The Project Gutenberg eBook of Era uma vez..., by Júlia Lopes de Almeida
Title: Era uma vez...
Author: Júlia Lopes de Almeida
Release Date: October 26, 2022 [eBook #69239]
Language: Portuguese
Produced by: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by The Internet Archive.)
"Ao Dr. Manoel Murtinho Nobre.
Por mim e pelos meus.
Gratidão.
Quando a Princesa Edeltrudes nasceu, era tão pequenina, tão pequenina, que poderia dormir á vontade dentro de um dos sapatinhos da Rainha sua mãi. Mas o berço em que a meteram era muito lindo, todo de fios de ouro entrelaçados e grinaldinhas de folhagens e de rosas, simuladas por esmeraldas o rubins.
Com medo de que a sua fragilidade a matasse, bafejaram-na, amimaram-na, rodearam-na dos mais extremados carinhos...
E a Princesinha resistiu, e foi crescendo cheia de vontades imperiosas.
Era ainda muito tenrinha quando um dia a mãi, ao embala-la com as suas próprias mãos côr de cêra, deixou cair a cabeça sobre o peito e adormeceu... E assim como o berço deixou de oscilar, parou no peito da Rainha o coração.
Houve gritos, lamentos, correrias, mas a criança no meio das suas rendas não percebeu cousa alguma e nem um estremecimento sacudiu a carnação rosada do seu corpinho rechonchudo.
E desde então o Rei viveu com medo de que á filha acontecesse o mesmo que acontecera á esposa, e jurou por isso não lhe dizer jámais na vida um—não.
*
* *
Quando Edeltrudes começou a falar e a distinguir o que a rodeava, todos que via eram seus servos. O próprio pai fazia-se seu escravo.—Que a tua vontade seja feita—era o que respondiam a todos os seus caprichos. E ela cada vez os tinha de mais difícil realização!
As damas da côrte e as aias viviam num suplício, e o povo cá fóra afirmava que a Princesinha tinha nascido sem coração.
Por isso a mãi lhe quisera dar o seu, sem o ter conseguido.
Poderia haver nada mais triste do que uma menina sem coração?
Todos os dias, mal abria os olhos, punha-se ela no seu leito a imaginar que tortura haveria de aplicar á primeira pessoa que lhe aparecesse; e a sua imaginação, exercitada nessa terrivel espécie de jogo, encontrava sempre um meio original de exercer a maldade. Toda gente no palacio tinha alcunhas, até aos próprios velhinhos ela tratava por tu e ordenava cousas dificeis e dolorosas.
E o Rei?
O Rei continuava a deixar que ela fizesse o que entendesse, todo embebido no seu amor paterno e na saudade da Rainha de mãos côr de cêra e olhos côr de turqueza fluida...
E no entanto ele era um homem forte, autoritário, que fazia tremer o assoalho da casa ao peso dos seus passos, e ajoelhar os subditos ao som da sua voz, grossa como um trovão.
*
* *
Á proporção que se fazia mulher ia a Princesa compreendendo que a atmosfera que a envolvia era feita de indiferença e desamor. Só no pai encontrava sinceridade. Os outros não lhe queriam bem; porque ninguem pode ter afeição a quem seja, como era a Princesa, tão egoista e tão mau. Quem espalha maldições não pode colher simpatias, quem só produz o mal de quem poderá esperar o bem?
Bem compreendia a Princesa que a vida não era igual para todos, pois via ás vezes dos altos torreões do seu Castelo certas mulheres do povo beijarem na rua as crianças, enternecidamente. O beijo seria criado só para o uso da ralé?...
O próprio pai quando a abraçava apenas lhe roçava os lábios pela testa, receando talvez sufoca-la nas ondas argênteas das suas grandes barbas.
E a Princesa navegava assim na vida, como fóra da vida...
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* *
Era já mulher feita e linda, quando uma tarde mandou selar o seu melhor cavalo e saiu a galopar pelas alamedas do parque.
A ninguem era permitido acompanha-la nos seus giros de loucura, como ela mesma costumava dizer ao pai. Havia na solidão alguma cousa que a atraía; buscava inconscientemente a verdade que os cortezãos não lhe sabiam dizer...
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* *
Nessa linda tarde côr de violeta, tão distraída estava a Princesa que depois de ter saltado valados, pulado cêrcas, embarafustado por campos lavrados, meteu-se, já cançada, por uma longa estrada margeada de um lado por velhos muros de quintas e do outro por um riozinho sossegado.
