações de ser empregado no theatro para vêr se tambem engorda. Entra-se ao portal. Depois de entrar, é vergonhoso retroceder. N'este momento chega um actor cantarolando, e emquanto o bilheteiro faz o troco entra uma paviola com um sophá de velludilho encarnado e quatro cadeiras d'espaldares doirados. Por Deus! como aquelle actor ha-de cantar bem á noite, se até pela rua se anda ensaiando! como as cadeiras hão-de relampejar reflexos deslumbrantes á luz da rampa! Sae a gente e passa pelos cartazes com o reservado orgulho de quem sabe mais do que lhe dizem. O cartaz annuncia simplesmente o espectaculo, mas o comprador do bilhete sabe o que não diz o cartaz,--que entram no drama cadeiras com espaldares doirados. Á noite enxameia á porta do theatro o bando dos agiotas. --Quer geral? --Quer cadeira? E a gente rompe por entre elles com a sobranceira indifferença de quem tem desde pela manhã, no bolso do collete, o divertimento que elles nos offerecem, esbofando-se. No theatro Baquet ha sussurro nos corredores. No theatro lyrico entram as senhoras, cobertas d'arminhos, friamente silenciosas, e assomam aos camarotes com a estudada compostura de quem vae ser retratado. Muda o caso no Baquet; as senhoras charlam pelos corredores, e os homens descem rapidamente as escadas, cumprimentando e saltando. Bem! É um theatro popular, onde os espectadores fallam alternadamente com os actores, e onde a gente póde espirrar á vontade sem que lhe digam do lado--_sciu_! Os frequentadores habituaes do theatro Baquet--os das platéas, entenda-se--dividem-se, a meu vêr, em trez classes distinctas: espectadores fluctuantes, espectadores fixos, e espectadores moderados. Os espectadores fluctuantes são os que occupam as primeiras filas da superior, e os logares das coxias na geral. Alguns,--especialmente os da superior,--trazem camelia ao peito e luva côr de canario. Mal desce o panno, saiem para o botiquim, para os camarins, e para os corredores. Que teem elles que fazer em todos os intervallos? Que vão dizer? Nada. Saiem porque são fluctuantes. Entram á plateia quando começa a symphonia. Encostam-se á varanda da orchestra, com requebrada negligencia, olhando uns para os camarotes atravez do binoculo e outros cantarolando se estão em scena os _Apostolos do Mal_: As moças da nossa aldeia D'aldeia de S. Luiz, Fallam sempre de maridos E n'um enlace feliz; ou se se representam as _Mulheres de marmore_: Amas tu. Marco gentil, Os salões cheios de flores, Com uma alegria infantil As danças, risos, amores? Espectadores fixos são uns sujeitos pesados, que não se mexem na cadeira, e que conversam nos intervallos com os visinhos da direita e com os visinhos da esquerda, incommodando-se com os espectadores fluctuantes que os obrigam a levantarem-se ao sahir e ao entrar. Espectadores moderados são, a meu vêr, os que saiem em dois intervallos, quando a peça tem cinco actos, e os que só incommodam o porteiro no fim do drama se depois do drama vae comedia. São methodicos. Da ultima vez que saiem não é por variedade mas unicamente por methodo. Vão buscar o guarda-chuva ou a bengala para evitarem os apertos da confusão no fim do espectaculo. Passemos ás galerias. A galeria é um mundo dentro d'um theatro. De hemispherio a hemispherio medeia o oceano-platéa. As ondulações, as correntes, e as tempestades estão na platéa, mas nas galerias ha a variedade do atlas:--alli é que estão as castas, os systemas, as luctas, a verdadeira liberdade do homem e a verdadeira emancipação da mulher. Pouca gente leva uma creança para um camarote, mas o povo leva os seus filhos para a galeria. É que reside alli a soberania popular. Os mil episodios, que por via de regra accidentam a vida das nações, reproduzem-se nas galerias. Ha em todos os espectaculos do Baquet--digam se não é verdade--uma creança que chora: um visinho da esquerda que se oppõe á expansão vocal da creança, e um visinho da direita que proclama alto e bom som a liberdade da larynge. Estas luctas são eterno apanagio do povo. Ha sempre um velho, ou bonacheirão, rosado, inxundioso, que diz graçolas, e é o divertimento dos visinhos durante os intervallos, ou um velho zarolho, de cabello em ss e chapéo quinhentista, silencioso, que se não levanta toda a noite, e que faz a critica do drama e da platéa pela unica janella que a Providencia lhe deixou aberta para vêr a humanidade. O velho gordo, se vê que uma _lorette_ põe a cabeça fóra da galeria, para ser vista, acode logo a dizer: --Estenda a cabeça, estenda, que lhe caiem os pingos das vélas! O velho sêco olha com o seu luzio para a _toilette_, e volta logo a cara para o outro lado, porque de si para si fez austeramente a seguinte reflexão: --Bem te entendo! Ha sempre nas galerias um _cicerone_. É ordinariamente um cocheiro, de jaqueta e chapéo redondo; explica todas as situações da peça ainda que seja nova. --Ella agora vae pegar n'aquella flôr! Ás vezes, mórmente se o drama é novo, o cocheiro engana-se, e a actriz em vez de pegar na flôr bebe um copo d'agua. O _cicerone_ não se acobarda. Continua a explicar;--explica tudo. Isto facilmente se comprehende. O cocheiro precisa de presumir-se sabio. Pergunta-se-lhe: --Sabes onde mora F.? --Sei, meu amo. Não sabe. Vai andando á espera que lhe batam na janella da carruagem. --Pára; é aqui. --É aqui; eu bem sabia. O cocheiro precisa realmente de dizer que sabe. Vamos agora ao botiquim. O botiquim do _Baquet_ offerece curioso estudo. É preciso ser-se philosopho para se exercer o logar de botiquineiro alli. De contrario, ao cabo do primeiro intervallo, o botiquineiro estaria doido com toda a certeza. O snr. Magalhães, botiquineiro, é pois um philosopho. --Uma sangria! --Gelatina! --Uma limonada! --Uma orchata. --Um grog! N'uma palavra, é nem mais nem menos que todos os espectadores fluctuantes a dizerem ao snr. Magalhães: --Retalhe n'um momento o seu botiquim e dê a cada um de nós um fragmento. Qualquer homem menos philosopho responderia: --Ó senhores! não os posso servir a todos ao mesmo tempo! Sem este senhor beber a limonada, não dou ao senhor o grog. Isto era o mesmo que perder a freguezia. O snr. Magalhães descubriu um optimo systema para viver com todos. Como seja grande a concorrencia, alguns espectadores, em rasão da sua mesma natureza fluctuante, já estão no corredor no momento em que deviam pagar. O snr. Magalhães bem percebe que é logrado, mas não se afflige. Tem a paciencia de esperar para o dia seguinte. D'esta maneira tudo vae bem. Conta-se de Mazarino dizer: «Cantam! Deixal-os cantar; elles o pagarão.» Toda a philosophia do snr. Magalhães tem por eixo esta anecdota de Mazarino: «Escapam-se! Elles o pagarão.» Saiamos do botiquim para fallarmos ainda d'uma classe supplementar de frequentadores, que já iam esquecendo. São os espectadores-meteoros. Não compram bilhete pela simples rasão de não terem tempo de o comprar. Entram á platéa e dizem ao porteiro: --Eu saio já. Está o panno em cima. (Elles entram sempre quando o panno está em cima). Encostam-se á varanda da orchestra. Passam em revista os camarotes, medem a plateia com um só olhar, e saem. Vae a gente a procural-os, e já não os vê. São meteoros; desappareceram. Quando a gente os procura, já estão em outro theatro. Tambem por sua vez são philosophos; toda a philosophia d'elles está no adverbio _já_. --Eu saio _já_. E vêem tudo. Ora eu, se fosse actor e fizesse beneficio, havia de perguntar ao porteiro: --Você quantos _jás_ conhece? A esses é que eu passaria bilhetes para vêr o que respondiam. Agora me lembro! Salvavam-se ainda com o mesmo adverbio: --_Já_ tenho. Depois de conhecida a nau e a tripulação, justo é fallar do piloto, que vai tranquillamente encostado á cana do leme, sereno em meio da azafama geral, saboreando-se nos mil accidentes de bordo, como homem que morreria nostalgico se porfiasse a sorte em arrancal-o ao mar. O Palinuro do _Baquet_ é o snr. Antonio Moutinho de Sousa, actual empresario. Nasceu para o theatro como o piloto nasceu para as vagas. É alli que elle vive feliz. Derivaram os primeiros annos de sua vida na eschola e na ourivesaria de seu pae, mas chegado a idade em que no espirito começam a desabrochar as tendencias, boas ou más, ao sabor das quaes havemos de fazer a peregrinação terrena, o snr. Moutinho, contados 24 annos, embarcou para o Rio de Janeiro, e foi escripturar-se no theatro do Gymnasio. Os jornaes brasileiros de 1858 festivamente commemoram a brilhante apparição do snr. Moutinho no Gymnasio. Ha um periodo notavel do _Correio Mercantil_ que diz assim: «O primeiro passo da sua vida artistica como os dos antigos guerreiros da sua patria nas areas d'Africa a derrubarem nos campos da lucta os obstaculos que lhes impediam a victoria, foi grandioso e decisivo! Percorreu em um só dia o escabroso e longo estadio que conduz o talento ao perystilio do sanctuario das artes.» O ser actor revelou-lhe que tambem podia ser litterato,--dramatisou, folhetinisou e versejou agradavelmente, mas todos os lances solemnes da sua vida ao theatro os deveu. Casou em primeiras nupcias com a actriz D. Ludovina Devecchy, e em segundas com a actriz D. Amelia Simões. Parece que todo o seu fito foi escolher esposa que comprehendesse as tradições gloriosas do theatro e houvesse sacrificado no altar do bello. Se o snr. Moutinho tivesse casado com certa dama que uma vez dissera ter ouvido _uma peça em cinco dramas_, o snr. Moutinho requereria immediatamente divorcio. Como empresario tem o seu camarim. Podia ter simplesmente um escriptorio, mas o snr. Moutinho quer ter camarim para se enganar a si proprio. Passa as noites d'espectaculo a tomar café. É um velho habito theatral. Quer excitar os nervos para as luctas da scena, como se houvesse de representar. Encontram-se n'elle todos os requisitos d'um empresario, e até, se attendermos unicamente ao homem, conheceremos que o snr. Moutinho está entre a gordura do empresario Palha e a gordura do empresario Price. Todavia affigura-se-nos que o snr. Moutinho poderá fazer um d'aquelles admiraveis prodigios que só se conseguem no theatro, e vem a ser--representar um papel de galan tendo proporções de empresario. É preciso acabar, e sahirmos do Baquet. Toda a gente sabe como se sae do Baquet: hombro com hombro, braço com braço. Tanto se aproximam os espectadores á sahida, que é talvez essa a rasão de se conhecerem todos uns aos outros. Um sujeito conhecemos nós que ao sahir uma noite do Baquet metteu a mão no bolço do _bournous_ para tirar a charuteira, e encontrou com grande surpresa uma caixa de prata. Só então reconheceu haver introdusido a mão no bolso do espectador que vinha a par. Passou angustias para se salvar com dignidade do equivoco... Ora são justamente estas peripecias, todas as circumstancias que ahi ficam amontoadas, que dão ao theatro Baquet uma individualidade caracteristica. * * * * * TELHUDOS HISTORICOS A _telha_ é muito antiga. Nos tempos heroicos vae o escalpello do historiador encontrar conspicuos _telhudos_ como Orestes, Athamas, e Alcmeon, posto se dissesse simplesmente que _viviam atormentados pelas Eumenides_. Nos tempos historicos tornam-se notaveis pela _telha_ Pythagoras, Socrates, Mahomet e Luthero. Em tempos menos remotos apparecem na historia uns celebrados _telhudos_ que se chamam Swedenborg, Pascal e Voltaire. É uma consolação... Encosta-se a gente com a sua _telha_ a estas cabeças-firmamentos da historia, que ora tinham relampagos de genio, ora negruras de sandice, e vae vivendo. Não se falla por ahi na historia a cada passo? Para se dizer que um sujeito é velho não se lhe chama Mathusalem? Nero para dizer que é mau? Job para dizer que é paciente? Pois muito bem. Desculpemo-nos da nossa _telha_ com a historia na mão, e vamos vivendo com o nosso mal, porque para mim é ponto de fé que, sendo _telhudos_ os maiores genios, cuja memoria assombra o mundo, não ha por ahi sujeito que não tenha a sua _telha_. Os que são mais robustamente organisados sabem que a teem e procuram modifical-a, como se combate uma enfermidade; os que nasceram peior acabados vão vivendo sem se lembrar um unico dia de que nasceram com _telha_ e com lombrigas. A uns e outros desculpa a historia. Pouco importa conhecer ou não conhecer a _telha_,--o caso é tel-a. Hyppocrates veio a dizer na sua que a _telha_ estava na cabeça; Lacaze e Bordeu que estava no diaphragma, e Bichat no coração. Esteja ella onde estiver; o certo é que está dentro de nós e da historia. Isto mesmo de querer dizer onde a _telha_ está, já é _telha_. O que estou vendo é que os sabios da velha antiguidade eram muito mais perspicazes que os sabios dos tempos modernos. Nos tempos heroicos, se um sujeito tinha a _telha_ de rinchar de cavallo, dizia-se logo que entrara n'elle o espirito de Neptuno; se a _telha_ lhe dava para começar a cantar de passaro, era por alta vontade de Apollo. Agora a sciencia trata de enxotar a ideia do _espirito ruim_ o apregoa que se o sujeito tem _telha_ é porque nasceu tolo. Isto assim não vae bem. Em remotissimos tempos pagãos desculpava-se a _telha_ de pythonissas e sibyllas com influição divina; agora vem a sciencia e diz que a _telha_ procede de imperfeição do systema nervoso, chamando-lhe _monomania_. Ser _monomaniaco_ é não poder um homem andar e proceder por sua conta e risco. Tanto vale como matal-o. É preciso pois que façamos crusada e nos defendamos com a historia. Os homens do passado constituem a historia que hoje lêmos, assim como nós constituiremos a historia de amanhã. Pois folheemos a chronica do passado e ponhamos a nossa _telha_ ao abrigo de censuras, escondendo-nos agachados contra o pedestal de preclaros homens que o mundo festeja, e deixemos assim aberta uma valvula de segurança para respirar a _telha_ de nossos netos. Comecemos. O marquez Arouet de Voltaire... Marmontel conta que fôra um dia, acompanhado pelo seu amigo Gaulard, visitar Voltaire. Encontrou-o na cama, recostado em travesseiras, de barrete de lã na cabeça. --Encontram-me a morrer, disse com voz debil o philosopho. Venham receber o meu ultimo suspiro. Mr. Gaulard commoveu-se, mas Marmontel, que já conhecia a _telha_, tregeitou a Gaulard para calmal-o. Voltaire entrou de conversar e de animar-se progressivamente. --Meu caro Marmontel, disse elle, folgo de vêl-o em occasião em que lhe posso apresentar um estimavel artista, mr. Ecluse! Como elle canta a canção de _Remouleur_. E Voltaire começou a imitar Ecluse cantarolando; Je ne sais oú la mettre Ma jeune fillette, Je ne sais oú la mettre Car on me la che... Os hospedes riam estrepitosamente. --Imito-o mal, bem sei, objectou Voltaire, é preciso ouvil-o a elle, ao proprio Ecluse. Oh! que voz aquella! _Telhudo!_ La Fontaine, o meigo educador das creanças, pertence ao rol. Casou com Maria Hericard, uma formosa e intelligente mulher. Passados tempos, abalou para Paris esquecido de haver casado. Aconselharam-n'o porém alguns amigos a reconciliar-se com sua esposa. Partiu com esse intuito e, procurando madame La Fontaine em Chauteau-Thierry, disseram-lhe que estava na igreja. Recolheu-se a casa de um amigo, onde comeu e dormiu durante dois dias,--ao cabo dos quaes regressou a Paris. --Então, reconcilias-te com tua mulher? --Não a pude vêr: estava na igreja. Certo militar convidou La Fontaine para banquete opiparo com o simples intento de o ouvir discretear á mesa. La Fontaine comeu, bebeu e apenas disse levantando-se: --Tenho d'ir á Academia. --É ainda muito cedo... --Não importa. Irei por onde fôr mais longe. _Telhudo!_ D'Alembert... Elle, o grande geometra, o chefe da seita encyclopedica, chegou a ser um escravo amoroso de mademoiselle Espinasse. Sahia todas as manhãs para lhe fazer serviços, a comprar alfinetes ou ganchos, e, quando o seu rival Mora partiu de França, ia ainda como de noite esperar o correio á estrada para levar as cartas a mademoiselle Espinasse. _Telhudo!_ Saint-Foix, author do _Essais sur Paris_, e varias obras... Estava uma vez no caffé _Procopio_, a lêr o _Mercurio_. Era á noite. Entrou um sujeito e pediu capilé. Saint-Foix disse da sua mesa: --O capilé é uma triste ceia! O sujeito olhou e ficou-se. Torna Saint-Foix: --O capilé é uma triste ceia! O sujeito carregou o sobr'olho. Torna Saint-Foix: --O capilé é uma triste ceia! --Isso é commigo, senhor? --Pois com quem? O capilé é uma triste ceia! Foi immediatamente reptado, bateu-se no Luxemburgo, e recebeu uma cutilada. Já em terra, banhado em sangue, apostrophou: --Isto não prova nada. O capilé é uma triste ceia. _Telhudo!_ Pugnani, compositor de musica e celebre violinista piamontez... Estando uma noite tocando violino em meio de numerosa sociedade, parou subitamente e disse: --Senhoras e senhores, rezem cinco _Padre-Nossos_ pelo pobre Pugnani. E ajoelhando começou elle proprio a rezar o _Padre Nosso_. _Telhudo!_ Sua exc.ª o barão de Dangu... Tinha a _telha_ de querer ser almirante, e, como houvesse passado no mar os primeiros annos de sua vida, sabia um avultado numero de termos nauticos de que diariamente usava. O palacio em que morava tinha a configuração interior d'um immenso navio. Os criados vestiam de marinheiro e tractavam-n'o por almirante. O barão fazia _quarto_ no terraço que chamava _convez_. Pela manhã dizia-lhe um dos criados: --O mar foi muito esta noite! Quando elle queria sahir, outro criado berrava pelo porta-voz: --A chalupa do almirante ao mar! Isto queria dizer que pozessem as cavallos á carruagem. Momentos depois, o barão subia ao _convez_, d'onde com o auxilio de cordas, descia á carruagem, que se abria pelo tecto. _Telhudo!_ Mr. Berluguer, author de tres enormes volumes--_Les farfadets_. Ora os _farfadets_ eram demonios que elle dizia vêr pendurados das arvores do jardim, do espaldar do catre e ás cabriolas sobre a mesa do jantar. Pensava que a melhor maneira de se vêr livre dos _farfadets_ era mettel-os em garrafas ou atravessar-lhes o corpo com alfinetes. Tirante esta notabilissima _pancada_, era um homem alegre e amavel, que sabia conversar com senhoras. Basta porém lêr os _farfadets_ para conhecer que era... _Telhudo!_ O historiador Mezerai, membro da Academia Franceza... Escrevia á luz da candeia, ainda que fosse meio dia, e pleno estio. Quando alguem o visitava, acompanhava-o ao corredor, de candeia na mão, e algumas vezes chegava á porta da rua: --Olhe lá, não caia, dizia elle. _Telhudo!_ Sua magestade catholica, Filippe V, rei d'Hespanha... Este soberano passava na cama seis mezes inteiros, sem cortar o cabello e as unhas, sem mudar de camisa. Umas vezes queria que o capellão do paço fosse á camara real dizer missa ás cinco horas da manhã, outras ao meio dia e outras ás oito horas da noite. No inverno mandava abrir de par em par as janellas; durante os ardores caniculares dormia com tres cobertores de papa. Muitas vezes, emquanto dormia, arranhava-se e, quando acordava, começava a gritar que o haviam mordido os vermes. Julgava-se então morto, mordia em si, em seus filhos e na rainha. Perguntavam-lhe o que tinha. Respondia: --Não tenho nada! E desatava a cantar. _Telhudo!_ Sua ex.ª o marquez de Brunoy... Quando morreu o marquez pae, mandou despejar em todos os tanques do palacio almudes de tinta d'escrever para que as aguas tomassem lucto; e cobriu de crepes todas as arvores do parque. Era o sachristão da igreja de Brunoy. D'uma occasião, em Conflans, pegou no cadaversinho d'uma criança debaixo do braço, e foi elle proprio sepultal-o. Ahi por 1775 projectava ir de sandalias e esclavina á Terra Santa, fazendo-se acompanhar por sessenta romeiros. A familia pôde estorvar-lhe o plano e sua ex.ª o marquez desistiu de ser peregrino para continuar a ser... _Telhudo!_ Esta é a grande lição da historia. Quando alguem nos atacar, leitores, facilmente nos poderemos defender apontando para o enorme epitaphio da historia, que diz: «Aqui jaz a _telha_ de muitas gerações.» Jaz e ha de jazer. Culpa é dos ministros portuguezes que fazem reformas na instrucção e não supprimem o estudo da historia. Mandam-nos estudar historia; estudemos. Admiremos os _telhudos_ e sejamos tambem _telhudos_ por nossa vez. Lá diz o conhecido verso: Un sot trouve toujours um plus sot qui l'admire. É fado. Iremos caminhando de _telha_ em _telha_. O numero dos tolos é infinito, diz o livro santo, e é assim. Acho prudente o conselho de não sei quem que disse: quem os não quizer conhecer, não saia de casa e quebre o espelho... * * * * * OS DOMINGOS No _Parocho_, romance religioso de Roselly de Lorgues, ha um periodo que diz: «Newton, extasiado perante as maravilhas da creação, observou que de todos os dias do anno é o domingo aquelle em que os vapores da atmosphera nos encobrem menos o astro brilhante.» Assim devia ser. O domingo é o dia do repouso, da tranquillidade, do lar. «Ha sueto geral--diz ainda Roselly de Lorgue;--está suspensa a lei do trabalho.» É portanto este o dia em que se lê, em que o povo procura o jornal, em vez do jornal ir procurar o povo, como acontece durante a semana. O jantar do artista tem ao domingo mais um prato e mais um copo. Urge pois que o homem de trabalho procure tornar-se digno da modesta opulencia da sua mesa. D'aqui procede a ancia de se nobilitar, de se illustrar; de lêr ao domingo. Viveu na fabrica toda a semana; vive ao domingo no lar. Ora a leitura é um laço que prende á familia, um prazer sereno que requer silencio. O operario senta-se a uma restea de sol, com o seu jornal debaixo do braço, com o seu cigarro na mão. O tabaco--embora o neguem pessimistas--torna a percepção mais clara. Fuma e lê. Quer encontrar o seu jornal variado, alegre, leve e crystallino. Entende. Um cerebro inculto é como um estomago fraco. Demanda alimento ao mesmo passo substancial e de facil digestão. Pelo jornal se identifica o artista com a sociedade. Sabe o que se passa nas altas regiões de que elle vive esquecido toda a semana. É então que trava conhecimento com os actos do governo. Ás vezes deprehende da leitura que tem de pagar mais. Fica triste. Tem filhos, e recebe pequeno salario. Mas desce com a vista ao folhetim, e o folhetim serena-o por isso mesmo que lhe não falla de impostos. Lê com curiosidade, ás vezes sorri, e levanta-se para ir comer o seu guisado e beber o seu copito, supplementos domingueiros do jantar, mais lembrado do folhetim que do imposto. Senta-se á meza, e como é força que o folhetim d'um jornal popular seja candido na ideia e singelo na fórma, o artista facilmente reproduz o folhetim á mulher que não sabe lêr. Não adquiriu sciencia, nem elle estava intellectualmente preparado para recebel-a; o que adquiriu, e já não é pouco, foi amor á leitura,--á leitura, este elemento de moralidade, quando prudentemente adoptado, porque preservera da orgia e affasta da ruina. Estas foram as rasões que me levaram a escolher o domingo para o folhetim semanal,--conversação facil, que eu procurarei guiar sempre por caminho desatravancado d'espinhaes, sejam quaes forem os cataclismos da sociedade, e por mais brutalmente que escouceiem os onagros nas selvas visinhas. É justo dar ao povo o que nasceu do povo,--o folhetim. Preciso porém dizer-lhes que eu faço distincção entre o antigo folhetim e o moderno folhetim. Um é aristocrata; o outro democrata. O primeiro saiu dos palacios d'Athenas; o segundo dos theatros, dos botiquins de Paris. O primeiro rojou-se aos pés de Aspasia e Lais quando os gregos as mandavam entrar ao _dessert_ na sala do banquete, justamente ao contrario dos inglezes, que é ao _dessert_ que expulsam as mulheres. O segundo saiu da caixa de rapé do abbade Geoffroy, uma noite, na Opera, quando elle a abria para offerecer uma pitada a mr. Bertin, que o tinha acompanhado. O primeiro recebeu ao nascer o baptismo dos vinhos de Corintho, de Samos, e de Chios. O segundo mergulhou na onda nacarada do Bordeus ou do Champagne. No seu _Grande diccionario de cosinha_, recentemente publicado, escreveu Dumas pae: «Foi n'estes elegantes jantares (de Athenas) que se formou a conversação grega, conversação ao depois copiada por todos os povos, e da qual a nossa era, asseguro-o, antes da introducção do cigarro, uma das mais vividas e mais rapidas copias. D'aqui a expressão _sal attico_.» Assim foi que nasceu o folhetim aristocrata, passando de bocca em bocca, borboleteando entre os convidados, que eram ordinariamente sete, em honra de Pallas, rematado provavelmente com um beijo de Phryné ou com um sorriso d'Aspasia. Depois passou da Grecia para Roma. Os banquetes d'Augusto, conversados por Virgilio, Horacio e Pollion, deviam de ser folhetins delicadamente cinzelados como os cyathos imperiaes. Todavia o grande espirito de Augusto amava a publicidade, e permittia que circulassem em Roma as anecdotas dos seus opiparos folhetins. Conta-se, por exemplo, que certo dia, em que jantava com Virgilio e Horacio, se desculpara d'umas sombras de tristeza dizendo que estava entre os _suspiros_ e as _lagrimas_, porque um d'estes escriptores soffria dos pulmões e o outro tinha uma fistula lacrimal. No tempo d'Augusto já o povo romano conhecia a publicidade. Julio Cesar foi o verdadeiro creador do jornal. Nos primeiros tempos de Roma os pontifices escreviam dia a dia os acontecimentos do céo e da terra. Julio Cesar arrancou o privilegio aos pontifices fazendo redigir e publicar os actos quotidianos do senado e do povo. O que, segundo uma bonita phrase de Julio Janin, foi passar duas vezes o Rubicon, desvelando d'uma vez para sempre os tenebrosos mysterios do senado romano. Tão inveterado estava porém entre os patricios o habito do folhetim á mesa, tanto o banquete era mais uma recreação para o espirito que um prazer para o estomago, que Heliogabalo reunia á mesa anões, zarolhos e corcundas para os vêr da galeria e os ouvir conversar durante o jantar. Era um folhetim burlesco, como ás vezes por ahi apparecem alguns, o que Heliogabalo queria. Fallemos agora do folhetim democrata, nado e creado em Pariz, teudo e manteudo pelo abbade Geoffroy. Nominalmente o folhetim data de 1789, do nascimento do jornal politico em França. Chamava-se assim o espaço em que o jornalista escrevia, na parte inferior da pagina, a resenha dos trabalhos que a Assemblêa deixára indicados para o dia seguinte. Mas o folhetim só começou a existir de facto no fim do seculo XVIII. Um homem de letras havia a esse tempo, ao mesmo passo escriptor e clerigo, o abbade Geoffroy, que, entediado das noitadas do _caffé Procope_, voluntariamente se desterrou de Pariz. Um certo dia, porém, mr. Bertin, que comprara aos irmãos Baudonim a propriedade do _Journal des Debats_, lembrou-se de ir procurar o espirituoso abbade ao seu remoto escondrijo. Foi e arrastou-o. --Que quer de mim, Bertin? perguntou-lhe o abbade. --Que venha jantar commigo a Pariz, que vá á noite commigo á Opera, e que ámanhã me escreva um artigo para o primeiro numero do _Journal des Debats_. O abbade lembrou-se dos seus tempos, e foi. As palmas, os bravos, as acclamações espiritaram-n'o. Ao outro dia fez a critica da opera na parte interior de duas columnas, e a terceira encheu-a Bertin com anunncios de theatro. O artigo, occupando o logar do _folhetim_, chamou-se _folhetim_. O povo leu e gostou. Correu a comprar o jornal, chegou a disputal-o, o successo foi ruidoso, e Geoffroy não só fez a sua celebridade senão que tambem tornou celebre o _Journal des Debats_. Geoffroy d'alli em deante applaudia, acclamava, pateava e assobiava no folhetim. O povo seguia-o, acompanhava-o, o povo pensava com Geoffroy e Geoffroy pensava pelo povo. Foi o povo que lhe deu nome, a elle e ao folhetim, e era para o povo que Geoffroy escrevia. Não havia trova popular, caricatura, retrato e lanterna magica--até lanterna magica!