Uma núvem côr de rosa flutuava num céu que era todo brandura; das moitas das ervinhas rasteiras subia um aroma de flores desconhecidas e da espessura dos pomares irrompeu um canto de ave antes nunca ouvido...
Seria o rouxinol?...
O cavalo da Princesa andava agora devagar, como se tivesse tambem ele entrado na harmonia plácida daquela hora divina. E Edeltrudes deixou que ele a levasse, sem mesmo saber para onde... E assim passou por duas lavadeiras que, de joelhos na areia, cantavam com alegria, batendo panos nas pedras. E a Princesa, que não cantava nunca, preguntou de si para si:
—Poder-se ha ser feliz sendo-se pobre?...
Como de propósito, uma das lavadeiras cantou mais alto:
Mas quem faz caso do que dizem as lavadeiras, quando nas margens dos rios cantam por cantar? Só os poetas, que procuram em todas as vozes da natureza o segredo da vida para o pôr nos seus versos. Já as lavadeiras tinham ficado para tras, quando a Princesa topou com um homem cultivando o campo. A enxada subia e descia, revolvendo a terra que cheirava bem. Já de um lado um pouco do terreno, afeiçoado pelo trabalhador, parecia mais bonito, pronto para receber a sementeira. E ela parou um instante a apreciar aquele movimento. Era a poesia do Trabalho que lhe entrava pela alma sem que ela mesma a compreendesse...
Eram os golpes daquela enxada que convertiam a terra em pão e em flores, o que quer dizer, que é das mãos dos homens rudes e humildes que depende a fartura da humanidade e a beleza do mundo!
Mas a Princesa não tinha espírito para agradecer áquelle lavrador o conforto e o gozo que ele lhe dava.
*
* *
Assim foi indo, foi indo, até reconhecer num muro baixinho de tijolo uma das partes laterais do Asilo dos Cegos da cidade.
O casarão ficava lá ao fundo, branquejando entre árvores. Do alto do seu cavalo ela observou o jardim, de ruas largas, sem empecilhos, cobertas de areia fina. Sentiu-se logo curiosa de vêr como andariam por ali os cegos, ao mesmo tempo que lamentava que, para gente que não via, gastasse o Estado tanto dinheiro, dando-lhe tão vasta e linda propriedade. Para exercício dos cegos não bastaria um terreno sem flores, nem árvores, nem gramados?
Se fôsse humanitaria perceberia a Princesa que exatamente para cegos se devem cultivar as flores que teem aroma, as árvores que dão sombra, as relvas que transformam o chão áspero na maciez veludosa dos tapetes...
Olhava ainda a Princesa para dentro do parque do Asilo, quando viu aparecerem tres cegos ao fundo de uma comprida rua de Eucaliptos.
Andavam com tamanho desembaraço que se diria que tinham os olhos nos pés, pois na cara bem ela via que não!
Um tinha as pálpebras murchas, afundadas nas órbitas; o outro as pupilas cobertas por uma neblina branca ... e o terceiro, mais incerto no andar, tacteava o caminho com um bastãozinho de madeira vêrde.
*
* *
Dizia o mais velho, continuando a conversa que traziam de longe:
—É mesmo assim: a Princesa Edeltrudes tanto mal faz aos outros, que dentro de pouco tempo a sua vida se converterá num verdadeiro inferno. Neste mundo, já o disse alguem, só ha uma cousa que se não converte em sofrimento—é o bem que tivermos feito. Ora, se a Princesa só pratica o mal, é claro que morrerá tolhida de remorsos. Chego a ter pena... Coitadinha...
A Princesa tremeu de raiva, debruçada do seu cavalo, com o rosto transfigurado e o olhar em chamas.
Mas, querendo ouvir mais, não deu nem um pio.
Entretanto, disse o segundo cego, que era um rapazinho louro, o de olhos brancos:
—Eu não tenho piedade dos que fazem sofrer, mas dos que sofrem...
Ao que o terceiro cego, o do bastãozinho, acrescentou:
—Pois deverias lamenta-la, porque ela desconhece a mais bela cousa da terra, que é o fazer benefícios e espalhar bondade... É egoista e vaidosa, só louva o que lhe pertence; só gosta de quem a serve; não adora a Natureza, nem admira ninguem...
—O seu coração é mais seco que uma pedra ao sol ... disse um.
—A sua voz, que ordena sempre, desconhece a modulação doce do pedir ... continuou o outro.
—E as suas mãos o formoso gesto de acariciar!... concluiu o terceiro.
Hirta de espanto, a Princesa quedou-se ainda ali por algum tempo, até que numa rebentina furiosa voltou a galope para o Castelo.
*
* *
No seu largo leito de prata e de marfim, entre cortinas de brocado e sedosas cambraias, Edeltrudes passou a noite a scismar...
Que suplício inventaria para castigar a insolencia dos tres cegos?
Pelo vitral da ogiva o luar entrava, despejando-se em tonalidades místicas.
Com os olhos pasmados na luz, ela distinguia as imagens reproduzidas na transparência do vidro...
A que avultava era uma esguia figura feminima, de tranças de ouro escorridas pelos ombros e finas mãos estendidas, no gesto de semear esmolas pelo chão. E a seus pés as moedas se convertiam em rosas, lindas rosas que resuscitavam ao luar numa vida misteriosa e divina...
Mas ao adormecer a Princesa tinha tomado a sua decisão...
*
* *
No dia seguinte os guardas do rei solicitaram do Asilo a presença dos tres cegos no Castelo Real. Os pobres homens tremeram de medo, compreendendo a razão daquela ordem, e só se deixaram levar por não poderem desobedecer...
Na ânsia de os vêr a Princesa mandara-os buscar num côche de altas rodas, para que não perdessem tempo em andar a pé, nem fugissem pelo caminho... Depois de subirem várias escadarias, e pisarem tapetes em corredores que parecia não terem fim, os guardas retiveram dois cegos em uma antecâmara e introduziram o mais velho deles no enorme salão das Trinta Colunas, onde todas as damas e cavalheiros da côrte se achavam já reunidos, ornamentados de joias e de plumas.
Ao fundo, sentada num trono de veludo e ouro, com os cabelos negros enastrados de pérolas, a túnica de rendas presa á cintura por uma cadeia de pedrarias, os pés mimosos dentro de sandálias afiveladas com rubins, as mãos, rutilando de anéis, Edeltrudes refulgia como um astro.
Reconhecendo no cego o mesmo homem que vira e ouvira na véspera, ela falou desta maneira, com palavras claras e espaçadas:
Eu, Princesa deste Reino, autorizada por El-Rei, meu Pai, incumbo-te de descer ao fundo do mar e vir narrar-me depois tudo que nele tiveres visto, desde a beira da praia até ao seu ponto mais fundo... Esperarei tres dias pela resposta; se não a trouxeres a meu contento, mandar-te hei enforcar no mais alto Salgueiro do meu jardim.
Lívido de susto, o pobre homem pôz as mãos em ar de súplica e murmurou:
—Mas, Senhora, eu sou cego. E quem poderá ir ao fundo do mar e voltar dele com vida?
—Não permito objecções! gritou a Princesa; faze o que ordeno ou serás enforcado hoje mesmo!
O cego foi retirado em braços pelos guardas.
Um calafrio de horror percorreu toda a assembléa; mas ninguem ousou balbuciar nem uma só palavra.
Entretanto a Princesa sorria...
O segundo céguinho trazia no rosto pálido de adolescente um vislumbre de esperança. A moça contemplou-o demoradamente. Depois disse:
—Eu, Princesa deste Reino, autorizada por El-Rei, meu Pai, incumbo-te de viajar pelos espaços e vir contar-me depois, de viva voz, tudo que tiveres observado com os teus próprios olhos... Dou-te tres dias para isso. Se não trouxeres uma resposta a meu contento, mandar-te hei enforcar na mais alta Acácia do meu jardim...
O cego tremeu, como um vime á rajada do vento, e cairia se os guardas o não amparassem tambem.
Quando o terceiro cego entrou na sala, a Princesa contemplou-o de alto a baixo. Era um moço de ar altivo e corpo esbelto.
—Que mais desejas tu? preguntou-lhe a Princesa.
—Vêr! respondeu ele.
—Pois verás. Incumbo-te de percorrer as mais ínvias florestas do mundo e de me vires relatar todas as suas maravilhas. Dou-te tres dias para isso. Se não me contares cousa que me agrade mandar-te hei enforcar no mais alto Castanheiro do meu jardim. Ouviste bem?
—Ouvi, respondeu ele com voz firme.
Para celebrar este caso tão interessante, a Princesa mandou chamar as bailarinas do Castelo e divertiu-se até á noite, dançando e vendo dançar.
*
* *
No dia seguinte, ainda era madrugada, e já a Princesa saía para o jardim.
Que iria ela fazer?
Ia escolher as árvores em que teriam de ser enforcados os tres cegos.