--que não reproduzisse o abbade folhetinista. Quando elle morreu, annunciou-se nos collegios a sua morte depois do _Benedicite_. Geoffroy festejado! Geoffroy applaudido! Geoffroy... cantado! O successor de Geoffroy no folhetim foi Charles Nodier. Não o excedeu mas não o deshonrou. Depois de Nodier vieram Etienne Bêquet, Duvicquet, e outros, sempre acclamados e sempre attendidos pelo povo, até que chegámos á revolução litteraria de 1830. Então appareceram Sainte-Beuve, Dumas, Janin e Gautier. O dia que o movimento litterario do romantismo designou ao folhetim foi a segunda feira. D'ahi o chamar-se ao folhetim _causerie du lundi_, e aos folhetinistas _les rois du lundi_. _Os reis da segunda-feira!_ Reis, porque? Porque empunhavam elles o sceptro da opinião? Porque eram os soberanos absolutos da critica? Nada d'isto. Porque cada folhetinista da segunda-feira tinha sua côrte d'admiradores, seus salamaleques, e seus subditos. Alexandre Dumas chama a Sainte-Beuve um poeta; a Janin um phantasista, e a Gautier um esmaltador. «Sainte-Beuve,--continua a escrever Dumas pae,--não se quer indispor com ninguem.» «Janin é um escravo do seu estylo.» «Gautier o Benvenuto Cellini do periodo». Era-lhes o folhetim _vitrine_ onde estadeavam as pompas da sua linguagem finamente rendilhada. Os aulicos da sua côrte eram as mulheres da Opera, os academicos e os _virtuoses_. Janin pertence actualmente ao numero dos quarenta da academia franceza. Como havia o povo de entender um escriptor que traduzia Horacio e dispunha de recursos para chegar a ser academico? O folhetim, aristocratisado, era para os erudictos, para as salas, e para os gabinetes. Vestia casaca, lenço branco, e trazia flôr na _boutonnière_. O povo, que comprehendia Geoffroy, não entendia Janin. Mas como o jornal depende essencialmente do povo, começou o jornalismo a folhetinisar o noticiario, a fazer espirito, a contar anecdotas, de sorte que o povo comprava o jornal, não por causa do folhetim, como no tempo de Geoffroy, mas por causa do noticiario. Isto foi, e isto é ainda em França. Ora eu que não posso ser academico, que não cinzelo a phrase, que não disponho de recursos para ser Janin e Gautier, escreverei n'um jornal do povo unicamente para o povo. O folhetim veiu do povo; é preciso portanto que elle vá para o povo, quando o povo o póde receber,--ao domingo. Que vá, que lhe falle de assumptos que elle conhece, que não seja nubloso na phrase, impuro na ideia, que não tenha subtilezas, mas que se faça lêr, que se faça applaudir se poder, e que uma vez por outra nobilite a caixa de rapé do abbade Geoffroy. * * * * * AS ITALIANAS A esta hora fogem as que estiveram entre nós. Deixem-me porém fazer uma observação. As italianas de que vou fallar não são as mulheres de Italia,--são as mulheres da Opera. Não nasceram para viver,--nasceram para cantar. Por isso andam cantando de paiz em paiz, e chegam no inverno, quando a natureza emudece, partindo na primavera, quando as andorinhas regressam... São ricas, opulentas, e todavia o mais que guardam na sua mala são os seus anneis de cabello, as suas fitas e as suas rendas, coisas tão leves que o vento póde agital-as. O thesouro d'ellas está na garganta; lá é que guardam as _notas_, que trocam em qualquer paiz, sem desconto, antes com o premio das palmas e dos applausos. Cantando atravessam o mundo, as tempestades sociaes, os cataclismos da humanidade. Cabe-lhes perfeitamente a anecdota que se conta do guitarrista Phillis, pae da celebre cantora do mesmo nome. Uma vez, durante o Terror, um magistrado chamou-o e perguntou-lhe: --Como se chama? --Phillis. --Que faz? --Toco guitarra. --Que fazia no tempo do tyranno? --Tocava guitarra. --Que vae fazer pela republica? --Tocar guitarra. Ellas tambem atravessam todos os regimens, a republica, a monarchia, a propria tyrannia, cantando, sempre cantando, sem que o imperador Guilherme recuse ouvil-as por haverem cantado na presença de Grant ou de Thiers. Constituem ellas mesmas a unica realeza perduravel, porque lá está a Sass em Madrid sendo rainha, victoriada, festejada, acclamada, e todavia a Hespanha acaba de emergir a fronte do baptismo republicano. O certo é que a nobreza lhes é instinctiva, que se habituam a reinar, a viver baloiçadas nos seus briskas, deslisando sobre tapetes, roçagando sedas, colhendo flores e joias, revendo-se em espelhos, e admirando-se tanto de receber o _bouquet_ d'um burguez como um bracelete que lhes envia um monarcha. Uma rainha parece haver alienado a delicada sensibilidade dos seus nervos quando atravessa as multidões que se precipitam sobre o coche saudando-a doidamente; a cantora domina com um sorriso a tempestade dos applausos, sem chorar de commoção, sem tremer d'alegria, sem se desvairar d'orgulho. Rasão de sobra tinha madame de Pompadour quando disse depois de ouvir cantar Sophia Arnauld: --D'aqui havia com que fazer-se uma princeza. Parece que é de todas ellas a legenda das pastoras que ao depois foram czarinas. Nascera da obscuridade, o destino atira-as aos braços da gloria,--é por via de regra um empresario que as ouve cantar uma tonadilha e as aggremia logo á sua _troupe_--chegam a ser muito ricas, como se houvessem encontrado thesouros encantados, e já fiam tanto da sorte, que esperam encontrar collares e braceletes por toda a parte sem se darem o incommodo de procural-os. Ainda outro dia, na Russia, na noite em que a Nilson se despedia cantando o _Fausto_, lhe fizeram a surpreza de encher de preciosos brindes o cofre que devia abrir ao cantar a _aria das joias_, e ella, sem se admirar, sem se agitar de commoção, foi examinando-as e cantando, cantando sempre, até chegar a repetir toda a _aria_, porque uma cantora de verdadeiro talento bem sabe que a sua voz é a vara de condão que faz surgir os thesouros. No quarto acto, depois da scena da igreja, deram-lhe um annel todo liso, do qual pendia uma grossa _lagrima_, formada d'um só diamante. Felizes mulheres, para as quaes a saudade do publico se desentranha em lagrimas de... diamantes! Quando acabou o espectaculo, tiraram-n'a nos braços para a carruagem, que rodou vagarosamente, escoltada por gentis cavalleiros, á luz de fachos, cujos reflexos vivissimos permittiam vêr a diva. Ás vezes, como as pastoras da legenda, chegam a ser esposadas por titulares, como a Patti, hoje marqueza, e ainda algumas vezes chegam a enamorar os principes. Frederico II quiz a todo o custo reter na Prussia a Mara, e, quando ella tentou fugir das algemas da admiração real, expediu emissarios para lhe tomarem o passo e reconduzil-a á capital. A poesia desde muito tempo que reconhece a realeza das italianas. Depois que no Porto se introduziu o costume de espalhar versos no theatro lyrico, em todos elles encontro eu, revolvendo as collecções, alguma coisa que denuncia vassallagem. Ha quarenta e oito annos dizia um poeta anonymo á Varesi: Harmonia, ó Deidade encantadora, Da naturesa magico thesouro, Legisla aos corações teu sceptro d'ouro, Incenso universal teu throno escora. Ha vinte e nove annos outro poeta anonymo cantava á Rossi Caccia: Rainha das canções! ó nobre filha Do portentoso Lacio, onde inda ovante, Em mil padrões de fabrica pujante, A gloria dos Heroes avulta e brilha. Cento e onze annos vão decorridos desde que o governador general João d'Almada e Mello inaugurou o theatro lyrico do Corpo da Guarda fazendo ouvir aos seus governados a primeira italiana, a Giuntini, na opera _Trascurato_. Desde então para cá quasi todas ellas têm atravessado o theatro do Porto calcando tapetes de flores, rompendo florestas de applausos, colhendo nos loureiraes da scena as corôas que para ellas pendem, e sentindo esvoaçar sobre a fronte o bando alado dos versos, muitas vezes com azas de setim, como aconteceu á Laura Geordano e á Luisa Ponti. Depois, porque ellas são como as aves migrantes--deixam após si o rastro brilhante do seu talento, e vão levar a Italia aos gelos da Russia, aos nevoeiros da Inglaterra ou aos lagos da Suissa. Vão, algumas vezes desprotegidas, sós com a sua Italia, com a recordação dos explendidos horisontes da patria, das gondolas do seu Adriatico, da sua lingua pittoresca e harmoniosa, que não podem fallar em todo o longo caminho. Vão passando de festa em festa, de theatro em theatro, e ás vezes, depois do espectaculo, algumas d'ellas se sentirão tristes na sua pavorosa solidão, ainda ao pé das flores que lhes atiraram, e das joias que lhes offereceram. É por isso talvez que muitas casam com artistas, para terem um coração que as defenda e um braço que as proteja. Procuram talvez mais um coração que as defenda do que um braço que as proteja. A Schmoehling casou com o violoncellista Mara, cujas faces eram hediondas de variola, perdeu o appellido de seu pae para acceitar o appellido d'este homem, ella, a formosa captiva de Frederico II, só porque o Mara era musico e podia entender-lhe as tristezas sem causa, os desconfortos do triumpho... Uma noite, ao entrar no camarim para poisar os seus _bouquets_ e as suas corôas, recebe uma d'ellas um telegramma de Napoles, porque os talentos mais doces são talvez os de Napoles. Até já um escriptor notou que em Italia parece haver um dialecto para cada classe de gente. O de Veneza convém á sensualidade das cortezãs, o de Florença á elegante nobreza dos grandes senhores, o da Sicilia ás graças simples e rusticas dos pastores de Teocrito, o de Roma á _bonhomia_ maliciosa dos burguezes, mas o dialecto de Napoles é o dos artistas, do povo-poeta, da população que nasce a cantar e que vive a cantar sem saber lêr nem escrever. O que era o pae da italiana? Por ventura um pescador ou então um _canta-storie_, um canta-historias, a quem os _lazzaroni_ faziam circulo, sempre que elle apparecia na praça. A _diva_ tem ainda de cantar o final da opera, mas deseja mais partir para Napoles, porque o telegramma lhe diz que o pae está moribundo, do que subir ao proscenio. Não ha transigir com o dever. Vae cantar, a sua voz tem lagrimas, é admiravel, é sublime, e só o empresario sabe talvez que ella está cantando e sentindo dilacerar-se o coração fibra a fibra. E que se está lembrando de que na véspera da festa da Piedigrotta, reunidos na gruta de Pausilippe, o pae cantara para o povo a _Finestra bassa_, no seu pittoresco dialecto: Finestra bassa e padrona crudele, Quanti sospiri m'hai falto gettare, e de que ella mesma cantára com a sua voz infantil e vibrante aquella formosa aria napolitana _Te voglio ben'assage_, e de que os _guaglioni_ a applaudiram, os _guaglioni_ que em Paris, com o nome de _gamins_, lhe venderam algumas vezes jornaes á sahida do theatro. Quem lhe dera a ella encontrar ainda vivo o pae, vel-o com a sua jaqueta azul e o seu collete vermelho, como na noite da Piedigrota, mas o publico chama-a, e acclama-a, e ella sente deslisar-lhe nas faces a chuva das petalas, algumas das quaes rolam humedecidas com uma lagrima! Finalmente a ovação extinguiu-se, é livre, e sae do theatro sosinha, cantando e suspirando ao mesmo tempo: Finestra bassa e... Quer chegar a tempo de receber a benção paterna, e vae chorando, chorando, porque se lembra de que se o pae a chamou para lhe assistir ao passamento, ella não terá por quem chamar no leito da morte... Pois a gloria? Oh! a gloria é só para a vida, é a illusão, a embriaguez, o delirio, e a morte é a realidade, a pedra do sepulchro, o silencio do cemiterio, e o mysterio da eternidade... A gloria deixou-a ella com as flores que ficaram no camarim, sobre as corôas de louros que dentro em pouco estarão ressequidas... E todavia, á hora em que ella vae chorando sosinha pelo caminho, correm o mundo as italianas, e toda a gente diz--Chegaram!--Viu-as?--Eil-as! e ella vae já muito perto de Napoles, e só com vêr o céo da sua terra teve coragem para enxugar as lagrimas e soluçar: Finestra bassa e padrona... * * * * * EMILIO CASTELAR Sabeis o que é ir correndo mundo, com os olhos fitos n'uma esperança, vencendo todos os obstaculos, dormindo á sombra d'uma arvore á espera da aurora, que é o pharol dos que navegam no mar da vida, deixando-se bater dos temporaes que passam mugindo e alastrando a estrada de folhas e flores? Os viandantes apenas relanceiam um olhar de surpreza ou desdem ao peregrino que vae absorto no seu pensar, e logo desviam a vista a procurar horisonte, sem se importarem mais com a sombra que se afastou, d'olhos baixos, porque o horisonte que procura ainda está longe, porque o céo coberto de nuvens sinistras não côa ainda os fulgores iriados do sol... A sombra que perpassou por vós, ó caminheiros da vida, levava uma ideia comsigo, um proposito, um desejo, uma esperança. Vós ides com a vossa ideia; elle vae com a sua. Vós procuraes um horisonte; elle procura outro. Vós quereis aproveitar o dia; elle quer esperar a alvorada. Ris-vos! Pois se o sol desencadea das alturas torrentes de luz, dizeis vós, se tudo é azul e oiro no céo, elaboração e abundancia na terra, como é que o peregrino vae a procurar a aurora que se illumina apenas de palidos diluculos, e não aquece o mundo, e não fecunda a gleba, e não doira as aguas? Toda a gente vos dará rasão, porque a humanidade costuma legislar para as circumstancias normaes da vida, para as temperas vulgares que seguem a rotina do vicio ou da virtude, para as abelhas que volitam em inalteravel rotação em derredor da grande colmea do mundo, e não vos obrigam a suppôr o caso extraordinario de desertar uma do enxame e ir procurar em jardins remotos os sucos com que ha-de encher de mel o seu favo. Ah! não riaes. É que o espirito d'elle não foi vasado nos moldes communs do vosso; é que a sua alma não se póde medir pela bitola que põe limites ao vulgar dos homens; é que o peregrino que passou tem o seu ideial n'umas alturas que só a aguia com a sua vista audaz e penetrante logrará devassar. Ride pois. Chamae-lhe devaneador, utopista, poeta, visionario... Notae porém que nobreza a sua! Vós não vos contentaes com o vosso riso banal, e chegaes ao insulto; elle vae com a sua ideia e com o seu silencio, á procura do seu sol. Vós transigis com todos os accidentes da jornada para vos dardes repouso e conforto; elle não entra ás pousadas, porque lá dentro ha rumor de vozes, e cada um dos convivas ha de ter uma opinião que póde não ser a sua. Senta-se pois á sombra de uma arvore, por entre cujas frondes descem as fitas do luar ou as ondulações do sol, porque a arvore póde dar sombra a todos, e porque sobranceiro á arvore fica o céo que é o abrigo universal... Alli tem as suas visões, as suas luctas, alli se retemperam as suas esperanças, e ainda o horisonte tão vasto e tão limpido, sem um contorno que denuncie a architectura dos castellos sonhados na phantasia! Não importa. Bastará uma hora de descanço physico para reanimal-o. Depois, lá irá pela estrada deserta, rompendo as trevas, expondo a fronte ao açoite dos vendavaes, á procura da sua luz. É o peregrinar continuo do sonhador que não encontra, dizeis vós, a realidade, porque o seu ideal não terá realidade. Ah! vós sabeis lêr no futuro, escrutar os segredos do amanhã, sondar o destino que é intangivel? E elle, o peregrino, tambem se podia rir de vós, porque elle bem sabe que muitas vezes na nuvem rosada do occaso referve latente a tempestade da noite. Não se ri, não vos insulta: caminha. Mas sabei, porém, que o sonhador que vós chasqueaes é o audaz Colombo que vae á procura d'um mundo novo; o velho Noé que anda recolhendo madeiras para construir a arca em que se ha de salvar no diluvio sonhado; o inquebrantavel Demosthenes que erra de montanha em montanha para afinar pela orchestra das tempestades a revolta eloquencia com que ha de oppôr uma enorme barreira ás hostes conquistadoras de Philippe. Todos tres pareciam devaneadores, e todavia a visão de Colombo abrange um hemispherio, e a arca de Noé depõe nas faldas do Arará a familia que ha de ser humanidade, e Demosthenes com um só decreto lucta contra os exercitos de Philippe. Se o visseis, tambem vos ririeis do louco que andava acordando os echos dos fragoedos para _domar as rebeldias da palavra_, que devia de ser a primeira espada hellenica. E todavia o devaneador solitario das montanhas mereceu aos athenienses seus irmãos este epitaphio: «Ó Demosthenes, se a tua força fosse igual á tua eloquencia, jámais o Marte da Macedonia haveria submettido a Grecia!» Demosthenes dos tempos modernos, Emilio Castelar, o sonhador da republica hespanhola, errava desde os primeiros annos na indefessa peregrinação do seu ideial. Quando mais brilhavam de clarões festivos os paços de Castella, e o throno de S. Fernando se recamava de custosos brocados, ia elle mundo alem, de capital em capital, ouvindo os homens e estudando os acontecimentos para tirar horoscopos com a credulidade do sonhador que só vive do seu phantasiar. Quem no caminho o encontrava, ficava-se dizendo aos companheiros: Visionario! E os companheiros repetiam: Visionario! E elle caminhava, caminhava, medindo-se com a voz da tempestade, como Demosthenes, e expondo a ampla fronte ao turbilhão que arrastava na passagem o sceptro de Napoleão III, a corôa d'Izabel, o manto de Maximiliano, folhas soltas da arvore da realeza... Corria o mundo, visitava Paris, estudava Roma, e a peregrinação não tinha ainda acabado, e havia tantos annos que partira! D'onde partira elle, o visionario? Da praia do seu pensamento, das regiões da liberdade, da _sancta sanctorum_ onde guardava este evangelho da sua religião politica: «A liberdade, a igualdade, prégadas no Golgotha, selladas com o sangue de Christo, verdades religiosas no Evangelho, vieram a ser na austera Suissa, n'esses Estados Unidos que se sacrificam pelo escravo, grandes verdades sociaes. O mundo moderno, a civilisação moderna, não farão mais que estender essas verdades e applical-as á vida. São como a lei definitiva da historia. Passarão ás gerações arrastadas pela corrente dos seculos, e não darão de si ideal superior ao ideal da liberdade.»[2] Para onde ia elle, o sonhador das Hespanhas? Ia para o futuro que devia chegar fatalmente, para a realisação do seu ideal, para as paragens sonhadas que o seu espirito procurava. Acabava de vibrar o seu grito de liberdade no Atheneu de Madrid e ia para a Republica de Hespanha. E, nem por affrontado do caminho, levava o coração cheio d'odio contra os reis. Amava os principes, quando fossem magnanimos; o que elle não queria era a corôa, o throno e o sceptro, porque a corôa averga a fronte, porque o throno eleva o homem e o homem é uno, e porque o sceptro fatiga o braço que o sustenta. Queria liberdade, e até para os principes a queria. Por isso, quando a generosa alma do filho de Victor Manoel, espavorida dos horrores da grandeza, quiz sacudir de si os arminhos da magestade, e aspirou á liberdade do seu principado, do seu lar, da sua patria, Emilio Castelar, redigindo a resposta á mensagem d'el-rei Amadeu, generosa como a renuncia do monarcha, fez votos porque a liberdade, que o principe deixára nos seus jardins de Italia, voltasse a sorrir-lhe de novo, deposta a corôa que comprime a fronte... Quando elle viu descer do throno o ultimo rei d'Hespanha, não parou para dizer--Emfim!--mas antes o ficou abençoando, porque comprehendeu a alma do principe, que não tivera uma palavra d'azedume para os que o elegeram e o desampararam, e porque o julgava tão feliz como elle proprio, porque para ambos havia terminado a trabalhosa peregrinação, a de um pelas regiões do poder, a do outro pelos dominios da phantasia. E a visão convertera-se em realidade, e a Hespanha, o paiz das tradições monarchicas, patria de reis que chegariam para occupar muitos solios, a Hespanha, dizia eu, deixava vazio o unico throno que tinha, e sem dar tempo a que resfolegasse a ambição dos pretendentes á realeza, arvorava a bandeira da republica sem havêr derramado uma gota de sangue nos despojos da magestade... E os que tinham gritado: Visionario! ficaram olhando estupefactos para o horisonte que no céo da peninsula apparecia refulgente dos clarões matinaes da ideia nova. E o peregrino despia a esclavina do caminho e lançava ao povo hespanhol, da tribuna do poder, construida pelo povo, as primeiras palavras do crédo republicano, porque, como disse Fenelon d'um periodo analogo da historia grega, «tudo dependia do povo e o povo dependia da palavra». Se a eloquencia é chamada a representar um papel activo nos destinos d'um paiz, se ella tem necessidade de ser uma instituição do estado e um meio de governo, é de certo quando se desencadeam todas as forças vivas d'uma raça que readquire a consciencia da sua individualidade e do seu poder. Então á torrente infrene da vontade popular, da seiva que rebenta em cachões do coração do povo, é preciso oppôr a torrente da eloquencia reflectida, a luz d'um grande espirito, que desempenhe a missão do sol, e aqueça a seiva, para que possa fructificar e revigorar todas as sinuosidades do organismo nacional. A Grecia, no periodo fecundo que seguiu o grande movimento das guerras médicas, quando a alma popular respirava desopprimida do jugo de Pisistrato, teve Pericles que appareceu ao mundo como a mais completa encarnação da força nova, dirigindo com a palavra, durante vinte annos, os destinos do paiz. «Pericles, fallando, diz um historiador francez, tinha a força e a serenidade do Jupiter homerico, tal como o cinzel de Phidias acabava de creal-o. O que dominava no orador era um sentimento profundo da gloria de Athenas e do papel que ella lhe havia confiado.» A Hespanha d'este que póde ser periodo fecundo, á similhança da Grecia, tem tambem o seu Pericles, digno como elle do cognome de Olympiano, cuja palavra alternadamente poderá servir de barreira e de leme, de sol e de tufão, de correcção e de guia. O mundo antigo costumava vencer com a espada; o mundo moderno deve convencer com a palavra. Convencer é vencer duas vezes: vencer-se a si e vencer aos outros. Esta dupla missão pertence ao nosso seculo; seja pois a palavra que derrube, a palavra que construa, a palavra que persuada, que arraste, que conquiste. E a Hespanha, no por emquanto breve periodo da sua fórma republicana, já por mais d'uma vez tem carecido da força e da serenidade do Jupiter homerico, já comprimindo a impaciencia popular n'este dilemma pungente: _Ou rei ou dictador_, já serenando as facciosas tempestades parlamentares, como na sessão do dia 14 de março, com o seu verbo incisivo, pensado e ardente. Elle tem, como Pericles, o sentimento profundo da gloria d'Hespanha, e é sobre as aguas da democracia que pretende estender a sua vara de Moysés apontando a liberdade nascente. Trabalhará, fallará, persuadirá. O que elle pede é a liberdade collectiva, a felicidade da sua patria, mas se o destino lhe fôr adverso, contentar-se-ha com a liberdade individual, volverá á modesta posição de escriptor, aos seus jornaes americanos, á sua velha propaganda até que resurja de novo a aurora, porque Emilio Castelar morrerá republicano, sorrindo á liberdade. * * * * * ANIMAES E VEGETAES Outro dia ia eu passeando ao longo d'aquella extensa avenida do Prado do Repouso, quasi ao anoitecer, á hora em que os visitantes saem e o coveiro entra. Fui andando, andando, com os vagos pensamentos que dá o estar entre tumulos, e mais d'uma vez me pareceu ouvir murmurar as grandes arvores que ladeiam a avenida pendidas aos sarcophagos. E insensivelmente me occorreram os versos de Lamartine: Tout parle. Et maintenant, homme, sais tu pourquoi Tout parle? Ecoute bien. C'est que vents, ondes, flammes, Arbres, roseaux, rochers, tout vit! Tout est plein d'ames. E entrei de contemplar pensativamente as arvores a vêr se lhes encontrava coisa que fosse vestigio d'alma. Murmurar, murmuravam ellas; ora se a gente falla porque pensa, claro está que os vegetaes teem sensibilidade e intelligencia. Depois fui-me lembrando de que Lamartine havia descoberto outrosim que tudo n'este mundo tinha, alem de voz e alma, modo de vida: ... l'abime est un prêtre et l'ombre est un poête e completei os meus pensamentos pela ideia de que,--assim como os vegetaes possuiam alguma coisa de gente humana, bem podia a gente humana ter alguma coisa de vegetal. E fortifiquei-me na philosophia de Lamartine tentando averiguar que casta de planta ou arvore seriam algumas pessoas, das que a phantasia me ia configurando alli mesmo. Ah! bem sei, disse-me eu, tu, uma rapariguinha corada, muito aceiadinha, com dois signaes pretos nas duas faces, tu, que podes ser mestra de meninas ou _femme de comptoir_ nos bazares do Palacio, que nasceste mais para andar em cima d'um prato do que em cima dos tacões, tu, haverias nascido morango, sim, morango, d'aquelles de que se comem duas duzias, pela manhã, antes d'almoço. E tu, ó rapariga que vendes os morangos, que nasceste na Magdalena, que tens a robustez das organisações retemperadas pelo mar e pelo acre salutar dos pinheiros, tu, que tens perna de varina, que vens á cidade por baixo d'um sol abrasador, de modo que chegas á Ribeira cheirando a saude e a sol, tu serias fatalmente, irremessivelmente,--maçã camoeza. E tu, ó morena de faces tostadas e pennugentas, de boas cores carregadas, cheia, refeita, tu, que não nasceste á beira do mar, mas nasceste á beira da serra, tu nascerias, se teus paes fossem vegetaes, tu nascerias pêcego. E tu, ó camponeza quarentona, com as tuas enormes argolas a cahirem nos refegos do pescoço, tu, que vens á cidade em dias de romaria com os teus pesados grilhões d'ouro e as tuas grandes soletas de verniz e setim, tu, que és talvez mãe de dez ou doze raparigas-pêcegos, tu serias uma rotunda bolina, não das que os lavradores vendem, mas das que dão de presente ao administrador ou ao juiz de direito. E tu--ó contraste!--tu, menina esverdeada, que tens escrophulas ou soffres do figado, tu que pareces sahir d'um banho de verdete e que tens uma mamã com o mau gosto de te dar vestido verde, e brincos de esmeralda, tu, pendida do teu camarote, para melhor ouvires o Santos ou a Emilia Adelaide, tu, n'essa mesma inclinação em que te vejo, tu haverias nascido, ó desventurosa menina--como isto é triste!