Logo ao descer os degráus do terraço viu o velho Garçolindo, o mais sábio jardineiro do Castelo, que estava a regar um canteiro de junquilhos brancos.
—Garçolindo, disse ela com voz autoritária, mostra-me o mais belo Salgueiro do meu jardim, que seja bastante forte para que nele possa ser enforcado um homem...
O velho jardineiro sabia de quem se tratava e caiu de joelhos, suplicando de mãos postas:
—Perdoai-lhe, Senhora! Para que querereis matar quem da vida só goza a metade? Não bastará para seu castigo não poder ele vêr o que nós vemos?
A Princesa redarguiu severamente:
—Se não queres que te aconteça o mesmo, Garçolindo, leva-me onde eu te disse.
O velho jardineiro ergueu-se com um gemido, e caminhou diante dela, chorando baixinho.
A sua cabecinha toda branca resplandecia á claridade nascente, como uma flor de luar. E assim andando chegaram té á beira de um lago em que nadavam cisnes.
Ali estava a reflectir-se n'água o maior Salgueiro do parque real.
A Princesa olhou.
Que estranha expressão de saudade e de melancolia tinha aquela árvore, Senhor! Das suas folhas pendentes escorria tristeza. O orvalho que as molhava ainda, fôra talvez chorado pelos anjos, naquela noite singular...
A essa idéa a Princesa fechou os olhos instintivamente; mas, como num espelho, viu a expressão da árvore reproduzida dentro de si mesma... Tornou a abri-los. A árvore ainda lhe apareceu mais amargurada, com as suas grandes hastes curvadas para o chão, num desânimo inconsolavel...
—Garçolindo! por que é esta árvore assim tão melancólica?...
—Senhora, porque ela já sabe o destino que lhe quereis dar...
—Cala-te, jardineiro, e leva-me até onde uma Acácia que tenha galhos robustos...
Ora, a Acácia mais linda do jardim era a que ensombrava o velho pavilhão da defunta Rainha. Indiferente á evocação do lugar, na certeza de que vida desaparecida é vida renovada, a árvore resplandecia no ouro das suas flores cheirosas. Ramalhuda e alegre, suspendia um ninho em cada galho. Da sua fronde irrompiam cantos, sentia-se na frescura o fremir amoroso de centenas de asas, mas não só asas de pássaros, como tambem de abelhas zumbidoras, que, luzindo ao sol, colhiam o mel das suas flores rutilantes...
Desde as raízes estendidas na terra até á mais alta folhinha a desenhar-no no ar, a árvore fecunda falava em vida, esperança, maternidade!
A Princesa, tocada por aquela expressão jubilosa, voltou-se para o jardineiro e preguntou:
—Garçolindo! por que é esta árvore assim tão alegre?
—Senhora, porque ela ainda ignora o destino que lhe quereis dar...
—Cala-te, jardineiro, e leva-me até onde o mais alto Castanheiro do meu jardim...
Já o sol ia quente e o céu, todo azul, não tinha fundo.
Tiveram de subir a pé a colina das "Degoladas", atapetada de anémonas e de cardos mansos.
Fôra naquelle sítio que o avô mandara degolar duas servas, por intrigas de amor.
Dizia a lenda do Castelo, onde as próprias pedras porejavam contos, que desde então quem andasse por ali alta noite ouviria cantar plangentemente as anémonas roixas ao luar...
Chegando ao topo da colina a Princesa parou estupefacta.
Oh! a beleza do grande Castanheiro! Que placidez a sua! Olhando-lhe para o tronco cheio de rugas e nodosidades e para as ramas severas, de um vêrde sombrio e doce, ela percebeu que ainda mais do que as outras duas árvores, esta tinha uma linguagem compreensivel e cheia de pensamento:
—Olha-me e verás que ao pé de mim se extingue o sofrimento. Nasci para abençoar. O lavrador esbaforido, quasi a morrer de insolação, encontra á minha sombra refrigério quando a terra esbrazeada em que labuta dardeja ao sol. Simbolizo o doçura e a clemência, sou a cidade dos pássaros e o telhado dos mendigos errantes que os teus mordomos enxotam da tua porta e veem chorar sobre as minhas raízes. É preciso conhecer-se o sabor das lágrimas para se perceber o valor da alegria. Eu quanto mais penetro na amargura da terra mais me inebrio na beleza do espaço e no fulgor dos astros.
A Princesa não entendeu completamente a linguagem das árvores, mas ficou por alguns instantes meditativa...
*
* *
Já tres côches esculturados, seguidos por cavaleiros reluzentes, tinham ido buscar os cegos do Asilo. Pelas escadarias do paço, guardas de perucas brancas, suspendiam nas lanças de ouro as tres grandes plumas amarelas do emblema real. Nos jardins, em torno das fontes de aguas cantantes, rondas de bailarinas dançavam languidamente, tangendo liras e pandeiros enflorados de loureiro e lilazes; e no páteo, sobre as lages grandes, fôra estendido o sumptuoso tapete de fróco azul e ouro das grandes solenidades.
Toda a côrte, exceto o Rei e seus ministros, estava reunida no imenso salão da Porta de Marfim, onde se ia ouvir a narração dos cegos.
Ao fundo, no trono de brocado branco, a Princesa parecia imperturbavel. Nesse dia desprezara as joias, vestira-se de véus brancos, de que se destacavam as suas tranças negras pendentes sobre o peito até aos joelhos. Tinha por scetro nas mãos uma grande haste de nardos, e mergulhava os pézinhos nús numa corbelha de jacintos brancos. Dir-se hia ao ve-la que o perfume se condensara numa fórma humana, resplandecente de mocidade...
Súbito o som de um clarim preveniu que o primeiro coche tinha chegado ao páteo do Castelo.
A Princesa nem pestanejou; mas toda a gente que enchia a sala não soube reprimir um movimento de susto e de piedade...
Dentro, na Galeria dos Deuses, rompeu o côro das cantadeiras da Morte, e foi só quando a sua última nota expirou como um gemido, que o guarda, batendo com o copo da sua adaga no escudo de ouro as tres pancadas sacramentais, fez entrar os cegos até aos pés do trono.
Os desgraçados vinham já vestidos de preto, prontos para o enterro... Sentaram-nos em tres tamboretes distintos, a pequena distancia uns dos outros, e era tal a sua palidez, que mais pareciam cadáveres que seres vivos... Reinou por alguns minutos um silêncio grave, até que, ainda do fundo da Galeria dos Deuses, irrompeu outro côro, concitando os condenados a serem sinceros e a pedirem perdão das suas faltas...
Finda a música, a Princesa ordenou com voz clara e firme:
—Tu, que mandei ao fundo do mar, conta-me o que viste.
O cego agitou-se, passou nervosamente a mão pelos cabelos. Damas e cavalheiros sussurraram palavras de piedade...
*
* *
—Fui da orla da praia até á vastidão do Oceano sem limites visiveis, onde o céu parece mais vasto e onde as águas são mais profundas e misteriosas. Nem um córte de asa perturbava no ar a solenidade do silêncio e do vácuo; nem a vela do mais pequeno barco punha sobre a onda a nota viva de um pensamento humano. Era o Nada terrivel e augusto, na sua grandeza desesperadora... Entre o céu e o mar alto, sentia-me fóra do mundo, na perplexidade de estar ou não fruindo uma outra existência...
A grande maravilha nessa infinita planície de águas profundas é toda feita pela luz dos astros, que do alto a namoram e lhe alteram o sentimento... O levantar e o pôr do Sol são solenidades sagradas para as ondas, e nada as doma e fascina como as esteiras do luar sobre os seus dorsos irritados... O ar livre, leve, enche-se então de segredos, falas de estrelas, vozes de mundos ignotos, que os nossos ouvidos imperfeitos não entendem, mas que o nosso instinto adivinha...
A Princesa atalhou, impaciente:
—Não quero saber o que é o mar visto de fóra, mas o que lhe observaste no fundo...
E o cego proseguiu, enxugando um suor de aflição:
—O fundo do mar é variado... Por vezes tenebroso; por vezes lindo!
Caminhei, caminhei sobre areias ou cascalhos, ora resvalando em limos e em maciezas de algas, ora golpeando as carnes em serrilhas de conchas, em unhas de crustáceos ou em granulações de madréporas e de corais.
De trechos sombrios descia ás vezes a poços de treva espessa, onde a água era mais fria e o silêncio mais lúgubre. Mas eu andava sempre, andava sempre, nada me intimidava! Topei assim com várias grutas de rochas sobrepostas, por cujos interstícios luziam como redondas lâmpadas elétricas, os olhos de monstros sedentários, de fórmas extraordinárias e pele mole, cor de aço ou cor de ardósia.