--tu haverias nascido--vagem. E tu, ó borracho encartado, que tens o unico modo de vida de passar os dias nos armazens, que trazes a cara colorida dum vermelho-roxo que dá o abuso do vinho, tu, que és tão inutil para o mundo como o é a amora para o lavrador, tu apparecerias n'este mundo, se teu pae se chamasse _Silva_,--feito amora. E tu, que nasceste fadado para seres caixeiro de teu pae, que poderias chegar a aperfeiçoar o artefacto com que elle se enriqueceu se não desses a escrever versos e a lêr poetas allemães, a pintar olheiras, a fazer-te triste, a andar com a cabeça pendida, a escrever o teu artigosinho para o jornal, tu, que andas curvado a procurar pelas ruas os pensamentos que os outros deixaram, tu, se não fosses o que és, meio litterato e meio negociante, tu serias o que devias ser--chorão. E tu, que és alto, magro, escuro, que trazes bengalão e não bates em ninguem, que serves quando muito para fazer inflammar a gente, tu nascerias pinheiro, e darias pinhas, que são boas para atear o fogo. E tu, ó calumniador insupportavel, que appareces entre os homens para aborrecel-os e para incommodal-os, tu, de quem todos fogem e que só serves para incommodar e aborrecer, tu, se nascesses n'um jardim, serias com toda a certeza--arruda. E tu, ó feia de boas qualidades, mal feita de corpo e bem feita da alma, tu, que não tens graça propria e soccorres a desgraça alheia, tu nascerias marmello, fructo pouco sympathico, de que se faz a marmellada, que é realmente muito peitoral para os que soffrem. E tu, ó parasita, que andas sempre encostado aos outros, que te vaes mettendo á viva força por entre os que teem um vintem de seu, que nos vaes perseguindo á medida que te vamos enxotando, tu bem sabes o que serias, ó parietaria social, tu serias--hera. E tu, que és anguloso, que trazes sempre o casaco a dançar nas protuberancias osseas e os joanetes a luctar com as botas, tu, que és uma pessima figura e talvez uma boa alma,--tu nascerias pêra de sete cotovellos. E tu, ó languido Romeu, que estás sempre doente, que não pensas em ganhar a vida porque teu pae tem bom emprego, que precisas de muito resguardo, segundo diz a mamã, e que passas quasi todo o anno mettido no mar, a conselho do medico, tu és para a sociedade o que a alface é para a mesa,--uma coisa molle e transparente, que não fortalece o estomago e que se come por luxo--portanto tu serias--alface. E tu, ó aborrecido grosseirão, que nos deixas sempre indigestos da tua presença, que só és supportavel quando estás ao pé de tua irmã, que são uns bons trinta annos, e de tua filha, que são uns bons vinte contos, tu serias pepino, sim, tu serias pepino, fructo que só se póde tolerar, em salada, com azeite e vinagre á mistura. E tu, ó pequenina graciosa, que pareces contar eternamente vinte annos, que dás á gente vontade de te passear ao collo em vez de te passear pelo braço, que tens não obstante a elegancia da tua pequenez, tu serias forçosamente, pequenina e gentil como és,--tu serias--avellã. E tu, ó conductor de mala-posta, queimado e musculoso como um athleta, tu, que atravessas serras e serras ao pino do meio dia, e estás sempre apto para o serviço, tu és a uva da humanidade, porque a uva tambem vive entre fragas, e recebe côr do sol que apanha, e tem o prestimo que tu lhe costumas utilisar muitas vezes ao dia,--e por isso, ó conductor de mala-posta, tu, a seres vegetal, serias--uva! E tu, ó menino que cursaste sete annos o lyceu, e incommodaste os professores com grandes empenhos e teus paes com grandes despezas, para ao cabo de sete annos de luctas e dispendios alcançares unicamente certidão de exame de francez, tu, ó inutilsinho, ó pedantesinho, que te dás a importancia da tua ignorancia, sabes como se chamaria teu pae, se fosse arvore, e como te chamarias tu, a seres filho de teu pae? Pois bem, eu t'o digo, para que o fiques sabendo, d'uma vez para sempre, entende bem,--d'uma vez para sempre,--elle chamar-se-ia _Carvalho_ e tu serias--bugalho. E tu, ó eterno pretendente, que vives aos pés dos ministros, que te dás bem na humidade das secretarias, que encaras como modo de vida o ser pretendente, que não serves senão para seres o que és,--que te parece que serias se a philosophia de Lamartine não fosse apenas um devaneio poetico? Tu serias tortulho. E tu, ó agiota, ó fraca figura que tens a força do dinheiro, que és preciso para tudo, que tens o que dá luz ao homem e sabor á vida, que tens na tua algibeira o azeite com que se tempéra e allumia a existencia, tu nascerias--azeitona. E tu, ó irascivel, ó atrevido, ó petulante, que pareces arder e fazes arder a gente, que te dás a conhecer em toda a parte pela rudeza agreste de teus gestos e palavras, tu, a não seres o petulante, o atrevido, o irascivel que és,--tu serias malagueta. E tu, ó espirito lucido e malicioso, que tens graça, que tens alegria, que dás colorido e relevo ás mais relamborias semsaborias, tu que és a animação e a vida, que desembotas o paladar e abres o apetite, tu nascerias--pimento. E tu, ó alma angelica, ó pallida enfermeira do filho moribundo, ó nobre coração que enthesouras todas as riquezas n'esse cofre em que se torna o coração da mulher quando chega a ser mãe, ó santa, ó mãe, tu serias o que de mais delicado póde haver entre as flores,--tu serias--lyrio. E tu, ó irmã carinhosa, formosa e boa, terna e gentil, mixto de innocencia e formosura, ó pura amiga, ó doce amparo, que te escondes do mundo se nós soffremos, e que lhe sorris se o sol da felicidade nos doira a vida, tu serias, porque o és,--sensitiva. Ó insipida menina, que dizes _não meu senhor, sim meu senhor_, que não sabes sorrir, que não sabes fallar, que não sabes viver--tu serias--lima. Mas teu primo, aquelle azougado rapaz, que é a alegria da tua casa, que está sempre a metter-te á bulha, e que parece ter sido dado á luz por tua tia para compensar o disparate que tua mãe fez gerando-te, teu primo, que deve ter um appellido similhante ao teu, teu primo seria--limão. E tu, ó filha do burguez, que não vaes ao theatro, porque teu pae só gostava da _Degolação dos innocentes_, e acha estes dramas modernos _pataratas_, tu, que não és gentil, mas que pezas cincoenta contos de reis, tu, que tens muito que comer em... dinheiro, tu, ó invejavel burgueza!--tu serias melancia. * * * * * Á ACADEMIA DE COIMBRA Se no organismo das nações, como no organismo do homem, é indispensavel um coração que alimente a vida publica, deve o sangue portuguez jogar em systole e diastole, ahi, onde vós estaes, nos paços da Universidade. Coimbra é o coração de Portugal. Para ahi confluem as veias cavas cujo sangue negro da mocidade inculta ahi vae ser purificado no pulmão da eloquencia, e d'ahi é que nasce a aorta que revigora os vasos capillares d'este grande homem collectivo chamado Portugal. E digo _grande_, porque sois vós que fazeis mover as valvulas do coração portuguez, vós, a intelligencia de quatrocentos homens, garantia de existencia futura, vós o futuro mesmo. Ahi aprendeis a deletrear o passado da vossa patria nos traços architectonicos do paço das Alcaçovas, na contemplação dos retratos dos illustres varões que revestem as paredes da sala dos _actos grandes_, e d'alli aprendeis a amar o futuro embalados nas santas aspirações que mutuaes no desenfadado conversar da _via latina_ ou no suave bordejar do vosso Mondego. Sois, vós todos os que passaes por esse grande chrysol, duas vezes portuguezes: portuguezes pelo passado, portuguezes pelo futuro. E para ser nobre, e generoso, e digno, basta haver nascido portuguez. Mas vós quereis mais, deixaes os vossos lares, a vossa familia e a vossa aldeia para vos irdes juramentar no exercito do futuro, cuja cazerna se levanta como reducto venerando a dominar a vossa Coimbra, a praça do militarismo intellectual, onde a intelligencia faz sentinella, e se aprende a manejar armas nos combates incruentos do espirito. Tinheis a serenidade lareira das vossas arvores, e ides procurar a sombra menos consoladora dos claustros do vosso annoso baluarte. Tinheis a aldeia e os seus remanços, e quereis a lucta e os seus alvoroços. Tinheis a familia que é o ocio, e procuraes a patria que é a grande batalha, onde todos combatem. Vós sois os defensores e a causa, os soldados e a bandeira. Defensores, porque ahi estaes retemperando as armas do combate; a causa, porque sois a geração nova, e a geração nova é o _amanhã_, e a patria depende do _amanhã_. Soldados, porque tendes a vossa bandeira; bandeira, porque combateis por vós mesmos. Hoje sois a academia; amanhã sereis a sociedade. Hoje vestis a batina; amanhã cingireis a toga do magistrado, os talares do sacerdote, a opa do tribuno, a banda do militar, os arminhos do ministro. Hoje sois a nau do futuro; amanhã sereis o leme. Hoje ides na tolda cantando ao luar os poemas das vossas navegações amorosas; amanhã estudareis á luz da bitacola os contornos coloridos do atlas. Hoje sois a almenara do acampamento; amanhã sereis o pharol da sociedade. Hoje ouve-vos o Mondego; amanhã ouvir-vos-ha o mundo. D'ahi sahireis apostolos e soldados: apostolos da religião do bello e do bem; soldados das tradições gloriosas da patria. A vossa palavra fecundará o solo portuguez, e vossos filhos recolherão no celleiro nunca exhaurido das memorias gloriosas a colheita que vós lhes preparardes em cinco annos de suado e ininterrompido agricultar nos campos do pensamento. A charrua é o instrumento da fecundação, e vós conduzireis a charrua, que é a mãe da abundancia universal. De vós, que sois o futuro, provirão os destinos do futuro, e assim vos perpetuareis nas idades porvindoiras da patria. Vós sois a madrugada do vosso dia; e se a aurora repontar rosada e loira, o vosso dia será ameno e tranquillo. Se agricultardes a terra, a terra fructificará. É preciso portanto que derrubeis os velhos preconceitos, as antigas usanças da vossa vida academica, nocivas a vós e á patria. O agricultor, que, ao alvorejar da manhã, sae do tugurio, d'enxada ao hombro, primeiro derruba as parietarias que lhe comem o pomar do que desbrava os matagaes que lhe ensombram a sementeira. Sêde como o agricultor, e primeiro extirpae as tradições anachronicas da academia do que as tradições anachronicas da sociedade. A _troça_ é um velho habito da vida escholastica da Universidade. Vós, que vos estaes preparando para defrontar os mais nublosos problemas do futuro, retrocedeis ao passado pelas chacotas truanescas da _troça_. _Troçar_ é ridicularisar. Fundi a estatua da humanidade, não traceis a caricatura do homem. No _caloiro_ ha o embryão que póde ser flôr, a chrysalida que se volverá borboleta. É uma recruta que vem procurar o vosso regimento. Recebei-o, não o amedronteis. Aquella alma não está tão vasia que não tenha uma aspiração. Não é tão cega, que não procure a vossa luz. Não é tão inerte, que não queira lidar comvosco. Dentro dos muros da vossa praça d'armas todos devem de ser soldados; a divisa é una, e uno o exercito; una a bandeira, e uno o triumpho. Hoje sois irmãos; amanhã sereis homens. Hoje viveis na communidade da vossa aspiração; amanhã vos apartareis para os vossos destinos. A vossa Universidade é o tabernaculo onde desde o reinado d'el-rei Diniz se archiva a taboa da lei. Ahi aprendeis vós a respeitar o direito, a observar o dever. A _troça_ é uma offensa ao direito primittivo; por tanto, vós, almas generosas e nobilissimas, extinguireis a velha tradição academica. Conheceis, melhor que eu, o artigo 2383 do _Codigo_. Breve sereis chamados a pedir nos tribunaes justa punição á violação dos direitos adquiridos. Breve tereis de sahir a propugnar pelos interesses materiaes externos dos vossos clientes. Começae pois por defender os direitos primitivos de vós mesmos; por impôr respeito á personalidade physica e moral da vossa numerosa familia universitaria. A _troça_ abriu recentemente, no seio da academia, a sepultura de Antonio de Barros Coelho de Campos. Não caveis sepulturas entre vós. A morte é a saudade, e vós sois a esperança. A morte é o occaso e vós sois a aurora. A morte é o passado e vós sois o porvir. A morte é a quietação e o silencio; vós sois o movimento e a vida. Sobre o vosso arraial não deve pairar a morte, porque as vossas lides são incruentas. A ampulheta, que regula a vossa vida, deve medir o tempo; não deve descançar na eternidade. Uma sepultura é uma coisa inutil entre vós. Amaes os salgueiraes do Mondego, porque n'elles remurmura o ecco dos vossos cantares. Amaes a onda limpida do vosso Pactolo, porque ella deslisa sobre a areia doirada do álveo. A sepultura é muda a todas as interrogações. O unico movimento que a sepultura permitte é o ondular das hervagens que a cobrem. Onde havia uma intelligencia e um coração, ha agora um comoro e uma cruz. A morte não admitte exforços: é o irreparavel. Luctar com a morte é esgrimir com o silencio e com o pó. A vossa rasão é lucidissima, para que queiraes luctar com o impossivel; o vosso animo valorosissimo para que tenteis bater-vos com phantasmas. Vós deveis estar n'um polo, e a morte no outro. Que a cinza esteja no cemiterio, e o fogo na Universidade. Que o chorão abrigue a urna, e o loureiro ensombre o livro. Que descance o _nada_, e que o germen elabore. Tudo é festa em derredor de vós, e a saudade é inimiga da festa. O lucto é triste: reservae-o para a velhice. E todavia vós estaes de lucto. Ha um cadaver e não houve assassinio. Ha victima e não houve algoz. Houve apenas uma grande fatalidade. Correu sangue, e não raivou odio. Eram tudo irmãos, e morreu Abel sem haver Caim. A logica dos acontecimentos é terrivel. Foi ella, e só ella, que comprimiu a academia nos rostros d'este dilemma: Carcere e Sepultura. Foi ella, e só ella, que abriu o carcere, a sepultura da vida, e lhe atirou para dentro um corpo vigoroso e uma alma innocente; que descerrou a sepultura, o carcere da eternidade e deixou cahir no fosso um corpo inanimado, viuvo d'uma alma sonhadora. D'um lado o cemiterio; do outro a prisão. Ambos frios, calados, tenebrosos, vastos, medonhos. N'um o repouso dos vivos, n'outro o repouso dos mortos: em nenhum a liberdade. E, sepultos na frialdade, no silencio e nas trevas,--dois corpos. Sob a abobada um corpo que desejara a morte; sob a terra um corpo que tinha direito á vida. Quem os matou a ambos? Foi a _troça_. A troça é homicida. Dispensae a intervenção da policia academica. Onde ha intelligencia, é a intelligencia que _governa_. Pouco importa abolir de direito a _troça_; vós a abolireis de facto. Fazei dos vossos peitos muralha para oppôr á logica terrivel dos acontecimentos. A vossa poderosa vontade esmigalhará para sempre o fatal dilemma; não é preciso intervir a alabarda do archeiro. Eu quizera vêr abolida a _troça_ não pela Universidade mas pela Academia. E assim ha-de ser. Sabereis vingar com a vossa provada grandeza o irmão que está no carcere e o irmão que está na sepultura. A abolição da _troça_ ficará para sempre vinculada á memoria por igual pungente e sublime da catastrophe de 3 de maio. Triste, porque foi uma dupla desgraça. Sublime, porque se as lagrimas da academia inteira nobilitaram a memoria do morto, o perdão do pae inconsolavel, antecipando-se á decisão piedosa da justiça, nobilitou a desgraça do vivo. Quando o coração de pae não achou culpa, Themis não achará peso na balança. O coração de pae, ferido por tão excruciante dôr, é o verdadeiro ideal da justiça. E a justiça do pae perdoou. A justiça do tribunal perdoará tambem, esperemol-o. Porque, vós o sabeis melhor que eu, a justiça é para a sociedade o que o pae é para a familia: o poder supremo. A vara, que representa a auctoridade, é cajado e látego: o mesmo na familia que na sociedade. E sendo esta dupla auctoridade uma personalidade moral, que póde symbolisar-se em Jano, o deus bifronte, não esperemos vêr umas faces illuminadas pela luz evangelica do perdão e outras avincadas pelas rugas sinistras da severidade. E esta grandissima catastrophe ficará para sempre archivada na tradição de Coimbra, com justos applausos da historia, porque ella porá a descoberto a grandeza de muitas almas: da victima que morreu sem odio; do encarcerado que chora o arrependimento de culpa que não teve: do pae que perdoou; e de vós todos, que não consentireis mais que dentre vós saiam desgraçados para o carcere e cadaveres para o cemiterio. * * * * * OS ANNUNCIOS O annuncio é o seculo. Saber annunciar é saber viver. Quem melhor annuncia mais ganha. Dize-me se sabes annunciar, dir-te-hei quem tu és. Ha por ahi algumas raras pessoas a quem repugna a vaidade de se dizer no annuncio o que se não devia dizer, e mais do que se devia dizer. São os retrogrados, os que ficaram parados no caes quando o progresso partiu a explorar mundos desconhecidos, os pagãos da antiguidade que só conheciam como meio de publicidade a trombeta da fama, são finalmente os que vivem no seculo e não comprehendem o seculo. Suspiram ainda pelas epistolas do _Braz Tizana_, acendem a véla com lumes de pau, e preferem o mysterio do logogripho ao pregão do annuncio. Detestam todas as modernas manifestações do pensamento--o annuncio, a _reclame_, a abundancia de jornaes e a alluvião de lumes promptos de phosphoro. De lumes promptos de phosphoro! Sim, senhores. Lá disse Moleschott que sem phosphoro não ha pensamento; Couerbe que a ausencia de phosphoro no encephalo, reduz o homem ao estado de bruto, e Paulo Janet que o phosphoro se tornou o grande agente da intelligencia, o estimulante universal, a propria alma. O annuncio progrediu com o jornal, como o lume-prompto progrediu com o phosphoro. Jornal e phosphoro são irmãos: o jornal é a ideia; o phosphoro é a luz. As tribus selvagens, que não conhecem o phosphoro, desconhecem o jornal. Á descoberta da imprensa andam ligados dois nomes: Guttemberg e Fust; á descoberta do phosphoro outros dois: Brandt e Kunckel. Estes quatro homens, irmãos pelo genio, descobriram a luz que a todos nos alumia e aquece. Uma caixa de phosphoros é um pequeno jornal illustrado: as caixas do snr. Melchior Sola fazem circular os retratos de Bismark, de Castelar e D. Amadeu; os phosphoros inglezes, conhecidos pela designação de _flamns_, espalham os retratos de Gladstone, do marquez de Lorne e do doutor Livingstone. Os mesmos vendilhões que pregoam de manhã os jornaes populares vendem de tarde caixas de phosphoros. O annuncio desenvolveu-se com o jornal, e o lume-prompto completou-se pelo phosphoro. O annuncio começou por ser laconico, serio, conciso. Tinha a principio uma pollegada de capacidade. Depois dilatou-se e desenvolveu-se. Hoje o annuncio póde ter um palmo de largura e é-lhe permittido alargar-se até occupar uma pagina inteira do jornal. Traz vinhetas, medalhas, tarjas, e muitas vezes--versos. O antigo lume-prompto era uma esquirola de pau com as extremidades empapadas em enxofre derretido. Para inflammal-o urgia pôl-o em contacto com um corpo já em ignição. O annuncio teve um periodo similhante, quando precisava de que o espalhassem; hoje espalha-se elle per si mesmo. Vieram depois os lumes-promptos chamados _chimicos_ que appareceram em 1809. Para acendel-os era preciso mergulhal-os em acido sulfurico. Havia tanta demora em annunciar como em fazer luz. Em 1832 foram substituidos os lumes oxygenados pelos lumes de fricção. Só um anno mais tarde se completou o lume prompto juntando-se-lhe o phosphoro. Começou então o pensamento a invadir o mundo; o annuncio a espalhar as invenções modernas; o phosphoro a derramar a luz e a divulgar os retratos dos grandes homens; o jornal a contar dia a dia os passos e as proezas dos homens cujo retrato nos havia custado dez réis. Por toda a parte nos persegue o annuncio, o phosphoro e o jornal. Em Madrid, no Prado, andam enxames de rapazes, á hora do passeio, a espalhar tudo isso: atiram os annuncios para dentro das carruagens, mettem-os no bolso do _paletot_ de quem vae andando, e em vez de gritarem como antigamente--_La candêla, señoritas_, esbofam-se a apregoar--_Cirillos, señoritas._ É a febre da publicidade. Está a gente no theatro a assistir a um espectaculo; de repente sente um papel nas mãos: é já o annuncio d'outro espectaculo. Vae a gente pela rua e parece cahir das nuvens sobre o chapéo o annuncio d'um perfumista, d'um luveiro ou de um domador de féras. Annuncios de todas as côres, de todos os feitios, de todas as fórmas geometricas. Deixem negar Paulo Janet que o pensamento seja um movimento. Que elle pergunte se já se viu um pensamento em spiral, um pensamento circular ou um pensamento rectilineo. A nós compete respondermos que já temos visto pensamentos circulares nas etiquetas das garrafas, e que a quarta pagina do nosso jornal nos traz todos os dias pensamentos rectos, pensamentos curvos, e pensamentos quebrados. O annuncio espalha a litteratura, a gravura e a geometria. O annuncio é uma philosophia, e a synthese do annuncio está no _Almanach da Agencia Primitiva_. Do alto d'aquelle livro vê-se o mundo todo. O snr. Braun Peixoto é o Atlante dos tempos modernos. Sustenta sobre os hombros a machina gigantesca dos homens e das coisas. Eu acho tão indispensavel o snr. Braun Peixoto como mr. Du Barry; tão indispensavel o annuncio como a Revalescière. Ella restitue a saude do corpo, elle restitue a saude do espirito. Ou illustra ou diverte. Uma pessoa está triste, e não se póde alegrar com _champagne_, porque tem mau estomago. Procura no jornal um annuncio tolo, e consegue rir-se. Ahi vão trez _specimens_ d'annuncios, que fazem cocegas: RUA TAL, NUMERO TANTOS _Continua a ir pentear senhoras, assim como pentea caracoes._ * * * * * _Vende-se um piano de manivella por pouco dinheiro. O motivo da venda é o proprietario não entender da materia._ PROGRAMMA _1.º Symphonia._ _2.º Jogos Icarios por mr. Bergonsini e sua familia._ _3.º Variados trabalhos por outros cães intelligentes._ * * * * * VENDE-SE _Uma cabra e um violão, e algumas missas n'esta redacção._ Este annuncio mereceu as honras de segunda edição, e sahiu de novo com as seguintes correcções e emendas: ATTENÇÃO _Diz-se n'esta redacção quem vende uma cabra, algumas missas, e um violão._ Ou finalmente este: _Quem nas immediações de Lamego perdesse um albardão pela romagem dos Remedios de 1867, etc., etc._ Annuncios ha, porém, que se impõem pela extensão, pela gravidade, pela elegancia, e até pela pureza do dizer, acrescendo a tudo isto, que já não é pouco, serem verdadeiros. Haja vista o annuncio da frasqueira dos snrs. Castro & Leão, publicado n'este jornal e em outros. Por traz d'aquelle annuncio enxergam-se dois rapazes elegantes, que principiam a negociar em vinhos tambem elegantemente, e que para redigirem o annuncio calçaram luvas do Sertori. Escrevem para o publico como escreveriam para um amigo, por exemplo: «Não se especialisam mais vinhos como branco do Porto, Carcavellos, Chably, Mansanilha, Madeira e muitos outros para não tornar a lista mais longa, e por isso talvez fastidiosa.» Isto é delicado. Annunciantes ha que fatigam o publico, porque entendem que o publico só afflue quando se vê impertinentemente rodeado d'annuncios e _reclames_. Tudo quanto se diz alli, é verdade. Vae a gente em bacchica peregrinação á frasqueira da rua do Rosario e encontra abundancia, riqueza, bom gosto e, digamol-o, bom tom. Plantas, crystaes, candelabros e porcelanas. O _Baron Latour_ sorri amavelmente; o _Chateau d'Yquem_ cumprimenta; o _Sparkling_ atira-nos um beijo d'espuma iriada e, ó tentação, venha a taça, Evohé! e em derredor o _Bourgogne_, o _Hochheimer_, o _Forestier_, o _Venoge_ e o _Medoc_ começam a bailar nas prateleiras e a entoar ruidosamente um dythirambo. Quem nos levou lá? Foi o annuncio. O annuncio falla, o annuncio chama, o annuncio fascina. Rasões tinha o meu querido Julio Machado para dizer: «Annunciae, annunciae! Sempre d'ahi se tira alguma coisa!» Annunciar é armar o barco para sahir á pescaria. Convém que seja bonito o batel, e que vá alegre o pescador, cantando uma barcarola, para que o fundo do mar o oiça e de terra o vejam. Eu conheço annunciantes tristes, que fazem annuncios tristes, com dizeres tristes, e que muitas vezes vendem objectos tristes. O resultado é que as pessoas de temperamento nervoso, e hoje é o predominante, não lêem segunda vez o annuncio, nem vão á loja, nem compram os objectos. E o annunciante, se annuncia tristemente, tristemente vive e tristemente morre. Um homem póde vender sapatos de defunto com tanto que se saiba annunciar. Se elle disser: «Fulano tem grande sortimento de sapatos de defunto para cadaveres de todas as idades» diz mal, e a gente não lhe quer passar pela porta com receio de que lhe cheire a cemiterio. Mas caso annuncie: «Quem esperar que eu lhe dê o que costumo vender, toda a vida andará descalço» diz bem, é mysterioso, tem novidade, e faz espirito com a coisa mais triste d'este mundo, perdão, com as duas coisas mais tristes, porque o annunciante não venderá um sapato só. Quando se não poder ser elegante no annuncio, seja-se ao menos mysterioso. E fazer como aquelle cavalheiro d'industria que chegou a uma feira, armou barraca, e pregou á porta este distico: Quem quizer vêr a ardina, Deite dez reis e corra a cortina. _Ardina_ é um provincianismo; tanto vale como ardil. Deitavam-se os dez reis á caixa, corria-se a cortina, e que se via? Um burro velho preso á mangedoura pela cauda. Era o ardil. Ninguem se queixava do annunciante porque elle tinha prevenido no annuncio. E depois ninguem queria dizer o que tinha visto para não confessar que fôra enganado. Ia toda a gente vêr a _ardina_; sahia a rir, e não dizia nada. Quando acabou a feira, o cavalheiro d'industria tinha os seus vintens. E a quem os deveu? A elle proprio, que soube ser mysterioso. Supponhamos que o snr. Costa Braga, fundador da chapelaria a vapor, fornecedor da casa imperial do Brazil e da casa real de Portugal, precisava de annunciar os seus excellentes chapéos. Se dissesse simplesmente que vendia chapéos finos, lustruosos como setim, ninguem recordaria que o snr. Costa Braga gastara cem contos de reis para montar a sua fabrica. Se, porém, annunciasse: «Delicadas estufas de feltro para os pensamentos, redomas de sêda e cartão para perseverar das intemperies as mais mimosas ideias» o snr. Costa Braga teria de fechar as suas portas por não ter tempo de vender a todos os compradores chapéos altos e chapéos baixos, artisticamente annunciados. * * * * * INDUSTRIA DAS RUAS Industria das ruas é a arqueta do belfurinheiro, o urso que maneja um pau, o macaco que toca pratos, o garrano que conta as horas, a harpa, o realejo, a gaita de foles, o sabonete que tira as nodoas, o cosmorama, a loteria, o arranca-dentes, o arlequim, o compõe-louça, o _pick-pocket_, e mais ainda. Todos os homens são como os passaros: teem seu ninho. Voar voam ás vezes, e para longe, mas é no seu ninho que descançam, é no seu ninho que dormem. Os negociantes da rua, que constituem para assim dizer uma humanidade á parte, são como as borboletas; voar, sempre voar! E assim como os naturalistas atravessam com um alfinete o corpo das borboletas para as fixarem n'um cartão, usam alguns escriptores fazer da penna alfinete para apresentarem á humanidade das salas, em livros e jornaes, a humanidade das ruas. Em França os typos populares teem tido por photographos habilissimos talentos. Bastará citar dois ou tres livros, porque são numerosos os que tractam do assumpto. Eu conheço o _Ce qu'on voit dans les rues de Paris_ e _Les espectacles populaires et les artistes des rues_ por Victor Fournel; _Enigmes des rues de Paris_ por Eduardo Fournier e _Célébrités de la rue_ de Charles Yriarte. Em Portugal apenas um ou outro escriptor se tem occupado em artigos de jornal--lembro-me agora do snr. Alexandre Herculano e de Julio Cesar Machado--dos typos populares. E todavia esse immenso mundo das ruas tem, como todos os mundos, seus mysterios, suas lagrimas, seus sorrisos, seus romances,--o que lhe dava direito a ter tambem a sua litteratura. Estude-o porém quem se julgar com forças para o fazer; eu limitar-me-hei hoje a pregar n'este cartão volante duas ou tres borboletas, das que se andam espanejando nas ruas, á luz do sol de Deus, e que podem constituir, quando muito, outras tantas paginas da epopêa do povo. O leitor perfeitamente conhece os meus typos, de os vêr todos os dias, de manhã, em frente da igreja dos Congregados,--um com o seu cosmorama, o outro com os seus canarios. O do cosmorama estava fazendo fortuna, mórmente em dias de feira, mas vae senão quando apparece-lhe um rival temivel na feira de S. Lazaro, com um cosmorama muito mais variado, porque tem vistas sacras e profanas, e com o que é mais, com um voseirão capaz de suffocar a voz de todos os expositores de cosmoramas. Occupemo-nos em primeiro logar do _parvenu_ da feira de S. Lazaro, e do seu cosmorama mixto. Typo de cigano, olhar e linhas de invencivel velhacaria;--jaqueta, chapéo de lavrador e calças d'almocreve. A mulher, um pouco gibosa, e zombeteira como todos os gibosos, está sentada, emquanto o homem falla, n'uma das travessas do X de pau, que sustenta o cosmorama,--sempre a rir um risinho... Eu não pude averiguar se ella se ri da velhacaria do homem, se da credulidade dos espectadores. O certo é que ri sempre. O homem ronca de pé, com a precipitação d'um jorro d'agua, dando ao pescoço o geito d'um cysne que levanta a cabeça. Começa a funcção, e a mulher a rir, alapada entre o cosmorama e o chão, como um satyro feminino n'uma gruta... Começa o espectaculo e o discurso: «Vamos, senhores, cheguem-se para vêr as grandes guerras da França e Prussia. Isto é baratinho, custa apenas 10 reis, ainda temos dois vidros. (_Para um espectador_: Dê cá 10 reis.) «Passamos a vêr a primeira vista. Ahi tendes, senhores, a grande cidade do Rio de Janeiro, aquella grandiosissima cidade com a sua barra por onde entram e saem embarcações e grandes naus: olhae, senhores, para o vosso lado direito, e vereis o grande palacio do imperador de quatro andares. Olhae ao centro e vereis a grande ilha das Cobras; á esquerda lá se avista a grande torre da Candelaria onde o imperador vae á missa. (O orador enxota com a vergasta um gatuno que tenta espreitar por cima do hombro d'um espectador.) «Passamos agora, senhores, a vêr o grande exercito prussiano a bater o exercito francez: olhae ao centro que lá vereis já 12:000 francezes prisioneiros; á esquerda lá se vêem sahir os prussianos debaixo d'umas arvores. Pela direita... (Um espectador, desorientado, volta subitamente os olhos para a esquerda, e, reconsiderando, vira logo o pescoço para a direita. O orador:) «Pela direita lá chegam os carros dos feridos francezes; mais adiante lá se vê Napoleão III na batalha de Sedan com o seu braço esquerdo no cachaço do cavallo, dando o seu braço direito á Prussia. «Lá vem Bismark a toda a brida; lá rebentam as metralhadoras, lá se vê ao centro a grande explosão de polvora. «Passamos a vêr agora Paris. Olhae, senhores, á vossa esquerda e lá se verão as balas ardentes a sahir das boccas dos canhões; mais ao centro lá se vê o balão a fugir para fóra dos muros da cidade. Triste desgraça é esta, senhores! «Agora vae apparecer o inferno. Lá estão as alminhas penando, lá está uma a levantar a cabeça, e o diabo a mergulhar-lhe a cabeça na lavareda. «Vereis agora, senhores, o purgatorio: o lugar onde estão as almas antes de subir para o céo. Lá está o padre santo e seus companheiros, e todos os bispos e alcebispos. «Passamos agora, senhores, a vêr a ultima vista, que é o inferno, onde os maus são castigados pelos crimes que fizeram cá n'este mundo.» A velhacaria d'este homem attrae, mais talvez que o seu voseirão. Faz dinheiro, junta muita gente, mas ainda assim o seu rival dos Congregados, que tambem foi á feira, tem suas sympathias e sua clientella certa. Representa os seus quarenta annos; traz calças antigas, casaco velho e _bonnet_ decrepito; chama-se Joaquim de Almeida, e é natural de Villa Nova de Gaya. Anda emparceirado com o homem dos canarios, que veste pelo mesmo theor, e que poderia ter a mesma cara, se não fosse trazer a barba crescida. Chama-se José Maria Alves, e é natural de Valença. O cosmorama está sempre collocado a par da gaiola, se bem que os espectaculos poucas vezes sejam simultaneos, porque o homem dos canarios toma a peito fazer a policia do recinto emquanto o cosmorama funcciona. Joaquim de Almeida falla em cima de uma cadeira. Estão as lentes todas occupadas: é uma enchente. Principia a explicação: «Vamos a vêr, senhores, a paixão e morte de N. S. Jesus Christo. «A primeira estação representa Jesus preso deante de Pilatos para ser sentenciado á morte. Pilatos, não encontrando crime nem delicto em Jesus, mandou que sentenciasse Caifaz, e elle lavava as mãos do bem e do mal. Como Jesus caminha de casa de Pilatos para casa de Caifaz. A sentença que le deu Caifaz é que Jesus caminhasse com toda a brevidade ao monte Calvario com a cruz ás costas para n'ella ser crucificado. E a primeira cahida que deu Jesus. Jesus caminhando para o monte Calvario eram tantos os golpes que le davam os judeus, que Jesus cahiu rendido por terra com o peso da Cruz. Agora vamos a vêr o encontro que teve Jesus com sua mãe Maria Santissima pelas ruas da amargura. Sahiu Sua Mãe Maria Santissima ao encontro para se despedir de seu amado filho, mais Jesus não se podendo despedir de Sua Divina Mãe le disse: «Mãe, não choreis, pois por minha morte vos glorificarei». Ahi se vê como fica a Virgem triste chorando atraz de seu amado filho. Jesus caminha arrastado pelos algozes sem se poder despedir de Sua Divina Mãe. Agora vamos a vêr como Jesus foi ajudado do Cyreneu. Jesus caminhando para o monte Calvario, sem forças e sem alentos, pediu a Simão Cyreneu que le ajudasse a levar a cruz ao monte Calvario. Tambem se vê ao lado direito como está Simão Cyreneu ajudando a levantar a cruz ao Senhor, e ao lado esquerdo se vê como caminha o menino Isaac com a cesta dos pregos e com a escada deante de Jesus, mostrando o caminho do monte Calvario aonde Jesus ia a padecer e a ser crucificado. Agora o santo sudario. Jesus caminhando para o monte Calvario em agonias e suor de morte sahiu Santa Varonica ao encontro. Ao lado direito lá se vê como está a Santa Varonica com o lenço branco estendido e o santo sudario do Senhor escripto.» Este discurso é expectorado com verdadeira rapidez de manivella, erguendo o orador o rosto para os espaços, e interrompendo-se, a cada vista nova, o tempo preciso para acompanhar com os olhos o movimento que a mão tem de executar para a mutação de scena, operação que se resume em puxar por um cordão. «Agora a segunda cahida que deu Jesus caminhando para o monte Calvario. Eram tantos os golpes que le davam os judeus, que cahiu Jesus segunda vez por terra com o peso da cruz dizendo: «Os maus cargam meus hombros e meu corpo cae rendido de afflicções.» Jesus caminhando para o monte Calvario com o peso da cruz, sahiram as filhas de Jerusalem ao encontro com palmas e ramos para recebel-o, mas Jesus olhando para ellas le disse: «Filhas, não choreis sobre a minha morte; chorae sobre vós mesmas e sobre vossos filhos.» Agora é a terceira e ultima cahida. Jesus caminhando para o monte Calvario, eram tantos os golpes e a pressa que le davam os judeus, que Jesus cahiu desfallecido a terceira e ultima vez por terra. Caifaz vendo que Jesus não tinha forças nem alentos, se apresenta a cavallo dirigindo á guarda que apromptamente apressasse com Jesus para vir a ser crucificado.» Nós paramos aqui;--o orador não pára, vae repetindo o seu discurso até á ultima scena. Annunciado o fim, os espectadores debandam, ordinariamente calados, rompendo a multidão com a sobranceria de quem acaba de vêr o que a muitas é defeso. O homem dos canarios tem quatro, que se chamam: _Isabel_, _Dolores_, _Branca Flor_ e _Garibaldi_. Tres femeas e um macho, o que equivale a dizer que tem menos musica do que podia ter se fossem tres machos e uma femea. Como se sabe, por excepção aos costumes do sexo feminino, as femeas dos canarios cantam menos que o macho. Foi por isso que já um poeta francez extranhou á natureza o _... priver les meres des serins Du caquet si commum aux femmes des humains!_ Todavia elle não quer que lhe dêem musica,--quer que lhe dêem pão. Ha cinco annos que os possue. Não lhes dará commodidades, porque trabalham todo o dia, não lhes dará mesmo limpeza, porque, ou velhice ou falta d'esmero, a plumagem não está setinosa, mas com a sua ração d'agua e painço não lhes falta. Ainda assim, apesar do seu fadario, são alegres, teem nos olhos a vivacidade que os caracterisa e a delicadeza e graça de fórmas propria dos canarios, admiravelmente intelligentes. Chega uma pessoa que quer tirar sorte. Aproximada da gaiola a caixa dos bilhetinhos coloridos, o homem dos canarios abre a porta d'arame, e chama por um: --Vem cá, _Isabel_! O canario dá duas voltas na gaiola antes de sahir. --Tira uma sorte a este cavalheiro. O canario tira com o bico um papelinho. --Dá-lhe quatro voltas. O canario obedece. Esta operação é para que o vaticinio leve toda a virtude. Ás vezes, como se o papelinho, permittam-me a expressão, não estivesse ainda bem impregnado de futuro, diz o homem: --_Izabel_, dá-lhe mais duas voltas. Uma por este cavalheiro... O canario executa. --Outra pela sua familia. Obedece ainda. Então é que o homem entrega o papelinho, e que a gente vae saber o seu destino por um vaticinio como este, influenciado pelo signo de _piscis_, que no papel apparece mudado em _pricis_: «_Estás tranquillo por o temor de não sahirem bem de tuas emprezas._ Tranquillisa-te; os teus desejos se cumprirão dentro em pouco tempo, terás muito breve noticias que te darão alegria. A educação de teus filhos será a tua mais doce occupação. Alguns annos depois do teu casamento, encontrarás um thesouro e comprarás muitos terrenos, tens de fazer favores e a paga é a má recompensa; a ideia de cumprires tem de privar-te d'alguns prazeres; terás uma herança que te proporcionará um bem estar.» Depois affastam-se as pessoas que tiraram a sorte, algumas rindo do disparate, outras pensando--as mais sonhadoras--que hão de achar algum dia um thesouro, ainda que não seja senão o _Thesouro de... meninos_. * * * * * A GIGANTA (CARTA A JULIO CESAR MACHADO) MEU JULIO: D'esta vez o assumpto é... grande. E, quem como o Julio sabe o que é ter de dar um folhetim em determinado dia, comprehende que é muito mais raro encontrar um assumpto grande do que uma mulher grande. D'esta vez apparecem simultaneamente os dois phenomenos,--uma mulher que é um assumpto, e um assumpto que é uma mulher, ambos grandes. Ora este folhetim é nada mais e nada menos que a _Giganta_;--ella é a que ha-de encher estas seis columnas, talvez com os bicos dos pés ainda de fóra por não caber perfeitamente n'ellas. Esta notavel mademoiselle Rose tem passado de paiz em paiz, e de folhetim em folhetim. O Julio escreveu d'ella o brilhante folhetim que n'este jornal reproduzi quarta-feira; hoje escrevo eu, não com pretenções a desbancar o Julio, mas a desbancar a _Giganta_. Eu lhe explico. Sendo certo que nós todos devemos professar o mais profundo respeito pela tradição biblica, e ensinando ella que o pequeno David recebera o collossal Gollias com uma simples funda, eu quero tambem, segundo a santa lição, receber ao estylo apocalyptico esta illustre representante da familia gigantea: atirando-lhe com um folhetim. Fui vel-a. Era á noite, á hora dos namorados, como o Julio disse. Desde que entrei a porta senti chilriar em francez, e eu mesmo, antes de procurar o dinheiro na algibeira, procurei no meu espirito recordações da grammatica do Albano e do diccionario do Fonseca. Comecei por ser francez, dando um franco pela entrada. Ainda quiz vêr se, como geralmente succede no commercio, me fariam o franco a 180. N'essa noite porém a sala estava cheia, sentia-se dentro a alegria franceza á mistura com umas ligeiras modulações no piano, e o cambio estava alto. Resignei-me a dar pela entrada o que até agora se dava por uma edição de Michel Levy. Em todo o caso sempre era um livro que eu ia lêr. Antes de correr a cortina vermelha, a tradicional cortina vermelha que empana todas as celebridades, disse para dentro, com voz que sobrelevou o murmurio, a _madame_ que recebia as entradas: --_Il y a du monde._ Esta phrase, que visivelmente se referia a mim, fez-me estremecer d'orgulho. Está a gente, n'estas agrestes lides da imprensa, tão costumada a vêr-se depreciada em jornaes e opusculos, que já teria por grande elogio chamarem-lhe microcosmo. Vae a _madame_ da porta e chama-me _mundo_, como quem diz: Entra o snr. Cosmos. Estava eu quasi a deixar cahir a cortina, para deitar uma falla á _madame_ encarecendo-lhe a grandiosidade da sua lingua patria, quando me lembrei, por intervenção do José da Fonseca, que ella simplesmente quizera avisar para dentro de que entrava gente. Era tarde para retroceder,--entrei. Ao fundo da sala, erguidas sobre estrado, e ambas sentadas, deslumbraram-me duas mulheres. Ao nivel do estrado ondulavam as cabeças dos admiradores. O fumo dos charutos, que caprichosamente se derramava no ar, fez-me lembrar a vaporação d'uma pyra. Insensivelmente tirei o chapéo. Das mulheres, a mais alta, mandou-me cobrir em francez. Eu cobri-me em portuguez. A mais gorda mandou-me sentar, e, a esse tempo, já eu estava tão enleiado, que não sei bem se me mandou sentar em francez, se em portuguez. Eu sentei-me universalmente,--como todos. Sempre lhe quero dizer, meu querido Julio, a razão do meu enleio. O Julio fallava apenas da _Giganta_, e eu fui encontrar, na saleta da rua de Santo Antonio, duas mulheres: a _Giganta_ e a _outra_. Foi uma agradavel surpreza o poder lêr dois livros pelo preço d'um só. Achei então que o Michel Levy estava sendo caro, vendendo o volume a duzentos e cincoenta. Esta litteratura viva, muito mais agradavel á vista, pareceu-me economica. Depois d'estas ponderações entrei de examinar as mulheres. Ergui o meu olhar á altura de dois metros e quinze centimetros, e encontrei a cabeça da _Giganta_--mademoiselle Rose. Depois desci com a vista até encontrar as quatorze arrobas da outra,--mademoiselle Claire. Estive hesitando entre as arrobas e os metros, e decidi-me pelo systema decimal. Eu só acredito que uma mulher é franceza, sendo alegre. Ora mademoiselle Rose estava cantarolando com _coquetterie_ o _Orpheu nos infernos_; e mademoiselle Claire desfolhava tristemente uma flôr. Esta circumstancia levou-me a perguntar-lhe se era franceza. Respondeu-me mademoiselle Rose que era sua irmã, e do mais que me disse deprehendi que eram ambas francezas, que tinham quinze irmãos, o mais novo dos quaes estava sentado ao piano. Pedi logo para vêr os outros quatorze. Mademoiselle Rose sorriu do meu equivoco, e respondeu-me que eu teria de navegar o Atlantico para os ir vêr a França. Consultando o programma, que me deram á entrada, e o folhetim do Julio, vi que era verdade ser mademoiselle Rose uma mulher d'espirito. Depois, como mademoiselle Claire se zangasse com um admirador que lhe estava bulindo no pé, vi que o programma era tambem verdadeiro na parte que lhe dizia respeito: _tem bellas maneiras e todas as qualidades proprias do bello sexo_. N'isto erguem-se ambas ao mesmo tempo, e annunciam explicação. Os espectadores da geral arregalaram os olhos. Mademoiselle Rose tomou a mão para fallar, e um espectador da superior atalhou do lado: --_Parlez en français._ Ella sorriu, e disse em francez: «Mrs. e M.mes, nous sommes françaises, nées à Paris; ma soeur (Claire) est agée de dixhuit ans et moi (Rose) de vingt ans. «S'il y a parmi l'honorable societé une persone qui desire connaitre la différence de taille, elle peut s'approcher. Vous pouvez voir que nous avons la main et le pied petits por être ma soeur aussi grosse, moi aussi grande, et le molet proportionné.» (Reproduzo fielmente o francez... d'ellas.) Mademoiselle Claire limitou-se a mostrar a mão, o pé e a perna, porque, realmente, aquella linguagem plastica era eloquente de sobra. Não obstante, eu continuei a optar pelo systema decimal. Como porem o publico da geral désse mostras de não ter entendido nada, tornaram a levantar-se e a fazer uma explicação em portuguez. Quando mademoiselle Rose chegou ao ponto de dizer: _e a barrica da perna regular_, eu tive tentações de observar: --_C'est vrai: barrica._ Calei-me, porque ella estava fallando. N'este comenos um lavrador da geral começou a rir e a apontar para a _Giganta_, que lhe perguntou o que elle queria. O lavrador, com o mesmo sorriso alvar, tartamudeou: --É que eu queria perguntar se o paisinho da menina era do mesmo tamanho. --Muito grande! muito grande! respondeu a _Giganta_ abrindo as mãos e sorrindo em francez para os que entendiam aquella lingua. A mulher do lavrador benzeu-se, e disse para o homem: --Olha que ainda é maior do que o castanheiro de Quintães! Começou então a sahir o publico da geral, e a _madame_ da porta, que é cunhada da _Giganta_, a dizer de cada vez: --_Il y a du monde._ D'uma vez olhei, e vi entrar um anão. Que _mundo_ tão pequeno! Reconheci que não me devera ter orgulhado da phrase, e entrei de admirar a coragem do anão que, voluntariamente, se expunha a ser vencido por uma mulher. E eu, interposto áquellas antitheses, lembrei-me de que a humanidade era a rethorica da creação, e de que da variedade das _figuras_ procedia o que no poema da vida ha de recreativo. Em todo o caso achei muito melhor ser gigante, porque sempre se vae vivendo á custa dos... pequenos. E depois, aquelle estrado em fórma de solio dava a ideia de realeza. Realeza d'estatura, é certo;--com prós e contras, como todas. Ella alli está, pensei eu, admirada, festejada, galanteada, recebendo flores e rebuçados, tão feliz, tão feliz, que tem sempre vinte annos! Mas tambem, horror! nascer uma mulher gentil, elegante, _coquette_, e viver sentada, entre os seus pannos vermelhos, sem poder espanejar-se ao sol no verão, sem poder molhar os pés no inverno! Molhar os pés, digo eu, porque isso mesmo, que é para nós um desastre, seria para mademoiselle Rose uma deliciosa surpreza! Tem corrido a Europa sentada, e dizem-me que tenciona ir agora sentar-se á America. O mundo é para ella uma cadeira. Se algum dia quizer fazer exercicio, a conselho dos medicos, e subir ao pico do Himalaya, para admirar o mundo, ella, que tem sido admirada pelo mundo, e vir ao sopé da montanha uma tribu do Indostão ou uns pastorsitos de Thibet, dirá logo voltando-se para o irmão: --_La chaise, mon frére, il y a du monde._ As mulheres vão ao theatro, passeiam, dançam, e ella, tendo talento, como realmente tem, vive sentada, a repetir sempre a mesma coisa, victima da sua propria realeza! Como não póde passear ella mesma, vae passeando em photographia, e espalhando o seu retrato. Um dia bem póde ser que se sinta incommodada a ponto de ter inveja da sua photographia, que tenha um ataque nervoso por querer sahir, e que o medico declare que precisa d'andar durante vinte e quatro horas. N'esse dia estará perdida na terra onde estiver, porque todos a verão de graça, que é justamente a maneira porque ella não quer ser vista. A sua cadeira perderá todo o prestigio, e desde então a cadeira da _Giganta_ ficará valendo tão pouco como a _Giganta_. Uma e outra perderão todo o mysterio. Mysterio, digo eu, porque seguramente a _Giganta_ o tem. Quando é que ella chegou? Quem a viu descer das Devezas, atravessar a ponte, passar na rua de S. João, das Flores, subir finalmente a rua de Santo Antonio? Como é que ella entrou por aquella porta tão pequena,--tão pequena, que muita gente cuido eu que dará de vontade os dois tostões, não tanto para vêr a _Giganta_, como para averiguar o modo porque ella entraria? Quando partirá? Quem a verá? Não se sabe. Ella tambem pouco sabe do mundo, a não ser que no mundo ha dois tostões, e que o mundo gosta das photographias, e dos originaes tambem. Recebe dinheiro e nunca viu um Banco. Recebe flores, e nunca viu os jardins. Não obstante, a realeza de estatura tem suas vantagens para uma mulher. Quanto o marido lastima, se é casado, ter de vestil-a, folga ella com a certeza de não poder queimar as suas tranças. Eu vou, meu caro Julio, fazer-me perceber melhor. Sabe o Julio, sabe toda a gente, como as mulheres estimam as suas tranças, pretas ou loiras, avelludadas como a noite ou radiosas como o sol; com que fé não lhes prendem uma flôr, que sempre lhes fica bem, porque emfim as flores tanto são do dia como da noite. Pois bem, supponha o Julio que uma mulher está lendo o seu poeta favorito, á luz de stearina, muito curvada, tão curvada sobre o livro, que chega a crestar os cabellos! Sendo o cabello a força, a mulher perdeu muito da sua individualidade. É um cataclismo. Mas a _Giganta_, com os seus dois metros e quinze centimetros, por mais febril que seja a leitura, tão superior hade ficar sempre á luz, que póde viver inteiramente tranquilla ácerca da inviolabilidade das suas tranças. Quando muito, poderá acontecer-lhe apagar a luz com a respiração, e ficar ás escuras. Todavia bastará uma caixa de phosphoros para proseguir na sua recreação; e, para ella, os phosphoros são tão baratos, que qualquer pessoasinha, por mais pequena que seja, valendo dois tostões, vale vinte caixas de phosphoros. E nós, meu caro Julio,--olhe que differença!--valemos tão pouco, que sahindo de casa com a nossa caixa de phosphoros, levamos apenas comnosco a vigesima parte d'uma _Giganta_. * * * * * O ALBUM DO GYMNASIO (POR OCCASIÃO DA ESTADA DA COMPANHIA DO THEATRO DO GYMNASIO, DE LISBOA, NO PORTO) Oiço dizer que vamos ter muita coisa: as campanas dos _niños_ que estão actualmente na Corunha, o violoncello do snr. Casella, o reportorio do Santos, as tragedias da Ristori, e as guitarras dos fadistas. Seria opportunidade de me dispender em pontos d'admiração, n'este conjuncto de surprezas que medeiam entre a campainha e a guitarra, entre o campanologo de poucos annos e o fadista de muitos, mas reservo esse luxo ortographico para depois que vir e ouvir os artistas cuja chegada se annuncia para breve. E isto por duas rasões: por que me será mais facil copiar do cartaz, e porque não quero servir gratuitamente as empresas fazendo os cartazes... eu mesmo. Portanto, na espectativa do que virá, volto-me para o que providencialmente já temos, e digo providencialmente, porque não... tinhamos. Quero fallar-lhes do Gymnasio, perdão, quero fallar-lhes unicamente do album do Gymnasio, que tenho presente n'este momento, e cujas photographias estou passando entre os dedos, suppondo que a minha cadeira de braços é um camarote, e que a minha jardineira é o palco. Estou vendo-os, a elles e a ellas, sem a interposição do binoculo, que é muitas vezes mentiroso, e que realmente tem um terrivel e perigoso rival na photographia. Elle é a illusão, o cosmetico, a cabelleira; ella é o nariz defeituoso, a bocca desgraciosa, as rugas da velhice. Elle tem o prestigio da mentira; ella a eloquencia da verdade. Quando um admirador se apresenta a uma actriz por este modo: --Minha senhora, eu já tive hontem a felicidade de a conhecer por intermedio do meu binoculo, ella, que está para entrar em scena, segreda á sua alma: --Bem; então não me viu. Quando porém lhe diz: --Minha senhora, eu já tinha a felicidade de a conhecer em photographia, a actriz fica desgostosa e menos _coquette_, porque seria inutil simular. Ora sendo a photographia a verdade, optemos por ella. Bem. Aqui temos o album: folheemos e conversemos. Na primeira pagina... Taborda. A gente tem vontade de gritar logo, como se encontrasse em Paris uma gravura representando a proeza da padeira d'Aljubarrota: --Bem sei: é uma lenda da minha patria,--a lenda do Homem-Gargalhada. D'uma valentona que em vez de espancar o homem pretende espancar a humanidade, costuma dizer-se: «Que Brites d'Almeida!» D'um sujeito que é a alegria em pessoa, que faz rir todos os grupos, não quero já n'uma visita de pesames, que é justamente onde tudo dá vontade de rir, mas n'um casamento, que é a coisa mais seria que eu conheço, costuma dizer-se: «Que Taborda!» Este é conhecido e está definido: é a legenda do Homem-Gargalhada. Na segunda pagina... Izidoro. Parece um commerciante que vae á praça com o seu bengalorio e com a sua gordura,--a gordura passou a ser tão desejada que é prudente defendel-a com um bengalorio--e é um actor distinctissimo, que só negoceia á noite com as palmas e com os bravos. Tão conhecido é, que já Julio Cesar Machado, o primeiro photographo portuguez do folhetim, o retratou na sua pequena galeria dos grandes actores nacionaes. Portanto é procurar a photographia na casa Moré. Não tem que saber: _atelier_ de Julio Cesar Machado, Lisboa, retrato do actor Izidoro, com biographia: preço 200 reis. Terceira pagina... Maria das Dores. Ah! um gentil talento, creado no theatro desde os quatro annos! Tão pequenina era quando appareceu em D. Maria na _Condessa de Sennecey_, que adormeceu em scena, e foi preciso acordal-a para completar o seu papelinho. Depois, estreiou-se a valer no mesmo theatro, no _Anjo da reconciliação_, no tempo em que a esplendida aurora do talento de Manuela Rey deslumbrava o publico lisbonense. Era sobremodo difficil fazer-se notar n'aquella epocha, pela simples rasão de que a intensidade da luz chega a cegar. E Manuela foi realmente um meteoro que só appareceu no céo do theatro portuguez para se amortalhar nos seus proprios esplendores, e deixar saudades. Maria das Dores estudou, luctou, fez magistralmente o _Gaiato de Lisboa_, substituiu Manoela Rey no papel de Bertha da _Mulher que deita cartas_, o que podia considerar-se uma incontestavel victoria, e hoje é essa grande actriz que todos temos admirado,--a Silvana da _Filha unica_, a _Valentina_, e a viscondessa do _Como se enganam mulheres_! Quarta pagina... Rosa Junior. Quando este rapaz nasceu (1844) já o pae estava farto de saber para o que elle nascia. Para pintor, dizia na sua boa fé o velho Rosa. N'esse proposito, foi o rapaz iniciar-se no curso de bellas-artes, e quando terminava o curso declarava ao pae que não queria ser pintor. É que realmente a gente nasce com a sua estrella, e, muitas vezes os paes tão cegos estão da sua amorosa ufania de serem pilotos da barca do nosso destino, que chegam a imaginar possivel a navegação sem olharem para o céo onde estão as estrellas... Ha ainda alguns desenhos de Rosa Junior, ha, mas elle suppôz--e suppôz bem--por intervenção da sua estrella, que o maior _atelier_ do mundo, sem ser o mundo, era o theatro, e voltou-se para o desenho dos caracteres moraes, a que só um verdadeiro talento póde dar colorido. Estreiou-se no Porto, em 1862, nas _Joias de familia_ e appareceu em Lisboa, um anno depois, no theatro de S. Carlos, no _Ricardo III_. N'esse mesmo anno foi escripturado por Francisco Palha para D. Maria II, onde se estreiou na _Sophia Mopin_, versão de