Andando sobre patas, como quadrúpedes terrestres, passaram por mim nas mais profundas regiões do oceano feras de corpo imenso e cabeça trombuda, em que mal se lhes percebiam os olhitos enevoados. Outros animais havia sem olhos, de bocas descomunais, com chifres no alto do dorso ou na cabeça, uns do feitio de saipos, outros do feitio de flores...
E eu não tinha medo, e andava sempre, andava sempre! Dir-se hia que a graça divina me revestia todo de uma armadura olímpica que me tornava invulneravel! A própria escuridão do fundo do mar era varada pelos meus olhos, como se eles comparticipassem da mesma natureza da dos seus habitantes. Colhi assim entre os meus dedos maravilhados palmas de rendas vivas e caprichosas e pérolas guardadas dentro de conchas entreabertas, como num cofre. Nenhum jardim terrestre me poderia dar tão vivo gozo... As algas espalmadas, de diversissimas fórmas e tamanhos, tinham côres ardentes como as dos crótons ou macias e frescas como as do linho verde... Dentre grandes búzios opalinos e colunas de espuma petrificada, cresciam hastes de uma vegetação crespa, fina, nervosa, estrelada de florinhas minúsculas côr de aljôfar, côr de âmbar, ou côr de opala...
Desses jardins encantados passei a ladear profundas fóssas. Vinham por elas acima animais rastejantes, de bocas imensas, como as dos crocodilos. Uns tinham as caudas crespas, irriçadas de espinhos amarelos; outros malhados de verde e negro avançavam aos bordos como bêbados. Eram uns quasi esféricos, pardos, revestidos no dorso por fileiras de espetos agudos e finos como agulhas, eram outros esguios e flexiveis, com scintilações azuis na pele branca... Nas partes chãs, imensos vertebrados passeavam demoradamente os seus corpanzis de aleijões, sinistros, erguendo tristes olhos, cubiçosos para os peixes que nadavam em cima, a uma altura inacessivel de centenares de metros ... como um hipopótamo póde olhar para as andorinhas no espaço...
Correntes profundas que levam para o Equador as águas frias dos Pólos, arrastavam-me, por entre esponjas grandes, para novos jardins, onde cresciam plantas de hastes flexiveis e umbelas côr de açafrão ou de esmeralda... Do encantamento ao pavor, do pavor ao encantamento! Das flores fantásticas via-me de novo arrojado para ao pé dos bichos, mais extravagantes. Os grandes animais do mar são monstros. Entre os pequenos, se uns lembram crisântemos vivos ou túlipas ansiosas por um beijo de luz, outros teem unhas de bruxas, negras e rubras, ou cornos agudos saindo como puas dentre massas gelatinosas. Uns teem carapaças denticuladas, outros só teem cabeça e boca, ou só ventre...
Á proporção que eu me ia afastando da costa, muito menos belo me parecia o mar... Só até onde penetra a claridade do céu, penetra a côr e a alegria. Nos abismos do mar alto a treva gera figuras de pesadelo. Os animais marinhos são os seres mais estúpidos da criação... É á flor das águas que nadam os peixes mais activos e inteligentes, alguns mesmo, pela ânsia do ar e da luz, emergem da onda em vôos curtos e alucinados. A própria baleia gigantesca gosta de aspirar o ar livre em um fôlego largo. É só perto das costas que os sábios que se dão ao estudo da oceanografia encontram bons elementos para as suas investigações. As fúrias cegas dos pélagos profundos não atráem ninguem... Quem poderá conhecer toda a enorme legião dos povoadores do mar? Nem mesmo a conheceu o imperador Vitelius, que viu á sua frente, num banquete, duas mil iguarias de peixes e sete mil de aves finas... Com mais alguns imperadores dessa lavra o mundo teria sido exterminado, e até mesmo ás cavernas do mar profundo tais glutões teriam ido buscar os animais de carne fosforecente e indigesta para entreterem a sua fome... Mas essa região soturna, é a unica ainda vedada ao exterminador! O sabor que possam ter os seus animais, não será jamais apreciado pelo exigente paladar de imperador algum. Podem assim os monstros marinhos proliferar em paz, sem de leve suspeitarem que mundo irradiante, buliçoso e perverso vive acima deles sob o clarão das estrelas!
—Basta; atalhou a Princesa. Só me falas em bichos de má catadura, e eu quero ouvir alguma cousa das sereias, das ondinas e desse velho magestoso, de longas, barbas e fronte coroada de pérolas e de corais ... que se chama Neptuno.