Rebello da Silva. Foi contando os triumphos pelos papeis: na _Nobreza_, nos _Fidalgos de Bois Doré_, nos _Nobres e plebeus_, na _Patria_ e na _Lucrecia Borgia_. Se o publico se não se encarregasse de lhe dizer que a sua estrella tinha rasão, bastaria a corôar a sua resolução o silencio do pae que nunca se atreveu a dizer-lhe: --Diabo! porque não foste tu pintor! O seu maior elogio é o silencio do pae. Quinta pagina... Cesar Polla. Eu não sei realmente como elle chegou a ser actor! Foi empregado publico, e, o que é mais esterilisador ainda, metteu-se em politica. A burocracia teve-o nas garras até 1864, e deixou-o escapar! Chegou a saber o processo de fazer e desfazer deputados. Sondou as profundezas revoltas da urna eleitoral. E, caso raro! pôde salvar-se a si e á sua intelligencia, fugir á comedia dos homens, enganar o cerbéro da politica para que o deixasse passar e, quando muito, fazer deputados á bocca da scena, o que é mais glorioso do que fazel-os á bocca da urna. Estreiou-se em 1865, em D. Maria, nos _Diffamadores_, na noite do beneficio do Tasso. Esteve em D. Maria até 1870, e durante esses cinco annos revelou-se o grande artista que hoje é, mórmente quando, incumbido do papel de barão de Lambech, no _Anjo da meia noite_, ao tempo que José Carlos dos Santos o estava fazendo na rua dos Condes, logrou confirmar o enthusiasmo das primeiras saudações. O publico lisbonense festejou-o delirantemente no Pomerol da _Fernanda_, no Bevalan da _Vida d'um rapaz pobre_, no Mirabeau da _Maria Antonietta_, no Gil Paes de Lima da _Côrte n'aldeia_, no medico do _Juiz_... Verdade é que se perdeu um burocrata! O orçamento não lucrou com isso, mas quem com certeza lucrou foi o theatro portuguez. Sexta pagina... Emilia dos Anjos. É uma discipula do Conservatorio, de faces morenas e olhar vivo, expedita e intelligente, já conhecida do publico portuense, que em mais d'uma época a tem festejado na comedia. Representou no Porto, com Pinto de Campos, a _Familia Benoiton_, e o nosso publico ficou estimando-a. Voltemos folha: Pinto de Campos. Filho d'uma familia de lavradores de Villa Franca, começou por ser typographo. Certo dia lembrou-se porém de que não conhecia ainda todos os typos--os do drama e da comedia--e fez-se actor. Estreiou-se no Gymnasio em 1855 e passou depois a D. Maria. Com estas andadas esqueceu-se da typographia, mas em compensação ficou conhecendo optimamente a topographia... do theatro. Fez admiravelmente o Krig da _Cora_, o piloto dos _Homens do mar_ e, no Porto, os galans com Emilia das Neves. Artista consciencioso e boa alma. Ouro sobre azul. Temos na setima pagina... Maria Adelaide. No theatro e na sociedade é uma _coquette_. Alguem, vendo-a no _Afilhado de Pompignac_, disse que ella tinha nascido para amazona. Diz com graça, e tem ás vezes a travessura d'um rapaz. Ora, pela _coquetterie_, é bom passar a gente depressa. Folheemos as paginas restantes. Bayard, se não se póde considerar um artista de primeira ordem, é todavia um actor apreciavel, em que os outros podem ter confiança, porque não desmancha, como se diz em linguagem de theatro. Luiza Candida tem uma especialidade--os typos populares,--em que vae muito bem, o que não quer dizer por modo algum que não tenha intelligencia para outras creações. Jesuina é uma _soubrette_ engraçada e distincta. Ora tambem não é bom demorar-se a gente onde ha graça e distincção... Carlos d'Almeida é um actor comico, que se adivinha pelo seu casaco azul de botões amarellos, pela sua _badine_, e pelo seu chapéo. No _Afilhado de Pompignac_ está constrangido, mas ainda outro dia, n'aquella bagatella _Entre casados_, fez rir a bom rir. Na ultima pagina do album está Leopoldo, discipulo do Conservatorio, e ensaiador da companhia. Apparece pouco, mas em compensação todas as noites apresenta a sua obra. É tempo de fecharmos o album do Gymnasio, e, como n'esta vida anda sempre a illusão a par da realidade, bom será que o publico, que viu a photographia, veja á noite pelo binoculo... a companhia. * * * * * ESBOÇO DE COMEDIA O pessoal d'esta comediasinha é inferior ao de todas as secretarias, mas, ao contrario do que acontece nas secretarias, todo o pessoal faz alguma coisa. Declaro, para evitar pedidos d'empresarios, que ha de ser posta em scena por curiosos, evitando-se outrosim as tolices dos actores, e que se nomeará no cartaz: HISTORIA D'UM COLLAR PERSONAGENS *Raymundo Savedra*--leão. *Dolores*--leoa. *Baroneza de Faiães*--ex-leoa. Principia ás 9 horas para haver tempo de preparar a jaula. Scena I _Boudoir_ de Dolores.--Tapetes de Susa, espelhos de Veneza, e uma bilha d'Extremoz. Raymundo e Dolores. RAYMUNDO--Amo-a! DOLORES (_despeitada_)--O senhor ama todas as mulheres! R.--Não confunda os fogos-fatuos d'uma noite canicular, estiva, apopletica com a chamma do sol, intensa, continua, deslumbrante, esplendida. D. (_bocejando_)--Que estylo! R.--Não faço estylo. Eu fallo assim. D.--Oh! então o nosso amor é impossivel, atroz. O senhor, se alguma coisa ama, é... os adjectivos. R. (_carinhoso_)--Perdão, Dolores, a minha eloquencia é filha do meu amor. O rouxinol da balseira só descanta quando a primavera enflora os prados. O carneirinho... D.--Não sabe que embirro tanto com os carneirinhos como com os bachareis! Que está o senhor a bacharelar! R.--Perdão. Entre bacharelar e ser bacharel medeia a distancia da reprovação. Eu não tenho cartas. D.--Com que então não joga! Virtuoso moço! R.--É implacavel, Dolores! D.--N'esse caso peça treguas. R.--Pedirei. D.--Com a condição de me satisfazer um capricho, uma velleidade. Preciso dum collar. Estou doidamente namorada d'um que vi esta manhã em casa do meu ourives. Vá comprar-m'o. R. (_pegando no chapéo_)--Voltarei em breve. O collar será seu, e a felicidade será minha. (_Sae._) Scena II DOLORES (_cahindo no sophá_)--Puff! Que xarope de morphina o estylo d'este homem! Como elle me aborrece, me adormenta! Me adormenta, é phrase d'elle! E não se lembrar este doido de que é casado, de que tem filhos... UM CRIADO, que podia ser de papelão, se alguem fallasse por elle entre scenas:--A snr.ª baroneza de Faiães. Scena III BARONEZA--Minha senhora! D. (_erguendo-se_)--Senhora baroneza! B. (_sentando-se a convite de Dolores_)--Eu espero que a justiça da minha causa me absolverá da ousadia da visita. D. (_para a frisa do lado direito_)--Que quererá ella? Não sei que me adivinha o coração! B.--Ha realmente assumptos tão melindrosos, que eu não sei se deva... D.--Minha senhora! B.--Peço toda a sua benevolencia para a justa defensa dos direitos de minha cunhada... D.--Mas... B.--Sim, eu sei que ama delirantemente meu irmão, que o verdadeiro amor é cego para todas as conveniencias sociaes, mas é ao coração doente que eu venho trazer o cauterio da piedade. Lembre-se, Dolores, de que meu irmão é casado com uma senhora nova e extremosa, e pae de cinco filhos. D.--Mas... eu queria dizer a v. ex.ª que não amo seu irmão. B. (_admirada_)--Como! D.--Que o não amo. B.--Pois será possivel! Meu irmão suppõe-n'o, acredita-o, jural-o-ia. D.--Eu creio que o snr. Raymundo Savedra é facil em acreditar tudo: o espirito simples é, por via de regra, credulo. Agora lhe pedi eu um collar de preço fabuloso para vêr se conseguia que o sacrificio lhe fosse lição. B. (_áparte_)--Piedosa lição! Esta mulher! (_para Dolores_)--Muito bem! Está, pois, concluida a minha missão. Saio d'aqui com a felicidade na alma, e creia que jámais me esquecerei da nobre franqueza que encontrei nas suas palavras (_comprimentando_). D. (_correspondendo_)--Senhora baroneza! Scena IV RAYMUNDO (_entrando açodado_)--Que veio aqui fazer minha irmã? Ouvi-a fallar n'esta sala, e escondi-me no corredor. Que disse ella? DOLORES (_com indifferença_)--Perdão! E o meu collar? R.--Oh! O seu ourives só sabe propôr negocios leoninos! Pede uma quantia fabulosa! D. (_no mesmo tom_)--Quanto? R.--Um conto de reis! D.--Ah! Acha muito! R.--É que realmente eu tenho dispendido comsigo, Dolores, loucamente, e receio que um dia a pobreza vá encontrar meus filhos amaldiçoando o tumulo do seu pae. D. (_tocando a campainha_)--Que entranhas paternaes as suas! (_Ao criado_) Diga a este senhor que estou incommodada. (_Sae._) R. (_fulo de colera_)--Eu me vingarei, infame! Ficará sem collar! (_Sae._) Scena V DOLORES (_entrando pela mesma porta porque saira_)--Não ficarei sem collar, não. Eu serei infame, mas tu és... parvo. (_Escrevendo_) Duas linhas ao meu ourives: «Snr.: Queira aceitar a offerta, qualquer que seja, feita pelo snr. Raymundo Savedra. Eu completarei o preço da compra do collar. Exijo absoluto segredo.» (_Tocando a campainha; ao criado_) Leve esta carta ao meu ourives. (_Erguendo-se_) É preciso que elle fique inteiramente derrotado. É uma fonte de receita que se vae eliminar do meu orçamento, e convém não prescindir da ultima verba. Tu receberás a correcção devida a todos os parvos. Scena VI Raymundo entra timidamente. DOLORES (_sentindo-lhe os passos_)--Que amor o d'aquelle homem, que recua deante d'uma velleidade! Vão lá fiar-se no amor! (RAYMUNDO _avançando_)--Não faça esse conceito de mim, Dolores, bem sabe se a amo, doidamente, perdidamente, mas é que... D.--É que talvez nem mesmo agora saiba ser cavalheiro. O meu ourives acaba de avisar-me de que resolvera acceder á offerta do senhor. R.--N'esse caso... D.--Quanto offereceu o senhor? R.--Quinhentos mil reis. D.--(_á parte_) É muito! Tenho de dar outros quinhentos. (_Alto_) Não lhe convém ainda? Acha cara a felicidade que lhe custa quinhentos mil reis! Que largueza d'animo a sua! R. (_apaixonado_)--Não, vou já, Dolores. Á noite fulgirá o collar no seu seio, e as estrellas desmaiarão no céo. Não será mais formosa a huri quando as exhalações calidas da noite... D. (_com aborrecimento_)--Quer que lhe faculte o _adresse_ do meu ourives? É de suppôr que a imaginação lhe anniquille a memoria. R.--Até já, Dolores. Vou buscar as estrellas para completar o meu céo de felicidade. (_Sae._). Scena VII DOLORES (_olhando para a porta_)--Bonita figura... a do homem! O amor dá azas. Voará. Dentro em pouco estará aqui. O collar será meu. Deital-o-hei ao pescoço. Mirar-me-hei ao espelho, e intimarei o snr. Raymundo Savedra a que saia para nunca mais voltar. E depois um collar d'um conto de reis não é caro por metade do preço. (_Chegando á janella_) Já desappareceu. Não tardará. O caso é que estou impaciente pelo desfecho d'esta pequena comedia. (_Tocando a campainha; ao criado_) Já vieste ha muito? Ficou entregue? (_O criado bole affirmativamente a cabeça_) Está bem; vae-te. Mal persintas o snr. Raymundo Savedra, avisa-me. Não sei o que hei-de fazer! Ah! o meu piano! (_Senta-se arpejando e monologando_) E dizerem que a felicidade é isto! Quantas vezes m'o não teem dito! Se soubessem como estou aborrecida agora! E as minhas canções! Vamos, Marcó, desafia-te a ti mesma; vence o teu proprio fastio. Póde ser que venhas a amar um dia; entôa o teu cantico d'esperança! Não, não posso! Que demora! Scena VIII O CRIADO (_com uma carta_)--Da snr.ª baroneza de Faiães. DOLORES (_impaciente, levantando-se do piano_)--Vejamos. Que terá a baroneza ainda que dizer-me! «Snr.ª Acabo de escrever a meu irmão desenganando-o. Antecipei-me, porque lhe seria menos doloroso o golpe vibrado por mim.» (_O criado_: Chega o snr. Raymundo Savedra) DOLORES: Ah! (_escondendo a carta_). Scena IX RAYMUNDO (_entrando de chapéo na cabeça, com uma caixa na mão esquerda e uma carta na mão direita. Ameaçador, tetrico_)--Sei tudo. Minha irmã teve a feliz ideia de me deixar esta carta em casa do seu ourives, minha senhora. Esteja tranquilla. Não será preciso que o sacrificio me seja lição. Esta carta desvendou-me; chamou-me á realidade. O sorriso da amante não vale o coração da esposa. D.--O que? R.--Oh! socegue! As pedras falsas inventou-as o homem para as falsas mulheres. Mas estas, as que são realmente preciosas, creou-as a natureza para as mulheres honestas. Adeus. Vou offerecer este collar a minha mulher. (_Sae._) D. (_cahindo fulminada no sophá_)--E os meus quinhentos mil reis! Ó castigo! (_Cae o panno._) * * * * * AS COLHEITAS Eia, ceifeiros! Começam a arroxear os pampanos e a loirejar as messes... Vá de limpar a eira, e preparar a adega; de varrer o lagar e ventilar o celeiro. Ri no campo a conta amarella do milho, na vide o bago roxo da uva. Foi Deus que da primavera ao outomno os preparou no mysterioso laboratorio da terra. A ambos deu côr, e fórma, e prestimo: no interior d'uma pôz o cereal que ha-de ser pão; no interior do outro a gota que ha-de ser vinho. E d'estas pequenas coisas vae sair a fartura, a abundancia, a alegria, a festa, a riqueza! Tão contingente é a felicidade do homem, que um sopro de vento póde prostrar os milheiraes, e um insecto, tão pequeno como a uva, inutilisar o cacho... Mas se Deus vos protegeu o campo e o vinhedo, se loirejam n'um os cabellos de Daphne, e no outro vergam os sarmentos com os pêsos côr da amethista, vá de azafamar para a colheita, de afinar a viola do descante, de phantasiar as alegrias da esfolhada, de escolher corpo gentil onde caia o abraço do _milho-rei_. Quem não conhece agora a aldeia, quando Abre a romã, mostrando a rubicunda Côr com que tu, rubi, teu preço perdes; quando Entre os braços do ulmeiro está a jucunda Vide, com uns cachos roxos e outros verdes; quando mais se amacia o velludo do ...pomo, que da patria Persa veio, Melhor tornado no terreno alheio e Mil arvores estão ao céo subindo Com pomos odoriferos e bellos e ... a tapeçaria bella e fina Com que se cobre o rustico terreno, Faz ser a de Acheménia menos dina, Mas o sombrio valle mais ameno! É agora que desce dos montes o pregão de festa, e que fogem da cidade para as sombras do bosque, como aves a procurar abrigo, as almas entediadas da vida ruidosa das cidades. Borboletas, cuja vida irá queimar-se na chamma fatal, querem povoar os campos, cujos fulgores illuminam mas não matam, porque descem do céo, e ou são do sol ou do luar. Á tarde, desencalmado o ar, vão os ranchos festivos ribeira abaixo, pela relvosa alea ladeada de arvores que vergam ao pezo dos pomos. Vão charlando os moços, rindos os velhos, doidejando as crianças. Haverá por ventura no enxame quem leve seu livro para meditação? Qual será elle? Livro puro e são, como as aguas, como o ar, como tudo alli. Manon Lescaut e Margarida Gauthier não entram ao santuario d'aquellas sombras, porque as flores silvestres dos vallados lhes diriam: --Aqui não ha camelias, peccadoras. Os vossos ramos banharam-se no champagne das ceias, e crestaram-se; nós florimos banhadas no orvalho da manhã, e perpetuamo-nos. Somos pequenas e singelas. Enchemos apenas o nosso canteirinho rustico; vós encheis o mundo com a cauda roçagante dos vossos ricos vestidos. Olhae bem e procurae camelias... Não as ha. Eu sou a madre-silva, aquella é a violeta branca, aquell'outra é o malmequer. Riquezas para a pastora, que vive para colher a laranjeira! É a sua ultima flor. Não lh'a venhaes empestar com as vossas camelias, que trazem veneno como os vossos labios. Werther tambem lá não entra, porque lhe diz o camponez ancião, sentado á porta da cabana com o neto nos joelhos: --Elá, poltrão! Os nossos lares são tranquillos e sagrados,--não se invadem. Eu sei que esta criança é filha de meu filho, e por isso a amo. Não conhecemos cá o desespero do amor illicito que leva á morte. Aqui vive cada um o tempo das arvores que plantou. Por isso eu tenho estes cabellos brancos, e é porque me não aborrece a vida, que os vês, ainda confundidos com os cabellos loiros d'esta criança. O santo reitor, que serviu porventura de modelo ao evangelico personagem do primeiro livro de Julio Diniz, encontra no caminho a sombra de Voltaire, e entre sereno e austero lhe falla: --Não ha quem te comprehenda aqui; vae-te, sabio peior que o rustico. São tudo camponezes. Nem a minha palavra rude e clara elles entendem, porque não precisam entendel-a. Deus conhecem-n'o de o vêr n'estes campos que ora fructificam, e que na primavera riem. Estão estas serranias tão habituadas ao silencio, que não encontrarias pelas quebradas echos para as tuas tempestades. Vae-te em paz, e adeus. É preciso que os livros, na aldeia, tenham alguma coisa do chilriar dos passarinhos: que sejam candidos e bons. Servem os _Contos do tio Joaquim_, porque na alma de Thomaz, o philosopho amoroso da estrella phantastica, não modilhavam só os passarinhos, a que do coração queria,--chilreava uma primavera perpetua. Servem os _Serões da provincia_, que se diriam outras tantas flores perfumadas pela alma de Julio Diniz. Não teem mau feitiço os novellos da tia Philomena, nem os versos do doutor Jacob queimam como as estrophes de Byron... Esses livros cabem á solidão, porque é no despovoado que se rememora, e ambos elles valem hoje duas saudades redivivas. Do rancho urbano uns lêem, outros fallam, e nenhum está triste. Vae descendo o sol. Passam no caminho as ceifeiras, contentes do lidar d'um dia inteiro. Na voz d'algumas canta-lhes a alma; nas faces de todas alvoreja, áquella hora do entardecer, a alegria do descanco. Metade da noite, a seroam: outra metade, dormem-n'a. Sol nado, toca a encastelar os cestos da ceifa e da vindima, e partem cantando. No palacete de gradarias de ferro acorda ao matinal concerto uma das formosas do rancho que na vespera estava lendo _A flôr d'entre o gelo_. E, lembrada de ter lido n'um poeta portuense esta quadra, sorri ao primeiro raio de sol que lhe brinca nas rendas do leito, e abençoa: Ide ceifar! Deus vos encha Os açafates d'espigas. Deus vos dê boa colheita, Rapazes e raparigas. E o serão! As rumas de milho no meio da eira; raparigas d'um lado, rapazes do outro; a requinta a distancia. Ao longe, presentidos já pela turba, os mascarados. Emquanto não chegam, o desafio: --Não penses em ser esquiva, Que se eu estender os braços, Tu vaes ficar prisioneira N'uma cadeia d'abraços. --Que se me dá de cadeias! Sempre um élo é menos forte... Cadeias que se não quebram São as do amor e da morte. Chegam os mascarados. Irrompe a vozeria: --É elle! --É ella! --Não é elle nem ella: é outro! Sempre me ha de lembrar o caso da menina do Pedregal, que tinha amores contrariados. Na noite da esfolhada obteve licença para ir dançar na festa vestida de camponeza. Foi, e disse falseando a voz: --O primeiro abraço é meu! Respondeu um camponez: --Pertence-me! Era senha. E depois? Depois a menina do Pedregal não voltou a casa, e o capitão-mór, apesar de vêr a filha radiosa da felicidade do casamento, nunca mais deixou andar mascarados nas esfolhadas. * * * * * S. BARTHOLOMEU _Per signum crucis..._ Sempre é bom acautelar n'este dia! Vamos lá para a Foz, com toda a gente, depois de persignados. Encontramo-nos uns com os outros pela rua de Ferreira Borges abaixo: --Para a Foz? --Pois! --Almoçar? --E jantar! --Mais um copito por minha conta! --Mais dous por minha! --A D. Rosalia não vem? --Foi de vespera; dormiu lá! --Que soffreguidão! --A D. Rosalia não quer perder uma festa! --Então é como as esposas ciumentas... --Maganão! No caminho de ferro americano. Dous gordos: --Esta romaria mette muita gente! --O poder do mundo! --Você passa o dia? --Eu vou almoçar a casa do cunhado. --Mas você vae de palito na bocca? --Isto foi para experimentar os dentes. Duas magras, que valem por seis tagarellas: --De ponto em branco! --Sim... a _polonaise_ é nova... --Catita d'uma vez! --O mesmo posso dizer de ti! --Ah sim... o chapéo. --Está muito fresquinho! Eu gosto dos chapéos arranjados com pouca coisa... --Não disse isso a Ravoux, que me pediu oito mil e quinhentos... --Ellas pedem sempre muito. --Tu lá sabes quanto te pediram pela _polonaise_... Um sujeito, pondo a cabeça fóra da carruagem, para outro que desce a rua de Ferreira Borges: --Ó Bernardo! Ó Bernardo! Anda p'r'aqui! O outro agitando os braços: --Olé! Ahi vou! Uma velha rabugenta: --Que gordura d'homem! Vamos aqui morrer de calor! Por isso é que eu gostava dos carroções... O gordo, atravancando a portinhola, e produzindo um breve eclypse no interior da carruagem: --Vamos lá a esse _S. Barthalameu_! O que o chamava: --Ora o Bernardo! O Bernardo! Um _petit-crevé_ para um _crevé-petit_, atravez do fumo do charuto: --Palpita-me que vamos ter _bernardices_. Uma creança esmagada pelo Bernardo, que se sentou: --Ai! O Bernardo, cuja sensibilidade está embotada pelo habito de trilhar pessoas: --Não é nada!... Ora coitadinha! Isto fez-me lembrar a anecdota da melancia e da avellã... Abala o trem. A velha, estremecendo: --Nos carroções não havia isto! Lá vae aquella fluctuante colonia de romeiros povoar a Foz durante vinte e quatro horas. Vão á romaria! disseram elles. Pois que vão. Chegarão lá, percorrerão todas as cangostas, todas as ruas, irão ao adro, á praia, a Carreiros, procurando, sempre procurando, e não encontrarão a... romaria. O que elles encontrarão será: _Na igreja_--Duas cortinas vermelhas e seis velas acesas, no altar de S. Bartholomeu. Um homem sentado a uma mesa, a vender registos e a receber esmolas. Algumas mulheres, que se ajoelham deante da mesa para beijar a imagem e beijam o diabo, que a imagem tem aos pés... _No adro_--Quatro mesas com bonecada. Um grupo d'homens de guarda-soes abertos. _Na praia_--Muita gente sentada e muita gente de pé. _Em Carreiros_--Algumas pessoas que vão á procura dos lavradores, os quaes lavradores não apparecem. _Pelas ruas_--Muita gente que vae e que vem. _N'uma encrusilhada_--Um sujeito da provincia perguntando a uma pequenita: --Onde é a romagem, menina? A rapariga com cara de lorpa conscienciosa: --Cá não ha essa rua. _Nas casas particulares_--Algumas meninas sentadas na sala das visitas. Ao centro, quatro velhos a jogar a bisca sueca. Tudo á espera do... jantar. _Na cosinha_--A dona da casa a apressar a cosinheira. A cosinheira a dizer ao criado que se apertarem muito com ella deixa o jantar por fazer e vae-se embora. _Nos hoteis_--A mesa redonda cheia. A mesa quadrada, idem. A mesa triangular, idem. Mais quatro familias a perguntar se não ha mais mesas. _Á porta do castello_--Dois veteranos a comer melancia, e outro a dormir com o lenço vermelho estendido sobre a cara. _Nos bilhares_--Dois caixeiros que jogam o bilhar toda a tarde, porque elles foram á Foz, não procurar a romaria, mas divertir-se. _No pharol da Luz_--Um pae a explicar ao filho a espheroicidade da terra pela curva que vae descrevendo um vapor. O menino: Ó papá, mas se o mundo fosse redondo, aquelle vapor cahia agora! O pae: Cala-te, cala-te, tu não sabes o que dizes! E a romaria? Procuraram-n'a, rebuscaram, vascolejaram tudo, e não poderam encontral-a... E os lavradores a tomar banho? Os lavradores tomam banhos todos os dias, menos hoje. Teimavam em farpeal-os; elles teimam em não dar sorte. Diz-se que costumavam tomar sete banhos na manhã de S. Bartholomeu. Eu acho que tomarão sete, em qualquer dia, se tiverem muita pressa d'ir para a terra. Dois tomam elles todos os dias: um de madrugada outro de tarde. Acontece por lá a cada passo demorar-se um camponez quinze dias e retirar-se com trinta banhos. Já houve um, meu conhecido, de Castello de Paiva, que esteve quinze dias na Foz e tomou trinta e quatro banhos. Perguntou-me se eu queria alguma coisa para os seus sitios. --Então já vaes? --Esta noite. --Quantos dias estiveste? --Quinze. --Quantos banhos tomaste? --Trinta e quatro. --Como fizeste isso? --É que aos domingos tomava quatro. Um anno por outro acontece que alguns d'elles tanta pressa teem de _acabar com o remedio_, que tomam um unico banho. Isto é, morrem depois do jantar, no mar, com uma apoplexia. O pretexto d'ir vêr os lavradores é um mau pretexto, porque, ainda que elles se banhassem, como dizem que se banhavam antigamente, n'este dia,--não prestava aquillo para nada, de certo. Eu vou explicar como os lavradores tomam banho na Foz. Vão para as praias da Luz com a sua trouxa sobraçada, aos ranchos, por que um lençol chega para quatro. Elles entendem por um acertado instincto suino, que quanto mais salgados ficarem, melhor. Mettem-se entre os fragoedos. Homens e mulheres vão de branco, ligeiramente vestidos; a côr da roupa faz com que deixem no banho o _ligeiramente_ e saiam sem adverbio e sem decencia. Esperam a onda, de bruços na areia, com a cabeça virada para a terra, e a parte opposta para o mar. Isto poderia offender os peixes, se os peixes tivessem brios. Mergulham sete vezes, porque, para elles, de sete em sete ondas, vem uma que traz grande virtude curativa. Depois vão a correr para entre as fragas, cheios d'areia e d'agua, e limpam-se ao lençol a que já se limparam tres. Isto é invariavel. E o diabo, que anda ás soltas n'este dia? A respeito d'este bicho eu sou exactamente da opinião do padre Antonio Vieira: «O diabo já não tenta no povoado, nem é necessario, porque os homens lhe tomaram o officio, e o fazem muito melhor que elle.» Ora é este mais um motivo, vista a substituição, para eu acabar como principiei: --_Per signum crucis..._ * * * * * O NATAL Os chefes de familia, que logram contar vinte annos de praça conjugal, devem hoje chamar seus filhos á sala do jantar e dizer-lhes, indicando a meza: --O Natal foi alli. Que ss. ss.as os moços pennujentos oiçam reverentemente a voz de seus paes, e desçam olhos de commovido respeito ás mudas tabuas onde o Natal vaporou as mais succolentas iguarias, e caldeou a mais serena embriaguez do genero humano nas garrafas scintillantes de vinho e luz. O Natal foi alli. Tudo quanto de indigestamente pesado póde haver para o mais vigoroso estomago, aqueceu as loiças que se deixaram cahir de maguadas das mãos dos criados, quando souberam que certo dia o menino mais velho tivera uma gastrite por haver comido uma gemma d'ovo depois da meia noite. E tiveram rasão. A espada de D. Pedro IV prefere a inactividade do Museu de S. Lazaro a lampejar ao reflexo do sol em dia de solemne patuscada militar no Campo de Santo Ovidio. Viram o throno deserto dos cortezãos do seu tempo e não quizeram sobreviver á ruina do estomago portuguez. Os homens contemporaneos d'aquellas loiças comiam uma gallinha em dia de natal, e um perú em dia d'anno novo. Os filhos, que simplesmente herdaram o nome paterno, sentem-se affrontados com a digestão d'um ovo, e estão adoptando á meza os legumes porque a teia de aranha onde caiem os alimentos não consente mais que uma folha d'alface, e uma vagem de conserva. Por isso se suicidaram as amplas terrinas de ha vinte annos, e não resta da primeira festa portugueza mais que este epitaphio na bocca dos velhos: --O Natal foi alli. Era alli. A mesa deslumbrava de candelabros e garrafas. Em derredor estavam as largas cadeiras de couro tauxiado. N'aquelles alterosos espaldares podia recostar-se uma cabeça impassivel á fermentação dos liquidos. Sabia-se que nenhum dos convivas cabecearia a ponto de fracturar o craneo na pregaria amarella. Aproveitava-se o encosto unicamente para se estar aprumado, de modo a facilitar a descida dos alimentos ao longo do esophago. Os criados entravam e sahiam para pôr os pratos; hoje o principal cuidado dos criados é dispol-os. N'aquelle tempo não havia symetria; a symetria foi creada e é observada exclusivamente por nós, que somos a geração mais artificial que tem vindo ao mundo. A abundancia era a condição unica a attender. Ha vinte annos dizia-se de uma mesa: Estava cheia; hoje diz-se apenas: Estava bonita. Dispensavam-se as flores. Para recrear os olhos bastava a variedade dos pratos; para deliciar o olfato era sufficiente o perfume dos cosinhados. Baralhavam-se as terrinas, as travessas e as taças. A luz passava d'umas ás outras como o reflexo de luar que atravessa as ondas. Era um mar agitado, amplo e alegre. De espaço a espaço, como ilha deleitosa, erguia-se a garrafa; já se sabia que se tinha de parar alli para fazer aguada. A prudencia do marinheiro está em não se demorar nos portos onde toca, de modo a atrazar a viagem. Assim observavam nossos paes á mesa. Faziam escala por todos os archipelagos de crystal, por ser vergonhoso a um maritimo não conhecer a mais insignificante ilhota. Saudavam na passagem o promontorio da gallinha, a bahia do arroz, a cordilheira dos paios, o isthmo do pernil, o cabo dos mexidos, os escolhos das rabanadas, e a frescura oleosa dos verdejantes oasis de grêlos que ensombravam os pequenos desertos das travessas. Iam conhecendo o mappa palmo a palmo, vendo o mundo retalho a retalho, n'aquella noite. Corria a ceia na doce intimidade de bordo. Ria-se serenamente; fallavam todos e ouvia-se cada um. Á cabeceira da mesa estava o pae com os seus cabellos nevados, radeante d'alegria. Parecia o piloto á cana do leme. Dilatava-se n'aquelle suavissimo conchego a alma dos convivas como se dilata a alma dos passageiros na contemplação do infinito. Quando a tripulação saltava em terra, quer dizer, quando pouco antes da meia noite se levantavam da mesa, iam em rancho á missa do gallo, com aquella religiosa solicitude de muitos marinheiros que vão orar á Senhora da Boa Viagem mal que descem a escada de portaló. Era uma festa! N'aquelle tempo o vinho não embriagava nem as comidas affrontavam. O estomago dilatava-se tanto como o coração... O somno fugia amedrontado da alegre voz do gallo. Estava-se bem toda a noite e ninguem pedia amoniaco nem soda Watter. O livro da felicissima gastronomia d'aquelle tempo era digno do prologo, e levava quinze dias a lêr-se. Só no dia de Reis se virava a ultima folha. E no dia 7 de janeiro ninguem se queixava de dyspepsia! Hoje tudo é differente. Os convivas introduziram os vinhos francezes porque são espuma que desce ao estomago, e que dá uma falsa alegria de momento. Todavia querem mostrar que são valentes, e arremettem contra uma garrafa de champagne, que durante meia hora os descompõe, a ponto de se supporem a ceiar com _cocottes_. Esquecem-se de que estão á mesa com suas irmãs e com sua mãe. Até para ellas precisam de pedir emprestada a alegria ás bebidas! Á meia noite ninguem os encontra em casa; estão no botiquim a tomar caffé, porque se sentem incommodados do estomago. Á ceia o unico que está sinceramente risonho é o pae, porque se alegra das suas recordações. Os filhos começam a fallar depois que salta a primeira rolha de champagne. Não distinguem aquella ceia das ceias ordinarias: não se lembram do irmão que está no Brazil ou do irmão que está no cemiterio. Antigamente, se estava ausente uma pessoa da familia, punha-se-lhe o retrato na mesa. Era para que não faltasse ninguem á ceia. Hoje não se colloca o quadro para não desmanchar a symetria. Mettemos a arte em tudo; até nos lembramos de a metter entre os pratos! Para tudo ha preceitos, tudo se faz por medida. Os criados andam collocando a loiça com a _Arte de servir á mesa_, do snr. João Matta, no bolço. Como se põe a mesa? O snr. Matta dil-o: «A toalha convém que seja adamascada. Quando se estende, deve ficar bem posta, repartida com egualdade para todos os lados e sem rugas. A peça principal, para ornato ou serviço, colloca-se ao centro. Em torno d'ella, põem-se serpentinas com vellas; vasos de flores; grupos de figuras; pratos de doce de copa: pratos montados de porcelana, crystal, ou prata, com pastilhas, amendoas torradas, doces de ovos e de côco, foguetes e algumas flores artificiaes para embelezamento d'esses pratos. Se houver _plateaus_ com grandes vazos de bronze dourado, devem collocar-se symetricamente na mesa, tendo cada vaso sua garrafa de vinho de Champagne rodeada de gelo, para contentamento da vista e ostentação da grandeza do dono da casa.» Antigamente os criados não tinham compendio. O que se punha na mesa não era para se vêr mas para se comer. Em dezembro o que se queria na mesa _para contentamento da vista e ostentação da grandeza do dono da casa_ era o vinho. O gêlo, por ser frio, deixavam-n'o á vontade no topo do Marão e da Estrella. Hoje, para aquecer os convivas e os vinhos, põe-se gelo na mesa. Se uns e outros não hão-de estar frios! Ha vinte annos o que _ostentava a grandeza do dono da casa_ era o diametro da vazilha. O vinho mais desejado era o _quente_; hoje querem o champagne bem nevado, _frappé_, como dizem os francezes. É tudo como os francezes dizem. O caso é que se lhes obedece, e que já se deixa passar a noite de Natal _á franceza_. Não sei como se chama em francez ás _rabanadas_ e aos _mexidos_, que se fazem ainda em attenção á velhice de nossos paes. Hão-de ter um nome exquisito, para não parecerem portuguezes. Tudo nos tem levado a França,--até o feijão branco! (Já não é feijão branco: diz-se _flageolets_.) Deu-nos a arte, e podemos dizer que nos levou o Natal. Pois apezar de estar casquilha a mesa, cheia de insignificancias bonitas, de pastilhas, de amendoas torradas e de rosetas de gêlo, podeis dizer a vossos filhos, indicando a mesa, ó celeberrimos valentões da guarda velha: --O Natal foi alli. * * * * * OS BOHEMIOS O fallatorio é este: --Quando chegam? --Quantos são? --Devem vir muito moidos! --Rijas pernas! As donas de casa: --Não sei como podem dispensar a loiça! Os paes de familia: --Prescindirem do sophá para dormir a sesta! As meninas umas ás outras: --Eu se fosse namoro d'algum não consentia! --Nem eu! --Porque? --Porque não queria um marido com habitos de recoveiro... Os leitores do _Primeiro de Janeiro_: --Elles... quem são? --De quem está fallando? --A quem se refere? N'uma palavra,--todas as explicações. Estamos fallando dos cinco intrepidos cavalheiros lisbonenses, que se propozeram fazer a pé, em verdadeiras condições de bohemios, uma insignificante jornada de Lisboa a Braga,--resolução que importa o sacrificio de dar apenas alguns passos como quem vae da Praça Nova ao Palacio de Crystal para aproveitar a companhia de dois amigos que lembraram um duello a cerveja. Mas, sendo um pouco mais profundo,--porque o folhetinista tem obrigação de fazer a anatomia das intenções--vejamos se não haverá porventura n'este caso, que denota á primeira vista bons pulmões, bom sangue e boas pernas, algum proposito recondito, algum plano philosophico, que revele, em segunda leitura, que os cavalheiros de Lisboa são tão intrepidos de espirito como de corpo. Leriam ha pouco tempo o _Roman comique_ de Scarron, o _Diable à Paris_ de Eduardo Ourliac, _L'Angleterre et la vie anglaise_ de Affonso Esquiros, o _Grand homme de province á Paris_, de Balzac, e enthusiasmar-se-iam com as comicas aventuras dos actores ambulantes e dos musicos das ruas? Não é de suppôr que rapazes que se encostam ás _vitrines_ do Chiado, que frequentam o Gremio, que vão a S. Carlos, que não faltam á espera dos touros, que costumam passar o verão em Cintra, que calçam bota de polimento, que se frisam no Baron, que se vestem no Keil, se aguentem, por mero capricho, n'uma caminhada de sul a norte, que os obriga a viver entre montes, durante dois mezes, n'uma barraquinha de campanha, onde mal se póde lêr a _Correspondencia de Portugal_ e onde seria impossivel desdobrar o _Times_. E tanto isto não é provavel, que dois dos peregrinos do rancho desanimaram a meio da jornada com saudades do _robe-de-chambre_ e do Martinho. Se o intento fosse um simples devaneio d'espiritos moços, uma extravagancia dos vinte annos, haveriam retrocedido todos, e affogariam o seu desalento n'um copo de champagne, que é como os rapazes costumam enterrar ruidosamente qualquer ideia que lhes morre... Mas tres d'elles, os snrs. A. C. da Silva Castro, Estevão Ribeiro da Silva e Pedro de Campos Menezes, avançaram sempre, chegaram ás Caldas da Rainha, demoraram-se em Coimbra, acampando no rocio de Santa Clara, e devem ter já partido do Bussaco. Segue-os uma carroça, puxada por um macho. Na carroça vae o _chalet_ ambulante, dobrado em fórma de biombo, e sentado em cima da lombada do _chalet_ o cosinheiro, que, precisando de trabalhar com os braços, se dispensa de trabalhar com as pernas. É o Sancho Pança da aventura, que se presume a assistir áquelle acto da _Cora_ em que vae passando em frente do espectador o panorama do Mississipi, porque vae vendo regaladamente as margens do caminho mettido dentro da sua mitra d'algodão branco, do seu avental de linho e dos seus oculos de metal amarello. Elle é o unico do rancho que se sente despreoccupado, porque apenas tem uma ideia: a cosinha. Os patrões vem andando e pensando, porque esta viajata representa para elles uma lucta entre as velhas tradições e as ideias modernas, entre as forças do homem e as forças da machina, entre os artelhos e os _rails_, entre a vontade que manda mover e a locomotora que faz andar. O empenho d'estes cavalheiros é naturalmente mostrar que o homem é mais completo do que o suppõem; que o progresso é uma simples mistificação de preguiçosos que querem viver na indolencia, e viajar sentados; que os caminhos de ferro são uma patarata engendrada para negocio d'uma companhia, e finalmente, que a raça latina tem ainda sangue rico, alma arrojada, altura de pensamentos, colorido nas creações, valentia nas empresas. Querem pois supplantar as invenções modernas, dispensando-as, e tanto o conseguiram, que de Lisboa até Coimbra entretiveram-se a ensinar a andar o caminho de ferro. Por um esforço pouco vulgar chegaram a dominar a propria curiosidade: ha um mez que não recebem cartas nem jornaes. Não sabem nada do que se passa no seu paiz, porque a direcção do correio é tão pouco intelligente que os não manda procurar onde estão. Mais um triumpho para elles! Então o correio foi feito para entregar as cartas a quem lh'as pede ou para as ir entregar a quem as deve receber? Nada sabem do que ha trinta dias acontece em Lisboa, nem siquer teem tido noticias da cotação dos fundos hespanhoes. E fallar-se sempre da rapida transmissão do pensamento, de telegraphos electricos, de cabos submarinos, de paquetes a vapor! Ha um mez que inteiramente ignoram o que se pensa no Chiado, e, visto que já os incendios começavam quando partiram, não sabem ao certo se Lisboa ardeu, e se já se encommendou algum marquez de Pombal para reedifical-a. Diz-se que o progresso tem levado commodidades a toda a parte, desbravando florestas, povoando desertos. No Cartaxo desejaram sorvetes e não os obtiveram; em Chão de Maçãs pediram toicinho do céo e alcançaram a certeza de que o céo em Chão de Maçãs era mahometano. Apregoa-se a diffusão da instrucção publica, a creação de cadeiras primarias, e na Pampilhosa, querendo sentar-se a tomar a fresca, offereceram-lhes uma cadeira em tão mau estado, que de nenhum modo se podia considerar primaria. Em Alfarellos quizeram passar a noite a lêr, e estando Alfarellos a dois passos de Coimbra, e sendo Coimbra, segundo o pensamento de Heitor Pinto, a cidade d'onde irradiam as virtudes e as lettras para todo o reino, como do centro da esphera sahem as linhas para a circumferencia, apenas conseguiram haver em Alfarellos um reportorio de 1872. Pois então, n'este seculo de extrema e assombrosa mobilidade, ha no mappa de Portugal uma terra que em agosto de 1873 se governava pela chronologia de 1872, dormindo um anno inteiro! Um dos nossos guapos viajantes sentiu-se no caminho um pouco embaraçado com um calo no dedo minimo do pé direito. Então ainda ha calos! E os jornaes a assoalharem que a pomada Galopeau é o verdadeiro pedicuro descoberto até hoje! Um pouco crestados pelo sol, desejaram refrigerar a pelle. Onde estava esse famoso Charles Fay, inventor do pó de arroz preparado com bismutho? Banharam as faces n'uma fonte, que serpejava por entre rochas, e saudaram enthusiasticamente mais uma vez o passado, porque a agua é tão antiga, que já o diluvio foi... d'agua! A frescura do liquido constipou-lhes os dentes. Reclamaram a presença do snr. de Vitry, _chirurgien dentiste de leurs majestés trés fideles_, e o snr. de Vitry não os ouviu chamar na sua casa da rua do Ouro em Lisboa! Pois se o pensamento se transmitte com a apregoada rapidez parecia que... Em Souzellas viram á porta de uma tenda, invadida por dous meirinhos, o pobre do logista que se lamentava da desgraça a que o ia redusir a penhora. Perguntaram: --O que tem aquelle homem? --Quebrou. E os jornaes de Lisboa a dizerem que o snr. Carvalho Junior inventou um efficaz emplastro para soldar as pessoas quebradas! Ó suprema irrisão! Ó verdadeiro triumpho ganho pelo passado sobre o presente! indubitavel victoria do homem sobre a machina! E vós, illustres bohemios d'uma crusada santa, que ides dilatando a fé e o imperio, dizei-me, sinceramente, intimamente, se este não é o verdadeiro fim da vossa rude jornada! Podeis, ao longo do caminho, ir cantando a velha canção dos actores ambulantes: Veut-on savoir d'ou nous venons, La chose est trés-facile; Mais, pour savoir où nous irons, Il faudrait être habile. Sans nous inquiéter, enfin, Usons, ma foi, jusqu'à la fin De la bonté céleste! Il est certain que nous mourrons; Mais il est sur que nous vivons: Rions, buvons! Et moquons--nous du reste! e eu guardarei ufano o diploma de--_être habile_--porque descortinei a vossa intenção recondita. Até á vista, e felicidade! * * * * * O RELOGIO... É o meu relogio que me dá assumpto para este folhetim... Aqui está o meu pobre amigo, tão esquecido por mim em horas de felicidade, e tão esquecido por todos os homens. Não tenho mais leal conselheiro, companheiro mais dedicado. É uma especie de consciencia que metti no bolço. Quando ella falla, é preciso attendel-a. E todavia, se uma nuvem de desgosto me enoitece o horisonte da vida, se um cuidado me preoccupa, se um sobresalto me traz perplexo, esqueço-te, pobre amigo, não chego a lembrar-me de que te trago conchegado a mim, e de que, obrigando-te ao silencio para que tu não foste feito, sou cruel para ti, porque te condemno a ouvir as palpitações vertiginosas do meu coração inquieto! Não te dou movimento, porque inteiramente te esqueço. Condemno-te á ociosidade, e, privando-te de trabalho, não reparo que é sobremodo doloroso estar a gente triste e calada! Que queres? É o egoismo dos homens; somos todos assim! Temos de partir para uma viagem. Nossa mãe está doente, e chamou-nos pelo telegrapho, porque não quer morrer sem nos abençoar e beijar. Estamos sós, n'um quarto d'hospedaria. Os criados, que não comprehendem o que é a ancia de receber o ultimo beijo materno, deitaram-se, extenuados de trabalho, e nem siquer estão sonhando que teem ordem para nos chamar ao alvorejar da manhã. Nós estamos deitados sobre a coberta, já com o nosso fato de jornada, fumando, fumando, inquietos, rememorando os dias saudosos da infancia, em que nossa mãe, áquella mesma hora, nos ensinava a resar ao anjo da guarda, ou as noites em que acordavamos sobresaltados, e acudia ella a limpar-nos o suor da fronte, e a conchegar-nos a roupa aos hombros. Sobre a commoda arde tristemente a vela que ha já duas horas precisava de ser espevitada. A um canto está a nossa mala, com o chapéo de chuva em cima. Reina um silencio funebre no quarto. Nem ao menos se sente o palpitar do relogio no bolço. Todavia trabalha, mas parece que intencionalmente se reprime para nos não perturbar. N'aquella casa de gente desconhecida, o nosso unico amigo é o relogio. Está vigiando, trabalhando para nós. Consultamol-o. Ainda é cedo... Parece dizer-nos que estejamos tranquillos porque elle não adormecerá. Continuamos pensando. Agora nos lembra a pallidez orvalhada de lagrimas com que nossa mãe se despediu ao partirmos. E ella, estamol-a vendo na heroica resignação das mulheres que sabem sacrificar o coração ao dever; é ella, que do topo das escadas de pedra, anciada, fazendo um esforço supremo, nos diz ainda: --Parte, filho, é preciso! Depois recolheu-se de golpe, porque já lhe faltou a coragem de nos advertir de que eram horas, muito horas... No seu coração de mãe, relogio que só a morte póde emmudecer, havia soado a hora fatal da despedida. E nós partimos, sósinhos, guiados pelo rustico almocreve, sósinhos--com o nosso relogio. Não havia sol. Não poderiamos conhecer as horas pelas sombras das arvores. O almocreve, que se não podia orientar do curso do tempo, porque o céo estava escuro como o nosso coração, ia-nos perguntando de legua em legua que horas eram. Consultavamos então o relogio. «É meio dia»: «Pois olhe, volvia o almocreve, quando é meio dia, e o ar está claro, bate o sol n'aquelle cabeço.» Meio dia! A hora em que nossa mãe se levantava da sua costura para resar comnosco emquanto se não extinguia o echo da ultima badalada no campanario da aldeia! Quem nos disse isto tudo? Foi a memoria? Não foi. Nós iamos entorpecidos pela dôr, não ouviamos horas que nos evocassem recordações, a solidão era immensa, ao longe serras, ainda mais ao longe serras... Foi o relogio, o pequenino coração que ia sentindo por nós. Se até o almocreve, que vive sempre só, no medonho deserto das estradas, faz do cabeço das montanhas relogio, para que o caminho lhe vá fallando e dizendo: «Ante-hontem passaste aqui mais cedo! D'uma vez, á mesma hora, encontraste aqui aquella pegureira, espavorida com medo dos lobos»! Até elle, aquella alma rude, precisa da companhia do relogio! Por isso o vae pendurando de serra em serra, fazendo do granito mostrador, e dos raios do sol ponteiros... Mas emfim nossa mãe está agora doente, moribunda talvez. Que funda melancolia nos está dando a saudade! Facto inexplicavel! A ancia de partir foi vencida pela ancia de recordar. Iamo-nos esquecendo pelo muito que nos estavamos lembrando... Dormem todos no predio; melhor diriamos dorme tudo, porque os mesmos moveis parece conhecerem a noite... Engano! Não dorme tudo. Vela o relogio. Abrimol-o. «São horas de partir!» clama elle. Acreditamol-o como ao melhor amigo. Saltamos do leito. Gritamos pelos criados. Os criados dormiam. Só o relogio velava, é pois certo, porque nós mesmos estávamos atordoados pela somnolencia da saudade... Mais um momento, e não chegariamos a tempo d'alcançar a diligencia. E ámanhã seria já tarde, talvez. Nossa mãe haveria morrido, quer dizer, a nossa falta havel-a-hia assassinado, mais cruel que... a doença. Quando todos dormiam, foi o relogio que nos avisou... É portanto elle que nos recorda os nossos deveres, que nos diz quando havemos de entrar para o nosso escriptorio, que sustenta em grande parte a nossa harmonia domestica, advertindo o criado de que é chegado o momento de ter lustrosas as botas, e a criada de que já vão sendo horas de jantar... Só elle nos falla verdade n'esta epoca essencialmente insidiosa. Insidiosa, é o termo. Pois não está recebendo o principe de Bismark, todos os dias, cartas perfumadas de almiscar e outras essencias irritantes para o systema nervoso? Pois em Palermo, onde canta actualmente uma _prima-dona_ formosissima, não lhe arremessou outro dia aos pés certo admirador despeitado um _bouquet_ que, ao chofrar no palco, rebentou como metralhadora? Querem maior insidia? Chegaram a envenenar as duas coisas mais graciosas da creação, as flores e os aromas; não exijam portanto lealdade na mulher. N'este cataclismo ainda se não afundou o relogio: é a unica tabua que resta aos naufragos da sociedade. O relogio, a despeito da corrupção geral, representa e representará o dever. É por isso que no _Memorial de familia_, de Emilio Souvestre, o avô lega ao neto o seu relogio, escrevendo no testamento esta clausula: «Deixo a Leão o meu relogio d'ouro que nunca se desconcertou durante vinte annos. Quando elle attentar nos ponteiros, que, sempre obedientes ao impulso da machina, marcam _fielmente_ as horas, recordará que a submissão e a observancia são a primeira condição do dever.» O relogio é filho do egoismo do homem, e victima do mesmo egoismo que lhe deu vida. Nos tempos primitivos bastava o _quadrante solar_ para medir o tempo. Paulo e Virginia nem do gnomon se serviam. «São horas de jantar, dizia ella, porque as sombras das bananeiras já lhes dão pelo pé» ou então «É noite; os tamarindos fecham as folhas.» As ampulhetas ou relogios d'areia remontam-se á mais nubelosa antiguidade egypcia. Na Grecia usavam-se os clepsydros, relogios d'agua. «Vós disputaes a minha agua» dizia Demosthenes, phrase que dá a entender que a duração dos seus discursos era marcada por um clepsydro. Meado o terceiro seculo antes de Christo, Estésibius, d'Alexandria, construiu um clepsydro notavel por ser mais complicado que os primitivos, que se limitavam a um vaso com um orificio na parte inferior, por onde se coava a agua gotta a gotta. Depois o homem entrou de profundar os segredos da natureza, e de se querer apropriar de quanto n'ella havia de grandioso. A ideia do relogio era innata á creação. Linneu comprehendeu-o organisando o relogio botanico pelas horas em que certas flores abriam e fechavam. Mas tanto isto é verdade, que os primeiros relogios eram construidos com os primitivos elementos da terra: com o sol, os gnomons; com a agua, os clepsydros; com a areia, as ampulhetas. Onde quer que faltassem recursos artisticos, ahi se podia medir o tempo: no mais alto da serra, com um raio de sol; nas solidões do deserto, com um punhado d'areia, e no deserto do mar com uma gotta d'agua. O espirito humano progredia. Chegou a vez do homem dizer á terra: «Até agora creaste tu; agora quero eu crear;» E trabalhou, e empenhou-se em dispensar o sol, a agua, e a areia; inventou o _pendulo_, conseguindo que a força motora fosse constante. Galileu ou Huyghens, a historia designa-os a ambos, deu este grande passo. Mas ainda não estava completamente resolvido o problema. Era preciso inventar mais. Em viagem, quem, por obra do homem, havia de indicar ao homem o curso do dia ou da noite? O sol ou as estrellas. Todavia nem o sol nem as estrellas as fez elle. Pensou, luctou de novo, e descobriu a molla em spiral, que substitue o peso motor pela elasticidade que tem. Ficaram portanto descobertos os relogios d'algibeira. Podes partir, peregrino; já conseguirás saber nas solidões do teu caminho se a noite vae adiantada! E és tu que o dizes a ti proprio... Realisaste, finalmente, o teu sonho. Conseguiste roubar ao relogio a individualidade que a natureza lhe deu, e reflectir n'elle a tua propria individualidade. Não é verdade que a estructura do coração é uma, e que não ha sentimentos, por mais similhantes que se affigurem, que sejam completamente irmãos? Tambem o relogio tem o seu coração, o seu machinismo, igual em todos, e abri quatro relogios ao mesmo tempo, que difficilmente combinarão na indicação dos minutos. Cada um tem a sua maneira de trabalhar; como cada homem tem a sua maneira d'escrever. E o _estylo_; é a differente maneira de ser. Ahi temos a individualidade homem e a individualidade relogio fundidas n'uma só. É o relogio-homem, e o homem-relogio. O relogio mede as horas; o homem os annos. Eu tenho doze annos, diz a creança; é meia noite, diz o relogio. Um nasceu d'um pedaço de barro; outro d'uma gotta d'agua. A alma é o _pendulo_ do homem-relogio; o _pendulo_ é a alma do relogio-homem. O relogio é o coração que _sente_ o tempo; o coração é por sua vez o relogio que marca as horas solemnes da vida, como diz a trova: A uma hora nasci, Ás duas fui baptisado; Ás tres andava d'amores, Ás quatro estava casado. Pois apesar de tudo isto--do homem a tal ponto haver conseguido identificar-se com o relogio, sendo preciso mergulhar na onda escura da antiguidade para lhe ir buscar a origem, porque elle nada conserva da sua fórma primitiva, apesar d'esta camaradagem leal, que o relogio mantém como dedicado amigo, estamos habituados a tractal-o como escravo, exigindo-lhe a maxima fidelidade quando carecemos do seu auxilio, e despresando-o, obrigando-o ao silencio e á quietação, esquecendo-nos de lhe dar corda como nos esquecemos de calçar as luvas. Por isso é que elle ás vezes, despeitado, adoece, sendo preciso mandal-o ao relojoeiro, porque emfim, como tambem diz a trova: ... amar sem ser amado Faz perder a paciencia. * * * * * ÁS SETE HORAS DA MANHÃ Um d'estes dias aconteceu-me como á rainha Christina da _Joanna do Arco_: tive saudades da Aurora. Levantei-me alvoroçado e resolvi ir procural-a, não aos reportorios, em que eu já vou perdendo muito a fé, mas nas ruas, onde uma pessoa já não póde perder a fé, porque, quando sae, a deixa em casa. E sahi a procurar a aurora, ás sete horas da manhã. Infelizmente não a encontrei senão nos cartazes que annunciavam a _Joanna do Arco_ e diziam: _Aurora, filha do rei Faz-Tudo e da rainha Christina Amina--snr.ª Amelia Menezes._ Ora as auroras dos cartazes são como tudo o que é do theatro: só se vêem á noite. E, como d'ahi até poder vêr amanhecer no palco do theatro Baquet medeavam muitas horas, decidi aproveitar o meu tempo o melhor possivel, vendo tudo quanto apparecia, ouvindo o que se dizia. Vi e ouvi. Na loja da primeira esquina poisava um gallego o seu copo d'aguardente sobre o balcão, com attitude de quem se despedia. Mas, ao contrario dos olhos de quem se despede, que estão quasi sempre humidos, o copo estava enxuto. Tambem podera! É que a aguardente é um combustivel para o carrejão. Quer armar-se pela manhã, porque o seu combate começa quasi logo com o dia. Aquella é a sua polvora;--com ella fará fogo. Depois de abastecido o paiol, não receiará succumbir; e se ás vezes, durante o dia, houver suada refrega, irá beber tantos copinhos quantos cartuxos requisitaria um soldado em lance identico. O que reconheci é que todos pela manhã, quando saiem á rua, o mais que procuram é--a força. Ora hoje a força já não está, como nos tempos pagãos, nos cabellos de Sansão. Hoje a força é a aguardente, a revalesciére, o oleo de figados de bacalhau, o bife, e, apesar de se chamar frango a uma pessoa fraca, a força tambem está no frango. Eu digo isto porque encontrei uma velhinha, tão curvada, que parecia ir procurando já a sepultura, a embrulhar no seu capote um frango que provavelmente fôra comprar ao mercado. Elle, o franguito, ia muito quieto, como se conhecesse que era cobardia luctar com a velhice. Para que podia servir-lhe, sem mais nada, porque ella não levava realmente mais compra alguma? Para deitar á panella, com uma pouca d'agua e sobre uma pouca de lenha, e para depois o comer, ella, que precisa de força para esperar pela morte, ou para o dar a um neto, que está provavelmente com variola, e precisa de força para resistir á morte. Em todo o caso eu desconfio que fosse para o neto, pela pressa que a velhinha se dava. Não olhava para ninguem, e ia encostada ás casas como se quizesse evitar encontros e demoras. Provavelmente levava na algibeira a chave da casa, e a criança havia ficado fechada, em quanto ella fôra comprar ao mercado o franguito com uns restos de dinheiro abençoado que lhe esmolára o anonymo Y. E ia com seu receio de que o neto precisasse d'alguma coisa, e desse pela sua falta, sem se lembrar de que, quando acabar de velhice, ninguem certamente dará pela falta d'ella. Isso não lhe importa. Morrer, morre ella se lhe faltar o neto. É um peso, é, mas a vida, que é tambem um relogio, precisa d'um peso para regular, como os relogios. O peso de mais uma bocca é para ella uma consolação. Naturalmente o rapasinho já ganhava o seu vintem a vender jornaes. Não era tanto pelo dinheiro, que a avó gostava do modo de vida, como pelas novidades, que o neto contava á noite... Tudo isso estava provavelmente em risco d'acabar,--as novidades, a vida do neto e a alegria da avó. Por isso ella ia tão afadigada--coitadinha!