—Deuses ... ondinas ... só povoam os mares da Literatura. Acreditai, Senhora, que a harmonia perfeita dos corpos das Venus e dos deuses marinhos, só póde ter nascido da imaginação dos poetas. A Mitologia foi o poema de um povo embevecido pelos esplendores da Natureza... Cada um desses esplendores ele o encarnou em uma figura olímpica, mas feita á sua semelhança! Procural-as hiamos em vão no fundo frio das águas, onde todos os seres teem um feitio extravagante e, para nós, inédito. De lendas, de historias e do passado só alguns despojos de naufrágios acordaram no meu espírito a lembrança de navegantes remotos, descobridores audazes, desaparecidos na vertigem dos ventos e dos séculos...
—No fim, que depreendeste de tudo que viste no fundo do mar?...
—Que a Vida é o Amor, real Senhora.
—Como assim?! Então, esses feios bichos inconscientes?...
—Amam! Amam—e só matam quando atormentados pela fome; e mesmo assim, aos animais de outra especie...
—Ah...
—Obedecem á lei da Natureza. Só o homem guerreia o homem. Porque o homem é o animal de instintos mais imperfeitos da criação...
A Princesa ficou por instantes pensativa. Uma leve sombra se lhe estendia sobre o rosto lindo. De repente, voltando-se para outro cego, disse com a voz ligeiramente trémula:
—Agora tu.
Um guarda avisou o cego interpelado, batendo-lhe num ombro com: o copo da sua adaga.
*
* *
—Ordenaste-me, Senhora, que eu viajasse pelo espaço infinito e vos viesse dizer dentro de tres dias o que tivesse visto! Obedeço, mas infelizmente a minha palavra descorada mal poderá dar-vos uma idéa do deslumbramento de que vim cheio. Para não seguir sózinho em busca de paragens tão desconhecidas e dificeis, invoquei a presença de um velho pastor do Himalaia, afeito desde os mais remotos tempos a trilhar os caminhos azuis do Firmamento, e com ele subi, redemoinhei, turbilhonei por entre os astros fulgurantes... Mas não era eu só que ia levado como uma folha seca pelo tufão. Grandes corpos de mundos luminosos valsavam comigo no espaço, em um movimento vertiginoso.
E eu queria em vão entreabrir a boca, para uma pregunta que o meu ser transformado nem podia formular, nem portanto exprimir... Toda a minha alma se condensava em uma só faculdade:—a do deslumbramento! Invulneravel, segui por entre a chuva de estrelas cadentes que zebravam de ouro o campo celeste. Assim, de espanto em espanto, fui de planeta em planeta. Outros astrónomos mais sábios tomaram-me das mãos do velho pastor do Himalaia, e, com uma precisão absoluta, ensinaram-me as distâncias, o peso e a posição de todos esses corpos luminosos e soltos no ar como poeira douro.
Mais do que nunca, ao divagar pelo Firmamento, eu senti a gloria do pensamento humano, que tão alto sóbe e tão maravilhosamente descortina mesmo as cousas mais inacessiveis... Eu me embevecia no delirio de sensações inexprimiveis, era um ser alado trespassado por todas as tintas diluidas em ondas translúcidas no Universo! Tendo emergido do lençol aquoso das nuvens, já completamente livre da atmosféra que envolve o globo terrestre, eu subia em giros de valsa, em espirais de sonho, ora á órbita de um, ora á de outro astro.
Filho da Terra, todo o meu corpo se sentia atraído para as labaredas do Sol! Para atingi-lo percorri milhares e milhares de quilómetros, passando por entre as estrelas, como através de rosas de um jardim fantástico...
Eu ia para ele como a alma de um crente vai para Deus. Sentia já chegar o instante delicioso de me desfazer na sua luz, quando uma força desconhecida me impeliu para uma corrente circular em que eu comecei a girar, a girar em torno do Sol imenso, sem forças para o atingir. Se fosse possivel fazer a comparação do infinitamente grande com o infinitamente pequeno, eu diria que as miríades de corpos luminosos que se revolviam dentro do astro imenso, lembravam um enxame de abelhas ávidas, agitando-se na corola de um girasol completamente desabrochado... Oh, a luz bemdita, que dá vida aos mundos e glória ao céu, como o seu esplendor inundou a minha alma de extase e de alegria para sempre! E os meus olhos suportavam a intensidade do calor e do clarão espantoso, á proporção que eu varava em segundos milhares de léguas, envolvido em raios de todas as côres, na ânsia insaciavel de tudo vêr, para tudo vos contar, Senhora!