--com a sua velhice e com a sua compra... Agora começo eu a encontrar o rancho dos criados, com as amplas cestas enfiadas no braço. De todas as cestas, a que mais me deu na vista foi uma que ia completamente cheia de alfaces. --Familia de grilos! pensei eu. E depois ratifiquei, porque o criado, referindo-se decerto a algum dos patrões, ia dizendo para o companheiro: --E elle está-me sempre a _cantar_! Uma criada dialogava com outra: --Hoje prego-lh'a... --Bem me fio eu n'isso! --Ora tu verás. --Então que fazes? --Não me ha-de tornar a deixar fechada: hoje perco a chave da porta da rua. Eu disse para os meus botões: --Trabalho escusado, o de te fechar a porta! As criadas, como aves de rapina que são, em poucas gaiolas cabem, de modo que têem sempre a cabeça de fóra... Á porta do Anjo cantavam dois cegos o _Noivado do sepulchro_; o povo fazia circulo: Vai alta a lumha na mansão di a morte, Já meia noite com bagar zoou. Não fui philosophando sobre a deturpação dos formosos versos do poeta portuense. Pensei mais nos cegos que no poeta, Deus me perdôe! Como são cegos, não podem vêr distinctamente a prosodia e a ortographia; isso já se sabe. No que eu pensei foi n'este continuo andar divertindo os outros, sem siquer terem tempo de se lembrar de que são cegos. Lá vão chorando na viola as suas maguas, mas tão disfarçadamente, que á gente parece-lhe que estão cantando, e elles estão talvez chorando. Passam no mundo sem vêr o mundo, e isso pouco lhes importa; o que lhes custa mais decerto é não verem o dinheiro... N'uma barraca do mercado, um soldado da guarda municipal offerecia morangos a uma criada de servir. Que delicado amor aquelle, que elles iam mettendo na massa do sangue! O morango é a fructa mais innocente, mais saborosa, talvez a mais agradavel, e este facto, que eu presenciei, depõe realmente muito a favor da educação do nosso exercito. Podiam amar-se com peixe frito, e amar-se-iam assim ha vinte annos; agora o exercito ama comendo morango, fructa que parece haver nascido para se comer de luvas, tão pequenina e rosada é! Quando recolhia, vinham adeante de mim dois pequenitos, com os seus livros sobraçados. Pelo que diziam, deprehendi que entravam n'aquelle dia o exame d'instrucção primaria. --Levas medo? perguntava um. --Eu não. E tu? --Eu! nenhum! E, coitadinhos, iam tremulos como passarinhos quando a gente péga n'elles. --Infelizes! pensei eu, lá vos espera o visco. Sabeis a _origem da palavra districto_? Sabeis _qual a fórma geometrica do reino de Portugal_? Não sabeis? Pobresinhos de vós, que lá ficareis a esvoaçar infructifera e desastradamente no visco da reprovação! Pois então ides fazer exame d'instrucção primaria, ó pequenos scelerados, e não sabeis tudo! Estive capaz de dizer que retrocedessem. Todavia deixei-os ir, entregues ao seu destino, e ás orações das mães, que em sua extrema bondade pensam que hão de vencer todas as difficuldades com padre-nossos. Santas creaturas--as mães! Coitaditos! os pequenos lá foram andando... Subo finalmente, com a cruz da minha ociosidade, a ladeira da rua de Santo Antonio. Ociosidade digo, se bem que o meu animo não ande nunca tão despreoccupado, que não chegue a lembrar-se de que o domingo é o dia do folhetim. Por conseguinte, eu, jornaleiro do jornalismo, descanço do labor quotidiano procurando... assumpto. E sabendo eu que ha pessoas tão felizes que ás vezes encontram dinheiro pelas ruas, reputo-me tão infeliz que, sem achar dinheiro, poucas vezes encontro assumpto. Todavia d'esta vez até na rua de Santo Antonio o encontrei! Já agora quero ser verdadeiro até ao fim, e fallar-lhes d'um quadro que estava em exposição na loja dos snrs. Martins & Peres, e que havia sido comprado por um cavalheiro de Villa Nova de Gaya. Imaginem o mais formoso idyllio d'este mundo, o verdadeiro consorcio da poesia com a pintura, e terão o quadro que se intitulava a Morte d'um passarinho, copia de Eugene Lejeune. É n'aldeia, e suppõe-se provavelmente que n'um largosito, onde ás crianças costumam brincar. Qualquer d'ellas havia engaiolado, no tempo, um ninho de melros, de que só escapara um. Vivia á principesca o melro, tractado pelos pequenos, que muitas vezes se esqueciam do velho cão, para encherem os comedouros á ave. Mas, pois que até os principes morrem, o melro morreu. Era preciso fazer um enterro condigno, e tractou-se d'isso. Emquanto uma criança abre a cova e outra sustenta uma cruz de pau, formam as restantes o funebre cortejo do passarinho. O feretro vae deposto n'um carrosito de pau, o melhor que se póde arranjar. Umas pequenitas tiram pelo carro, em direcção á cova, que se está abrindo. Apoz o feretro vae um rapasinho lacrimoso, suspendendo a gaiola vasia, e a par do rapasinho o cão, tão triste como qualquer das crianças. O quadro é isto,--e o mais que se não póde dizer e constitue a alma da pintura.--Ainda não vi assumpto tão ligeiro mais habilmente tractado, d'onde se infere que, se Eugene Lejeune tivesse visto os meus dois rapasinhos, que iam fazer exame, com os seus livros, o seu medo e a sua esperança tambem, haveria desenhado um quadro digno de figurar a par da _Morte d'um passarinho_. * * * * * Á MEZA DO CHÁ (POR OCCASIÃO DA VISITA DO SHAH DA PERSIA Á EUROPA) --Estou summamente aborrecida, primo! --Confesse, o que não é nada lisonjeiro para mim! --O primo não me julga divindade para me fazer o sacrificio das suas palavras... d'oiro! --Perdão, é que eu estava provando o chá. --Cuidado. Então não escalde a eloquencia. Ainda se não póde tomar. --N'esse caso... --N'esse caso? --Esperemos que o chá arrefeça. --Agora é impossivel! --Impossivel? --Sim, porque o shah já não está na Russia. --Bravo! A prima faz espirito! Repta-me; atira-me a sua delicada luva _gris-perle_. Está aceite. Conversemos. --Pois conversemos. --Dizia eu... --O que dizia o primo? --Nada. Eu ia dizer que esta chavena é do tamanho da Europa. --Que disparate, primo! --Perdão, é que tem dentro o shah... * As mães dos primos, exportando maledicencia e importando fatias pela bocca: --Lá estavam hontem no theatro! --Estavam. Elle e Ella. É gente da primeira sociedade... --Ora o que tu quizeres, Gertrudes! Fidalguia que sahiu da quinquilheria e do fundo d'um chapéo. Elle tolo: ella filha de criada! --Mas fazem figura... O filho mais novo, que estuda geometria no lyceu: --Figura de... cylindro. As mães: --Cala-te, Luizinho! --Deixa fallar o rapaz. Eu não entendi o que elle disse, mas póde ser que tivesse graça... --Pois eu estou pelo meu dito. Parecem da primeira sociedade. --Parecem, começando pelo fim. * Um dos pequenos: --Ó mamã, então sempre vamos para a Foz? --O papá vae amanhã alugar casa. O pequeno sahindo da sala a correr: --Ó Jucá! o papá vae amanhã alugar casa! As mães: --Não ha remedio, Leocadia, eu tenho uma filha. É preciso vêr se tractamos de casal-a. --Que pressa! --Tenho cá uma rasão; não digo bem, temos cá uma rasão. --Aquillo em Hespanha está mau... --Que tem a Hespanha com tua filha? --É que meu marido anda com a mania de comprar fundos hespanhoes, e, se a Hespanha fizer bancarota... --Percebo. O marido que se aguente, e fique com a mulher sem dote... --Tal e qual. Nós cá... pensamos assim. * O pae da menina lendo o _Jornal do Commercio_, e interrompendo-se para chamar o sobrinho; --Ó Arthur? --Meu tio! --Tu já leste esta biographia do shah da Persia? --Eu não, meu tio. --Pois olha que tem sua graça! Lendo pausadamente: «Mal subiu ao throno reformou o shah os costumes do palacio, redusindo as despesas do serralho a limites mais equitativos. Seu tio, a quem succedeu, como já indicamos, tinha nada menos de quinhentas mulheres, das quaes houve cento e um filhos e cento e sessenta filhas, o que constitue regular prole. «O monarcha actual tem unicamente quinze esposas e é pae só d'uma duzia de filhos. Na sua viagem levou algumas d'aquellas até S. Petersburgo; faziam parte da criadagem e costumavam alojar-se com os cavallos e os palafreneiros; na capital da Russia, o shah mandou-as embora, obrigando-as a voltar para Téhéran.» As mães poisam as chavenas e dão attenção. O pae poisando o jornal: --Pois, senhores, sempre é um shah muito forte! As mães: --Ah! ah! A menina: --Ó primo, vamos fazer _paciencias_ depois do chá? --Como a prima quizer. O pae: --Deixem a paciencia para o shah: com quinze mulheres! * O primo, levantando-se da mesa, abre a carteira e começa a escrever para evitar que a prima o force a ir fazer paciencias. A mãe do primo: --Lá está o rapaz a tombos com os versos! --Aquillo não lhe faz mal nenhum! --Sim, mas é que já tem impresso tres volumes á minha custa e estão para lá as aguas-furtadas cheias de livros. A prima levantando-se surrateiramente: --São para mim. Não dá o braço a torcer, mas ama-me com toda a certeza. O primo fechando a carteira e erguendo-se: --Com toda a metrificação. --Que dizia, primo? --Que fiz um milagre. Ha um mez que não faço versos, e escrevi tres quadras com toda a metrificação recommendada nas poeticas! --Póde saber-se qual foi a inspiração? --Oh! uma loucura, prima, uma extravagancia minha. A menina, á parte: --São a mim. Não se atreve a dizer-m'o! Em voz alta: --Diga sempre... --Olhe que não valem nada... --Mas porque não lê? São... --A mr. Du Barry. --A quem? O primo está-me enganando! --Acredite. São a mr. Du Barry, author da _Revalescière_. A prima ainda desconfiada de ser a inspiração; --Ora leia! --Ahi vão: Meu Deus! eu vi suar os bons pedreiros A encastelar as pedras calcinadas Com que armaram alfim uns pardieiros, Pendurados de rochas empinadas. Certo dia nefando a tempestade Rugiu, rolou, desceu em turbilhões, Lascando a rocha, arremeçando a herdade Do vendaval aos rábidos baldões. Então, ó Du Barry, obreiro ingente, Que reconstrues as raças com farinha, Pensei em ti, que vês morto o doente Quando a _R'valescièr_' salvado o tinha! A prima: --Ora! O primo: --Du Barry é um grande homem! A prima agastada: --E o primo um grande ingrato! * A mãe do primo; --Ó mano, que diz a folha do que vae por Hespanha? --A folha diz que os internacionalistas descubriram agora uma nova especie de banhos. --Uma nova especie de banhos?! --Já havia os do mar, que estão desacreditados desde que muitas meninas vem de lá solteiras. Havia os de chuva, que já não faziam effeito a ninguem. Havia os russos, e ha-os agora de petroleo... --De petroleo! --Mana e senhora--de petroleo, diz a folha. A mãe do primo: --Aquelle meu rapaz metteu por força a cabeça em algum banho de petroleo! * A prima: --Então vamos fazer _paciencias_? Elle: --Ó prima, eu estava com vontade de fazer mais versos. Ainda tinha tenção de cantar esta noite o dr. Paterson, author das pastilhas americanas, e o Melchior Sola, fabricante de lumes promptos. Dois grandes homens, prima! Um dá a saude; o outro a luz. A pastilha é o colorido das suas faces; o phosphoro é a alma do meu charuto. A prima come uma pastilha e sente-se forte; eu acendo um charuto e sinto-me poeta. Procurando o chapéo: --Ó Paterson! Ó Sola! Ó pastilha! Ó phosphoro!... A prima: --Então vae-se embora? O primo, já do patamar: --Vou ao theatro ainda. A mãe do primo: --É o que eu digo, é: o rapaz toma banhos de petroleo! * * * * * S. JOÃO (NO DIA 21 DE JUNHO DE 1873) S. João é o Anacreonte do christianismo. Eterna mocidade, inextinguivel alegria, olhar brilhante, faces rosadas, cabellos revoltos, sorriso nos labios... É o das canções, dos bailaricos, dos amores, dos mysterios. Na sua noite de tal modo sabe distribuir pelas alamedas os claros-escuros do luar, que parece haver uma sombra para cada segredo, um reflexo para cada alegria. A festa é da mocidade. Suspira a guitarra debaixo do arvoredo e a musica d'aquella noite tão docemente estonteia as raparigas, que chegam a perder o seu annel de noivado entre as folhas do serpão... Andam no ar derramados uns effluvios que parece darem á gente uma indolencia voluptuosa. É sentar-se na relva, ouvir a guitarra, cantar, rir, e a noite lá se vae esquivando por entre os troncos das alamedas... As trovas tambem contam que elle, o precursor, vivia no desleixo da felicidade. De subito o colhia o somno, quando a aurora vinha descendo á terra, para reanimar as flores pendidas durante a noite... S. João adormeceu Nas escadas do collegio. Depois, quando acordava, corria a procurar a sua felicidade ainda absorto nas visões do sonho... O S. João, d'onde vindes Pela calma, sem chapéo? Outras vezes, porque o somno era mais breve ou o sonho era maior, despertava pouco depois de ter adormecido, e as moças, que ao entreluzir da manhã abriam as janellas do casal, iam-lhe perguntando de casa a casa: O S. João, d'onde vindes, Que tanto estaes orvalhado? Viveu rodeado de mocidade, das alegrias da primavera e das maguas dos vinte annos,--maguas que são fecundantes como os chuveiros d'abril. Ora as moças lhe chilriavam em torno as alegrias dos seus desejos: S. João, as moças hoje Vos pedem que as caseis; ora o procuravam para que lhes désse aquellas flores mysteriosas que trazem allivio a penas d'amor: No altar de S. João Ha um vaso d'açucenas, Aonde vão os namorados Dar allivio ás suas penas. Perseguido pelas feias, que noite e dia lhe pediam noivo: S. João, todas as feias Vos pedem um casamento, corria a esconder-se nos rosaes: O Baptista no deserto Entre as flores escondido, certo de que ellas não ousariam, ellas,--as feias!--defrontar-se com as flores para encontral-o. Poucas vezes, sim, mas lá vinha uma tristeza ao coração, quando alguma voz ia cantando na estrada: Por causa de pretenções Mulheres que não farão? e então--ó horror!--receioso da colera das desilludidas, e do resentimento das feias, procurava encantal-as a todas, e fazia brotar a agua da sua fonte de prata, para que umas e outras viessem narcisar-se ao espelho... S. João por vêr as moças Fez uma fonte de prata. Todavia umas e outras, astutas por serem bonitas, astutas por serem feias, fugiam ao logro, e não levavam a sua bilha á fonte, para que todo se matasse de aborrecimento o santo... As moças não vão a ella, S. João todo se mata. Estava porém escripto no livro dos destinos que lhe viesse a queimar a vida o fogo com que elle brincava... Uma noite havia festa nos paços sumptuosos d'Herodes-Antipas. Em derredor da aurea mesa estava reclinada Herodiades, a libertina que se rendera ao amor do irmão de seu marido, e Salomé, sua filha, e os cortezãos que libavam vinhos deliciosos em taças reluzentes de pedraria. Não longe, no carcere, estava João Baptista, sepulto na silenciosa solidão das cadeias, porque elle havia levantado a sua voz contra a incestuosa união do tetrarcha e da barregã illustre, sua cunhada. Depois do festim, Salomé tomou a harpa e cantou e bailou na presença de seu tio. Quiz elle galardoal-a e perguntou-lhe o que lhe aprazia. Então Herodiades inclinou-se ao ouvido da filha e a moça respondeu: --A cabeça do preso. E continuou a tanger na harpa dos seus cantares. Momentos corridos pendiam d'um taboleiro de prata, na sala do festim, os negros cabellos da inanimada cabeça. E Salomé bailava, e Herodiades sorria, e os cortezãos applaudiam. No paço tudo era alegria; na rua iam cantando melancolicamente as raparigas: Por causa de pretenções Mulheres que não farão? Fizeram cahir S. Pedro, Degolaram S. João. Mas, ó prodigio! os olhos, apesar de mortos, tinham brilho, e nas faces inertes havia um raio de sol! Era o brilho da eterna mocidade, o reflexo da alegria eterna... E nunca ninguem mais chorara o precursor, porque o cutello do algoz não lhe roubou a grande alma que enche de luz e felicidade a noite d'hontem e o dia de hoje. * * * * * JUDAS NO PLURAL (PASCHOA DE 1873) Foram-se alguns mas ainda ficaram muitos. Ha-os de todas as idades, de todos os feitios e de todos os sexos. A vida seria um perpetuo sabbado d'alleluia se cada homem e cada mulher tivesse a consciencia do que é. Mas o grande erro do nosso barro é o querermos enganar-nos a nós mesmos. D'este erro nascem todos ou quasi todos os maus sentimentos,--a vaidade, o orgulho, a perfidia... Na perfidia é que bate o ponto,--da perfidia é que hoje se tracta. Queimou-se hontem pelas ruas a figura do apostolo traidor, e a maioria das pessoas que eu encontrei tinha as faces radiosas d'alegria e não denotava arder na fogueira interior em que muitas vezes nos queimamos,--o remorso. Tudo por não nos querermos conhecer, tudo por não descermos ás profundezas de nós mesmos a tactear aquella costella de Judas que herdamos de nossa mãe Eva, quando no paraiso terreal seduzia o esposo com blandicias conjugaes para tental-o a comer do fructo prohibido. No pomo da tentação foi toda a perfida maldade da fingida esposa. Adão comeu-o, digeriu-o, entrou-lhe muito da substancia na massa do sangue. Depois o sangue do primeiro homem correu para os grandes vasos da humanidade e levou comsigo alguma coisa da fatal maçã, alguma coisa de Judas. Succedeu porém que no corpo do discipulo traidor entrou maior dose do veneno; isto significa simplesmente que elle era mais traidor do que nós e não que, por elle o ser, não o sejamos tambem. Somos! Se somos! O que nós temos a nosso favor é a civilisação do nosso tempo e a suavidade dos nossos costumes. Judas fez uma acção má por maneira peior do que a acção. Nós fazemos o que elle fez,--mas sabemos fazel-o. Elle, com toda a rudeza dos seus babitos de pescador, envenenou com a sua traição a mais doce formula de exprimir a amisade,--o beijo. O beijo ficou envenenado, e tanto assim é, que desconfiamos sempre do beijo, excepto quando elle desabrocha em labios de mãe. É que o coração materno, profundo como o mar, é inviolavel como elle: rejeita qualquer corpo extranho á pureza dos seus sentimentos. Feita esta excepção, a primeira e unica,--o beijo continua a estar envenenado. O beijo tem sempre um fim, o beijo é simplesmente um instrumento. Parece impossivel que uma coisa que dura tão pouco possa fazer tanto mal, mas faz. Ah! é de noite, n'um quintalsinho de roseiras? Lá ao longe ha montes, recortados por pinheiraes, e pinheiraes illuminados pela lua cheia? Julieta está entre as suas roseiras, com os cabellos revoltos, o seio offegante? Um fremito! Foi uma folha que cahiu? Ah! não foi,--foi um beijo que poisou. Estás bem servido, desgraçado! Romeu piegas! esse beijo coou-te ao sangue a febre do casamento. Ó desgraçado!... É uma noite d'inverno. A chuva é torrencial. A ventania abala as janellas. Tu estás sentado ao fogão, com o teu _robe-de-chambre_ e o teu capote, com os pés no _fender_ e a cabeça mettida dentro do barrete de velludo preto. Leste o teu jornal, e ficaste somnolento, ou fosse que o jornal te adormecesse ou que o calor te enervasse. Chegaste a um d'esses estados de espirito em que já se não pensa em nada; e se se pensasse em alguma coisa, era decerto em dormir. N'isto ouves entrar na sala tua mulher. Abriste os olhos, conheceste-lhe o andar e deixaste cahir as palpebras. Ella vem, pé-ante-pé, debruçar-se do espaldar, bater-te uma palmada no hombro, e dizer-te maviosamente: --Já são horas de me vestir, filho? Estremeces, como se te rebentasse aos pés uma bomba Orsini. --Vestir? --São nove horas. Eu mandei vir a carruagem ás onze. --Ó filha, mas eu estou constipado, não posso comigo, tem paciencia, filha, mas com esta noite, não vamos, não podemos ir!... Atchi, atchi... olha como eu estou constipado! --Ahi estás tu com as tuas phantasias, com a tua negregada imaginação! Dir-me-has ámanhã se peioraste com o baile. Imagina que desces as escadas muito embrulhado no teu capote, que te mettes na carruagem, que te deixas enterrar nas almofadas, que chegamos finalmente, que entras nas salas onde as luzes conservam uma temperatura confortavel, que o conselheiro e o doutor esperam por ti, que fazem a sua partida de voltarete, que dás seis codilhos e um geral, que vaes tres vezes á casca... --Tudo isso é verdade, filha, mas hoje não póde ser. Estou indisposto, estou bruto, deixa-me dizer assim, estou bruto. Hoje, se jogasse o voltarete, não ia á casca, dava á casca com toda a certeza. Ella, que n'esta esgrima conjugal tem guardado para o fim o bote decisivo, continua um pouco mysteriosamente, cada vez mais debruçada na cadeira: --Pois sim, tu não queres ir... não vamos... por mim pouco me importa. Mas lembra-te que não jantaste ainda ha duas horas, que n'esta sala faz um calor excessivo, que o medico... O marido, aprumando-se e esgazeando o olhar: --Que o medico? Ella perplexa: --Deixemos isso. Vamos ao baile, filho, anda vestir-te... Elle: --Ó Nini, mas que disse o medico? Não me enganes... Este fogão... este maldito fogão... eu bem sinto que isto é calor de mais. --Mais uma rasão para o evitares. --Ó filha, ó Nini, mas passar agora para o frio! --Não passes já: arrefece primeiro. Em todo o caso livra-te do fogão, homem, livra-te d'este fogão, que hade dar cabo de ti... Bem o disse... --O medico? --Sim, o medico. --Que disse elle, Nini? --Que fizesse por arrancar-te ao fogão, porque este calor, depois de jantar, bem sabes que o teu temperamento... --Ah! Já sei! A apoplexia! E n'isto cae dos labios da esposa á face sanguinea do marido um beijo muito mais venenoso do que um frasco d'acido prussico. E que a esposa vende a tranquillidade do marido pelos trinta dinheiros do baile. E as creanças, quando são inquietas como borboletas, e têem cabellos loiros como o sol, e olhos azues como o céo, que graciosos Judas que ellas são! Prohibe-lhes a gente que bulam no _bouquet_ que poisamos em cima da mesa. E ellas a estenderem sorrateiramente a mão... --Menina! --Menino! --Não bula ahi. --Deixe estar isso. E d'ahi a segundos lá torna a creança a mexer com a mãosita, como um beija-flôr que estivesse abrindo uma aza para ir oscular uma rosa. --Tu apanhas! --Espera ahi! E a creança, em vez de saltar ao _bouquet_, salta ao nosso collo, e afaga-nos, e pede-nos meigamente que lhe deixemos vêr o _bouquet_, que ella só o quer vêr, que só o quer cheirar. Beija-nos! O almasita de Judas em corpo de cherubim! Tu não sabes que o beijo foi a arma de Judas, mas o que tu já advinhaste é que o beijo é um veneno com que a gente facilmente mata uma opposição qualquer. Os governos ainda se não lembraram d'este grande expediente, mas estou certo de que mais tarde ou mais cedo será incluido na longa lista das tricas parlamentares. Supponhamos que um ministerio não tinha maioria. Um dos ministros entrava na camara, e estava fallando vehementemente um dos maiores oradores do parlamento. As accusações eram energicas, o ministro sentia-se abalado no pedestal do governo, via cavar-se-lhe aos pés o abysmo do _nunca mais_. Era preciso uma ideia salvadora, um pensamento luminoso. Pois bem. S. ex.ª o ministro levantava-se doidamente apaixonado, e corria a beijar freneticamente o orador da opposição. E s. ex.ª o deputado, affrontado d'aquella ancia de beijar, cahia na cadeira amavelmente asphyxiado, e afastava com um gesto carinhoso s. ex.ª o ministro. Já se tentou rehabilitar o beijo, mudando-lhe o nome. Começou-se a dizer osculo, não por ser mais elegante a dicção, mas por ser menos conhecida. Logo porém que se veio a saber o que era o osculo, entrou-se a desconfiar tanto do osculo como do beijo. Diziam os namorados: --Acreditas o juramento? --Não acredito. --E se o sellar com um osculo? --Oh! não acredito. Não póde haver amor exdruxulo. Nós não rompemos por entre a multidão, asperamente, apartando os grupos, para ir vender com um beijo; vendemos e compramos com um beijo, negociando com elle serenamente. A grande culpa de Judas foi falsificar a moeda e lançal-a falsificada na circulação. Nós não falsificamos, é verdade, mas negociamos com dinheiro falso. Por isso hontem, quando a alleluia passava festivamente de torre em torre, e estralejava nas ruas, e os Judas de palha iam arder estoirando com grande applauso do rapazio, eu ouvi soar a meus ouvidos a grande voz da Rasão, d'esta Rasão que se escreve com letra maiuscula por ser da escola do Infinito, e dizer: --Se só os que não fossem Judas devessem acender o rastilho, estes monos de palha, que tu ahi vês, não arderiam jámais. * * * * * HISTORIA VELHA Sou muito novo para não ter esperanças e muito velho para deixar de sentir o suave doer da saudade. Espero no futuro, na baixa das inscripções, nas bancarotas, nas dictaduras, espero em tudo o que nós podemos ter de bom em Portugal, e não posso deixar de lembrar-me saudoso do passado, das suas crenças, das suas obras, uma das quaes somos nós, das suas tolices tambem. Se ponho olhos no futuro, refujo de medroso para o passado e apraz-me então conversar com os homens que foram, os quaes me contam coisas maravilhosas e graves. Ora succede tambem que muitas vezes me fico pasmado diante do estendal das relamborias semsaborias das sociedades extinctas, mas nem por isso deixo ainda de querer ao passado, que não nos deu os barões, nem os penicheiros, nem as companhias de caminhos de ferro, innovações mil vezes mais causticantes que as supraditas semsaborias. Revivam pois as sinceras crenças e as ingenuas tradições de nossos avós, e conversemos d'elles e d'ellas emquanto a sociedade moderna applaude o espectaculo de si mesma. O primeiro varão respeitavel que temos a conversar chama-se Antonio Cerqueira Pinto, _cidadão da cidade do Porto e academico supranumerario da academia real da historia portugueza_, o qual escreveu e estampou a _Historia da prodigiosa imagem de Christo crucificado que com o titulo de Bom Jesus de Bouças se venera no lugar de Mathozinhos, na Lusitania_. Posto isto como apresentação indispensavel, vamos direito ao assumpto e oiçamos o Cerqueira n'uma das paginas do seu livro: «Consiste pois o principal d'este admiravel successo, em que voltando S. Thiago de Hespanha a Jerusalem, com os sete discipulos, que na provincia interamnense da Lusitania convertera, e havendo triunfado em martyrio n'aquella mesma cidade, em que Christo remira o mundo, emprehenderam os mesmos discipulos, tanto por anterior recommendação do santo, como por divino impulso, reconduzir o seu sagrado cadaver a esta parte, para ter o jazigo, na em que fôra missionario apostolico. «Embarcados com elle em Jope, porto maritimo da Palestina, e navegado em breves dias para o Occidente, o Mediterraneo, costeando pelo oceano a Lusitania, com rumo direito a Galiza, parou como em calmaria a embarcação, á vista do venturoso logar de Mathosinhos, não por faltar-lhe o vento, pois vinha celestialmente equipada, e tanto de divinas auras favorecida, que lhe levou brevissimos dias a derrota sendo d'extensão bem dilatada; mas por permittir o céo, que n'esta escala tivesse S. Thiago por refresco uma salva real, como teve na conversão do copioso gentilismo, que n'aquella praia se achava então celebrando os regios desposorios referidos (uns que se celebravam n'esse dia em Mathosinhos) em justas, torneios, lanças, e outros applausos ao antiquado uso, que n'estas partes haviam introduzido os primeiros adventicios dominantes gregos. «E sendo n'este festejo um dos jogos celebrados, o a que chama o _Flos sanctorum_ antigo de Alcobaça, _andar bafordando_[3] porque os cavalleiros na praia em concertados meneios entravam pelas candidas espumas, que ao mar costumam servir de crespo bordado ao ceruleo adorno, com que gallea; succedeu por alto mysterio, que do noivo o cavallo desperando do domante freio os regulados preceitos, se arrojou ás ondas, intrepido, com tanto fogo, que julgavam magoados os circumstantes ao cavalleiro desgraçadamente perdido; porém elle prodigiosamente venturoso chegou sem perigo a abordar á nau, em que com os seus discipulos estava o corpo de S. Thiago, e lhe serviu de segura tabua a salvar-se, e a todo o logar do naufragio gentilico, por ir Deus assim dispondo aquelle especioso terreno para soberano deposito da veneravel imagem de Christo Crucificado. «Junto da nau, entre os confusos assombros de vêr-se na fluida inconstancia das anfuas, como em terra firme, seguro, notou e advertiu o cavalleiro, que não só chegava de maritimas conchas matisado: mas que no mesmo perigo achava quem o livrasse do susto na milagrosa exposição do Mysterio e instruido nos da Fé, recebido o sagrado baptismo por um dos santos discipulos administrado, impresso bem tudo no seu conceito com prazer inexplicavel convertido, e por aquelle sacramento illustrado; advertido finalmente do mysterioso final, que as conchas haviam de ficar representando feito missionario apostolico, triumphante da culpa, e dos mares para elle já todos de graça, voltou em airosa carreira pela liquida torrente ao mesmo sitio, d'onde tinha sahido naufragante.» Não cuidemos de saber como Sam Thiago _se refrescava com uma salva real_, nem commentemos os pasmos do cavalleiro ao vêr-se _matisado de maritimas conchas_. Esmiuncemos que _regios desposorios_ eram esses que se celebravam na praia da villa de Mathosinhos. Parece que a palavra _regios_ se não quer referir unicamente ao fausto das bodas, que foram sobremodo lusidas como inculca o citado _Flos sanctorum antigo de Alcobaça_, cujo texto vem citado no _Catalogo dos bispos do Porto_[4] , de D. Rodrigo da Cunha, a pag. 20, part. 1.ª «... e a Cavalaria, e as Donas, e a gente moita, e cada um fazia o que sabia, que pertencia á boda: e os huns lançabão ao tavoado, e os outros bafordabom, mas entre estes que bafordabom, bafordava hi o noivo.» Hoje não se ostentam nas bodas proezas de cavallaria: os convidados esgrimem contra os taboleiros, e os noivos esperam que os convidados devastem os podins para se verem livres dos importunos parasitas de luva branca. Mas, tornando ao conto, escreve ainda D. Rodrigo da Cunha: «Não é só o _Flos sanctorum_ de Alcobaça o que faz menção d'este milagre, que deu occasião a se converterem tantas almas n'este nosso Bispado, e em lugares tão visinhos ao Porto. No Breviario antigo da Sé de Oviedo, se acha um hymno, que se costumava a resar na festa de Sanct'Iago aos 25 de julho, em que claramente se faz allusão a elle. Dizem os versos do hymno: Cunctis maré cernentibus: Sed á profundo ducitur; Natus Regis submergitur; Totus plenas conchilibus. Chama ao cavalleiro, que se recebia filho d'El-Rei, porque sem duvida o seria d'algum regulo, a quem os Romanos soffriam estes nomes de dignidades, em quanto lhe não impedia a subjeição a seu imperio.» Como d'aqui se deprehende, conjectura-se nas passagens citadas a fidalguia do noivo, _natus regis_, e por isso adjectivaram de _regias_ as bodas. Não obstante divergem as opiniões sobre a qualidade e nome dos nubentes. Não os nomeia o _Flos sanctorum_ do mosteiro de Alcobaça, copiado por D. Rodrigo da Cunha e outros doutos varões, com quanto circumstanciadamente conte do milagre. D'esta lacuna procede todo o embaraço, porque o padre frei Luiz dos Anjos os nomeia Cayo Carpo, natural da Maya, e Claudia Loba, do Porto; e D. Pedro Seguino, bispo d'Orense, escreveu que o cavalleiro se chamava Rivano e a dama Valeria. Ao noivo uns o dão como _liberto_ de Augusto Cesar, e outros como filho d'algum poderoso regulo das Hespanhas. Ora a nobreza da mulher, suppõe Cerqueira Pinto,--que persiste em chamar a elle Cayo Carpo e a ella Claudia Loba,--que era das primeiras e melhores: «no conselho da Maya, que he, e foy sempre contiguo á mesma Cidade, (do Porto) e onde está situado o lugar de Matosinhos, havia cavalheiro capaz de casar com mulher daquella nobre familia...» Pelo que se vê, a villa de Mathosinhos era alfobre de preclara nobreza em que floreciam varias fidalguissimas Claudias. Hoje, se Claudias ha em Mathosinhos, trazem saia pelo joelho e seguram vigorosamente contra a ressaca as esgrouviadas banhistas que vão molhar no mar os nervos doentes. Ó decadencia das Claudias, e outras! Não vae o nosso amor pela antiguidade até averiguarmos cabalmente o verdadeiro chamadoiro e nascimento dos noivos de Mathosinhos, e até, para conciliarmos os consultissimos historiadores, não temos duvida em matrimoniar Valeria com Cayo Carpo e Rivano com Claudia Loba. D'esta maneira, ficariam por igual comprazidos os chronistas que divergem sobre o nome do cavalleiro que sahiu ao mar, e da noiva que ficou em terra. Do prodigio resultou a total conversão do logar de Mathosinhos á fé catholica, e, segundo diz Cerqueira Pinto, de toda a nobreza do Porto e da Maya, que estava presente. Tambem lembra o historiador que o nome de Leça, dado ao rio, poderia derivar da alegria devida á aproximação da nau que conduzia S. Thiago ou á plenaria conversão d'aquellas gentes. É pois certo que o logar de Mathosinhos, onde o leitor descuidosamente passeia o seu aborrecimento em mezes de banhos, é por mais d'um respeito celebre, porquanto no 1.º de abril do anno de 44 se operou o prodigio que vimos historiando, e d'ahi a oitenta annos aportou áquella praia a imagem cuja historia Cerqueira Pinto particularmente escreveu no livro de que havemos extrahido estes apontamentos. A par da tradição religiosa, que deriva das bodas de Cayo Carpo com Claudia Loba, corre a tradição nobiliaria, como se os homens, ciumentos das glorias da Igreja, quizessem sequestrar-lh'as em grande parte para satisfazer sua vaidade. Conhecel-o-ha o leitor, se me quizer acompanhar a Benavente, districto de Evora, onde encontraremos n'uma das torres da matriz as armas dos condes d'aquelle titulo, as quaes armas representam cinco conchas em escudo liso. Este é o ponto em que a tradição religiosa prende com a tradição nobiliaria. Do cavalleiro de Mathosinhos, predestinado para tamanhos prodigios, qual foi o de galopar por sobre as ondas muito melhor do que nós pelas nossas estradas, procede a familia dos Pimenteis, de Traz-os-Montes, aos quaes Pimenteis appellida de nobres um chronista. Não sei se todos os ramos de Pimenteis teem iguaes fóros de nobreza e motivos de prosapia. Os Pimenteis de que eu descendo foram homens honrados e obscuros, que nem com titulos litterarios se podem abonar, o que prova que os meus antepassados tiveram mais juizo que eu. Do fidalgo _matisado de maritimas conchas_ procedeu João Affonso Pimentel, senhor de Bragança e primeiro conde de Benavente, o qual as tomou por brasão assim como pudera adoptar o corcel miraculosamente subjeito ás rebeldias do oceano. Consta tambem que as mesmas armas estão gravadas na torre do castello de Bragança, mas se o leitor não as vir lá, nem na torre da parochia de Benavente, fique sabendo que eu fui muito menos feliz n'estes vagalhões de grossa erudicção do que o cavalleiro da chronica nos mares aparcellados da praia de Lessa. * * * * * THIERS Mac-Mahon veio substituir Thiers na presidencia da republica franceza. Alguem disse: Acabou a dictadura da palavra; começa a dictadura da espada. E porque? Porque Mac-Mahon é um general francez, e Thiers é um estadista e um historiador. Porque um deu os primeiros passos da vida na Escola militar de Saint-Cyr, e o outro na Academia d'Aix. Porque um saiu da escola para o campo de batalha, e o outro saiu da Academia para a lucta politica. Porque um começou a militar no cerco d'Anvers ás ordens do general Achard, e o outro estudou o plano das primeiras campanhas no gabinete do velho Talleyrand. Dictadura da palavra e dictadura da espada! Vejamos. O estadista e o historiador foi chamado a governar a nova republica franceza depois da sangrenta guerra franco-allemã. É sempre difficil dirigir uma creança, mórmente uma creança, cujo berço fluctua sobre sangue nas ruinas d'um paiz inteiro. O sangue era francez: as ruinas eram as da França. O vencedor era a Allemanha. Pela eterna rivalidade que reina entre as duas nações, a França julgava-se duas vezes vencida por succumbir ás mãos da Allemanha. Thiers foi o medico chamado á cabeceira da França no momento em que as feridas do corpo nacional sangravam dolorosamente sobre as ultimas purpuras encontradas nas Tulherias. Comprehende-se o que seria governar assim. Vêde bem que exforço titanico não requer subir ao Vesuvio, quando elle muge em convulsões precursoras d'erupção, debruçar-se á cratera, despreoccupado da escuridão sinistra que fecha a montanha, escutar o surdo ruido das entranhas de pedra agitadas pelo fogo, sentir affluir ao enorme local d'aquella pyra enorme o turbilhão vertiginoso das lavas, e suster com um dedo a massa candente que irrompe de dentro, e reprimir com uma palavra a torrente impetuosa d'um niagára de chammas. Assim estava a França: isto fez Thiers. Foi elle, o dictador da palavra, que provou ao mundo que para os cadaveres das nações como para os cadaveres dos homens tinha a physica descoberto o galvanismo. Foi elle que estendeu o seu braço obstando a que a plebe desenfreada sepultasse no grande tumulo das nações que foram o cadaver da França, amortalhado nos fragamentos das suas esphaceladas bandeiras. Apagados os fogos sinistros da batalha, ergueram-se vorazes os fogos da Communa. Depois da derrota,--o incendio; depois da guerra extrangeira, a guerra civil. Era preciso combater a França para salvar a França, porque o peior inimigo da França era a França. A derrota tinha alastrado de cadaveres o chão. Eram as cinzas dos heroes, que se bateram com o eterno denodo francez. Cumpria veneral-as no mais sagrado culto devido aos que perecem pela patria. Mas o facho da Communa tentava queimar em Paris os corpos dos heroes nas fogueiras que no Industão espalham no ar as cinzas das viuvas brahmines. Era uma profanação immensa. Cumpria respeitar a desgraça da patria, salvar ao menos a quilha da nau desarvorada, que desde tempos immemoriaes estava costumada a despejar as suas hostes conquistadoras nas praias da Europa inteira. Pois bem, Thiers estava ao leme, e queria morrer abraçado á ossada do seu navio, quando desesperasse de salval-o. N'estes momentos de suprema agonia todos os olhos e todas as esperanças estão concentrados no capitão. Se elle desanima, desanima a equipagem. E cada vez mais referviam em derredor as ondas populares d'aquelle immenso mar de fogo que dava ás aguas do Sena uma ardentia sinistra. Thiers salvou a França, suffocando a Communa, e fazendo cahir o braço fratricida armado para a guerra civil. Isto ainda o não conseguiu a Hespanha, que manda as legiões de Madrid combater as guerrilhas da Navarra. A Communa era o incendio, o saque, o fusilamento, e, para vencer todas estas calamidades, claro está que era preciso oppor-lhes pelo menos outra: a morte. Era preciso fazer justiça: correu sangue.[5] Dado porém que na presidencia da republica franceza estivesse a essa hora não o dictador da palavra, mas o dictador da espada, um intrepido militar costumado a oppôr a força á força, lembrado de haver pelejado em Africa no assalto de Constantina, de haver tomado em Sebastopol as fortificações de Malakoff, e de ganhar na Italia a victoria de Magenta, esse militar, dizemos, impellido pela sua destemida coragem, haveria atulhado de francezes os carceres e os cemiterios para salvar a patria que a sua espada tão gloriosamente por mais d'uma vez nobilitara. Dictadura da palavra! Dictadura da palavra foi o governo de Thiers. Luctas, se as houve, foram parlamentares unicamente, e a assemblêa de Versalhes o campo de batalha. Assim requeria ser tratado um enfermo illustre, que tinha ainda nos labios um timido sorriso de esperança. E esse enfermo era a França, o paiz das tradições gloriosas, e a medicina foi a palavra, a discussão, o parlamento. É impossivel rehabilitar-se um paiz com maior dignidade. Á ruina da guerra com o extrangeiro succede um governo republicano d'ordem, que, logo aos primeiros passos, tem de supplantar a Communa armada em ambas as mãos com o ferro de Caim e o facho d'Omar. O inimigo da familia depois do inimigo da França! Ameaçado o lar depois de retalhada a patria! Era preciso salvar o berço em que fluctuavam os Moysés do futuro, e o cemiterio onde dormia toda a immensa familia de Clovis. Isto conseguiu Thiers, e mais ainda. Reorganisou o exercito. Satisfez a imperiosa avidez do erario allemão deixando-o cogulado do muito oiro da contribuição de guerra que pesa ainda menos do que o sangue das victimas de Metz, Borny, Mars-la-Tour, Gravelotte e Sedan. Levantou dois emprestimos que provam que o credito da França bastaria a encher todos os thesoiros da Allemanha. E reergueu os edificios derrubados pelo inimigo ou pela Communa e, o que é mais, reergueu a patria, sustentando um difficilimo equilibrio politico nas frequentes e perigosas oscillações d'um governo provisorio. Isto fez Thiers: isto fez a dictadura da palavra. Vejamos agora como se pagou ao velho Noé que depôz, sã e salva, nas faldas do Ararat, a nau desconjunctada pelo imperio francez. A eleição de Buffet para presidente da assemblêa franceza, por uma maioria de 70 votos, contra Martel, candidato do governo, recomposto nas fileiras do centro esquerdo, era um mau prenuncio de imminente tempestade parlamentar. E, de feito, a tempestade rebentou. Na sessão do dia 19 de maio deu-se o signal de rebate, que não póde ter outro nome a apresentação da interpellação firmada por quasi todos os membros do centro direito e da direita. Venha o documento. Precisamos de vêr claramente como Thiers, o dictador da palavra, succumbiu dignamente ás unicas armas cujo combate aceitava,--a palavra. «Os abaixo assignados, convencidos de que a gravidade da situação exige á frente dos negocios um gabinete cuja firmeza tranquilise os espiritos em todo o paiz, pedem para interpellar o ministerio a respeito das ultimas modificações que acabam de fazer-se n'elle, ácerca da necessidade de que prevaleça no governo uma politica resolutamente conservadora, e propõem que se destine a proxima sexta feira para se realisar a interpellação.» O governo, pela bocca do ministro Dufaure, pediu um praso de vinte e quatro horas para se entender com o presidente da republica. Era esse o dia em que deviam ser apresentados os projectos da lei constitutiva dos poderes publicos. A esquerda da assemblêa pediu que fossem lidos. A direita oppôz-se violentamente. Era a primeira refrega, depois do signal de combate. Estava patente a impossibilidade d'acordo entre o presidente da republica e a direita, unida ao centro direito da assemblêa. A politica de partido levantava-se para combater a politica nacional; começava a referver a escumalha da paixão nas aguas que deveram anilar-se na doçura d'uma discussão serena. A direita foi intransigente, violenta, aggressiva. Thiers, o dictador da palavra, cujos actos e discursos procuraram sempre alliar todas as vontades por meio d'um espirito liberal e conservador, prudentemente sustentado em todas as luctas, quiz ainda responder á direita com o seu verbo fluente, sereno e limpido: «Não solicitei o poder, offereceram-m'o e exerci-o no meio de muitos desgostos e difficuldades: as vossas censuras não as dirijaes aos leaes ministros aqui presentes: dirigi-as a mim, que para mim as tomarei. O momento é solemne; imperiosas as circumstancias: vós ides decidir os destinos do paiz.» Mas era preciso dizer a verdade toda: «Entre os republicanos ha alguns que querem ir mais longe e que instigam os outros a seguil-os: são os que querem a republica para os republicanos. N'esta situação, precisa-se de um governo inexoravel para com a desordem, e que, depois de assegurar a tranquilidade, inicie uma politica de pacificação; tal é a nossa politica.» Todavia a direita, como dizia a interpellação, queria uma politica _resolutamente conservadora_, e Thiers desceu da cadeira da presidencia, certamente deslembrado das ostentações do poder, se bem que naturalmente desalentado como todos os grandes obreiros que são chamados a receber a féria da ingratidão... Finalmente, Mac-Mahon substituiu Thiers. A historia registrou o passado, e a espectativa europea nada alcança pelas trevas do futuro a dentro. Irá inaugurar-se uma dictadura verdadeiramente militar? São tudo perguntas. Governará a direita? Restaurar-se-ha a monarchia? Continuará a situação provisoria? Não se sabe. Todavia, já vol-o disse, alguem profundamente sabido em coisas dos homens e da politica, sentenciou: Acabou a dictadura da palavra; começa a dictadura da espada. Tambem sabeis que Thiers é o author da _Historia do consulado e do imperio_, e da _Historia da revolução franceza_, e Mac-Mahon o vencedor de Constantina, de Malakoff e de Magenta. Em todo o caso a França é governada por uma espada. Ora uma espada, depois d'uma guerra fatal, e quando se sonha em outra guerra diversamente fatal, a _revanche_, lembra o sangue que correu e o sangue que póde correr... A espada vence, e a palavra convence. E a França precisava convencer-se de que deve, primeiro que tudo, coroar a trabalhosa obra da sua rehabilitação. * * * * * Á HESPANHA (AGOSTO DE 1873) Tu eras o menestrel da peninsula, o trovador de capa traçada, que dedilhavas o bandolim dos teus cantares sob a janella illuminada pelo formoso luar das serenatas. Tu eras a madrilena, de mantilha de rendas, olhos de fogo, que passeava á tarde no Prado, agitando a ventarola, os olhos e o mundo... Tu eras o _torero_, de jaqueta azul constellada d'estrellas d'ouro e prata, que te erguias no meio da arena, de pé como os triumphadores, victoriado pela multidão. Tu eras o amor ardente que descanta ao luar, o _salero_ que justifica a _serenata_, a força que vence os obstaculos. Eras um paiz que mantinhas o esplendor da tua individualidade sem fechares a porta á invasão dos progressos moraes e materiaes do seculo. Tinhas o teu idioma, as tuas danças, os teus cantares, os teus espectaculos. Tinhas reis como S. Fernando, poetas como Campoamor, pintores como Murillo, campeadores como o Cid, oradores como Castelar... Um dia, porém, uma d'estas grandes fatalidades, que pesam sobre todas as nações, avergou a tua nobre cerviz, e um rei estrangeiro, não podendo conter a impaciencia das ambições, desceu do throno a que fôra chamado, depondo nas tuas mãos a corôa que de ti havia recebido. E como são sempre os clarões nascentes da aurora que succedem aos clarões moribundos do occaso, como é sempre a flôr que succede ao cahir das folhas mortas, tu quizeste levantar sobre as ruinas da monarchia a bandeira vermelha da ideia nova. Havia n'essa tua aspiração, ó Hespanha, um tributo nobilissimo á memoria do teu ultimo rei. Elle descera do throno com a magnanimidade com que Codro se expozera á morte, e a Hespanha, como Athenas, queria deixar para sempre devoluto o solio por não haver rei mais nobre que viesse occupal-o um dia. Não rolaste pelas ruas da capital, cuspindo-lhe as injurias da canalha, a corôa da monarchia. Não, archivaste-a na _sancta-sanctorum_ das tuas gloriosas tradições, porque essa corôa a cingira D. Amadeu, e D. Amadeu fôra o _omega_ da realeza hespanhola. Não a consideravas escarneo; veneraval-a como reliquia. Então, ó Hespanha, os teus poetas, os teus pintores, os teus dramaturgos, os teus campeadores, os teus heroes ficaram supplantados por um homerico vulto cuja eloquencia jorrava em catadupas scintillantes pela _bocca d'oiro_ do teu João Chrisostomo. A voz do teu grande orador apostolisava o evangelho d'uma nova religião politica. Não era o inimigo dos reis que se levantava a insultar-lhes as cinzas depositadas nos tumulos soberbos do Escurial. Elle queria vencer sem sangue, combater sem ferir, semear sem revolver a terra! Impossivel! Santa aspiração que não póde traduzir-se em facto, sonho de fraternidade angelica sem realidade entre os homens, onda crystalina que não chega a banhar todos os corações porque encontra no caminho obstaculos e barreiras. As auroras da terra não esplendem apenas como as do céo. São chamma. Cospem centelhas, e muitas vezes a centelha é o pollen luminoso que gera o incendio. A luz tornou-se labareda. Acordaram, sacudindo as tranças enleiadas de viboras, as Meduzas da ambição, as Furias do socialismo, os Omares dos fachos incendiarios. Mobilisaram-se tropas, rodaram carretas, soaram clarins. Caim armou-se para derrubar Abel. Jacob vestiu no braço a pelle do anho para enganar a cegueira de Izaac. A insurreição vendeu o Messias da nova ideia pelos trinta dinheiros de Judas. O luar da Hespanha, o doce confidente das serenatas, volveu-se sanguineo, como o reflexo d'uma forja. O templo, onde porventura existia uma Virgem de Murillo, ficou devoluto, abertas as portas, e as aves de rapina entraram para os saquear depois que o pastor espiritual saiu para combater. O bandolim do menestrel emmudeceu sob a _ventana_; os echos do Prado não repetiram mais o chalrar das morenas da mantilha. A bandeira hespanhola nunca mais foi reverenciada na solidão das aguas com o culto que se deve ás côres nacionaes d'um paiz livre. Que importa que fosse aquella bandeira a mesma que acompanhou Christovão Colombo ás regiões ignoradas do mundo novo? Os descobridores morreram; ficaram apenas os piratas. O descobridor era saudado pela artilheria; o pirata é aprisionado por ella. Ruinas d'uma nacionalidade, petalas d'uma grinalda desfolhada, recordações horriveis d'um sonho vago... E ainda de pé o vulto gigantesco, que sobrevive á sua propria ideia, o sonhador que subsiste á sua aspiração, o jardineiro que não estremece ao perpassar do tufão que lhe arrebata o jardim do seu ideal!... A sua voz sobranceia os rumores da tempestade; é ainda o verbo da paz no meio da lucta, ouve-se na Europa inteira a palavra do Lazaro immortal que desperta nas profundezas do tumulo: «Nós, os republicanos, temos muito de prophetas, pouco de politicos. Sabemos muito do ideal, pouco da experiencia; abrangemos todo o céo do pensamento, e caimos no primeiro fosso que ha no nosso caminho. Assim succede e tem succedido sempre na historia, que os inimigos dos partidos progressivos fundam as ideias progressivas, como o judeu S. Paulo fundou o christianismo: como o monarchico Washington fundou a republica do Norte da America; como Rivadavia, outro monarchico, fundou a confederação das republicas do sul da America; que nem o Baptista na egreja, nem Rosseau na revolução, nem nenhum dos prophetas consolidou a propria reforma por elles annunciada e trazida; do mesmo modo que Moysés guiou para a terra promettida, e não chegou a entrar na terra promettida; do mesmo modo que Colombo descobriu a America sem saber que a tivesse descoberto para que uns guerreiros andaluzes e extremenhos a conquistassem e uns obscuros pilotos italianos a baptizassem; porque os que concebem e presentem as grandes ideias, não as realisam nem consolidam em nenhuma época da historia.»[6] E não obstante referver ainda o cahos á hora em que o Moysés da Hespanha se preparava para escrever o genesis da nova creação, e atiçarem-se as labaredas do incendio geral, e despirem-se os altares; não obstante fugir a Hespanha da Hespanha espavorida de sua propria crueza, e demandar o tecto hospitaleiro dos Euryalos estrangeiros, e a bandeira da patria despertar contra si a aggressão dos paizes extranhos,--elle, o gigante ferido no coração pela funda de David, quer morrer ou renascer abraçado aos escombros do seu berço: «Eu quero ser hespanhol e só hespanhol; quero fallar o idioma de Cervantes, quero recitar os versos de Calderon; quero colorir a minha phantasia com os matizes que tiravam das suas palhetas Murillo e Velasquez; considerar como pergaminhos meus de nobreza nacional a historia de Viriato e de Cid; quero ter no escudo de minha patria as naves dos catalães que conquistaram o oriente e as naves dos andaluzes que descobriram o occidente; quero ser de toda esta terra, que ainda me parece estreita, sim, de toda esta terra que se estende dos Pyreneos ás ondas do gaditano mar; de toda esta terra ungida e santificada pelas lagrimas que custara a minha mãe a minha existencia; de toda esta terra redimida, resgatada do estrangeiro pelo heroismo e pelo martyrio de nossos immortaes avós.» É que só elle é maior que a Hespanha toda. FIM. [1] _Do portal á claraboia._ [2] No prologo da _Civilizacion en los cinco primeros siglos del Cristianismo_, por Emilio Castelar. [3] _Bafordar_ era, no jogo d'armas, brincar com ellas, fingir combate militar. [4] Annotado pelo mesmo Antonio Cerqueira Pinto. [5] Em outro livro (_Nervosos, lymphathicos e sanguineos_) lamentamos que corresse o sangue de Rossel, por exemplo, o que não quer dizer que censurassemos a repressão da Communa. Convinha ás vezes que a justiça não fosse cega para estremar os homens e os delictos. [6] Fragmentos do discurso de Emilio Castelar recitado na assembléa constituinte hespanhola em 30 de julho. INDICE Pag. Advertencia VII O Gabinete de Camillo 9 O Primeiro de Janeiro 17 A Aguia d'Ouro 25 Physiologia do Theatro de S. João 33 Physiologia do Theatro Baquet 41 Telhudos historicos 53 Os Domingos 63 As Italianas 71 Emilio Castelar 79 Animaes e vegetaes 89 Á Academia de Coimbra 97 Os annuncios 107 A industria das ruas 117 A Giganta (carta a Julio Cesar Machado) 127 O Album do Gymnasio 137 Esboço de comedia 145 As colheitas 153 S. Bartholomeu 159 O Natal 167 Os Bohemios 173 O Relogio... 181 Ás sete horas da manhã 191 Á mesa do chá 199 S. João 207 Judas no plural 213 Historia velha 221 Thiers 229 A Hespanha 239 End of Project Gutenberg's Entre o caffé e o cognac, by Alberto Pimentel *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ENTRE O CAFFÉ E O COGNAC *** ***** This file should be named 33182-8.txt or 33182-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/3/3/1/8/33182/ Produced by Pedro Saborano Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. 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