A fantástica velocidade dos astros enche de música todo o Universo. Cada estrela tem uma voz na sinfonia do Espaço imensuravel e o seu ideal leva-a para um destino ainda não penetrado pelo nosso pensamento. Talvez o do Amor, porque no espaço como na Terra, ha em tudo o mesmo frémito de paixão.
São enamorados do Sol os planetas que lhe giram em torno. A Via-Lactea é um fervilhamento de corações extáticos e virginais, onde o amor se cristalizou em rutilações iriadas. Que é o nosso planeta visto do sol? Um pequenino ponto flamejante. Um coração a arder! Que é a lua? Um coração de viuva, onde a saudade imensa não esmorece. Em tudo o Amor, sempre o Amor!
De Mercúrio a Venus, de Venus á Terra, que doce e linda viagem eu fiz! Eu ouvia dos mundos esparsos vozes inesqueciveis e piedosas, num eflúvio incomparavel, que me entravam pelos ouvidos como vozes humanas...
A Princesa estava lívida de espanto e foi com esforço que, movendo as lábios, preguntou:
—E que diziam essas vozes? Dize...
—Volta á Terra e ensina aos homens a serem bons. Tu és humilde, e é pela boca dos humildes que sáem as verdades. Sê clemente e apregoa a clemência; sê justo e exerce a justiça; e quando vires alguem transviado do seu caminho, tu que és cego dá-lhe a mão e dize:—Por aqui ... por aqui! e leva-o a salvamento. Dá a mão aos videntes, céguinho triste, e ensina-lhes o trilho da bondade e da compaixão, que é por esse trilho que se chega á Felicidade e a Deus!
—Basta! exclamou a Princesa, tentando disfarçar um sentimento que a agitava.
Depois, voltando-se para o terceiro cego, disse com voz já quebrada:
—Agora tu...
E o cego levantou-se, muito pálido, e começou:
*
* *
—Entrei pela Floresta com o passo tímido e o coração medroso. Nada atrai e aterra ao mesmo tempo o homem como o desconhecido. Logo, porém, a minha pele fatigada de calor, resequida pela aragem salitrosa da beira-mar, se sentiu adoçada e refrescada pela sombra das grandes árvores benignas. A claridade do dia traspassando a sua umbela vêrde diluia-se numa luz esmeraldina e repousante para as minhas pupilas abrazadas. Todo o ambiente me envolvia numa carícia de suprema consolação. Senti que a alma da Floresta se abria para receber-me, e já todo absorvido pela sua grandeza e a sua poesia, ajoelhei-me devotamente e beijei a terra fecunda, criadora de tantas maravilhas. Nenhuma palavra escrita ou falada me tinha feito jámais compreender a grande Verdade que a natureza da mata enorme e inculta me ensinava. Ali, cada árvore era um poema; cada ninho um exemplo de meiguice; cada colmeia um exemplo de trabalho e cada flor um emblema de graça e de fantasia...
Das nervuras e das raízes das plantas estendidas no chão, dos braços das lianas erguidas em múltiplas sanefas até ao mais alto arvoredo; das corolas das flores desabrochadas, desprendia-se um aroma sadio, sincero, um aroma vivo que os jardins cultivados não sabem exprimir...
A minha língua é fraca para descrever o mundo de sensações elevadas que o interior da Floresta acordou no meu espírito. Percebi pela primeira vez em minha vida que as árvores falam. O nosso ouvido imperfeito não apreende tudo que elas dizem, mas adivinha que a sua linguagem é sempre eloquente, generosa e fecunda de ensinamento...
A Princesa estremeceu, lembrando-se do que sentira na véspera em frente das árvores do seu jardim. Seria então verdade?!
—E as féras? preguntou, dilatando as narinas e cerrando os olhos, no antegozo de descrições cruéis e emocionantes.
—As próprias féras teem dentro desse mundo selvático que é o seu, uma expressão de nobreza, que me causou mais admiração do que terror. Sem fome, e livres da perseguição com que os homens as atormentam, elas teem atitudes plácidas e olhares em que transparece qualquer cousa de profundo e de meditativo, Onde não chega o caçador, está a tranquilidade. Só o homem é mau, só o homem envenena, o ar que respira, pela sua traição, a sua ambição ou a sua covardia; só o homem desconhece a sua verdadeira função na Terra, em que Deus o pôz não para sacrificar os seus semelhantes, mas para ama-los como irmãos...
Eu ouvi as vozes das águas em cascatas prodigiosas ou em regatos humildes; eu ouvi as vozes do vento cantando ou uivando na espessura das selvas; eu ouvi o estrondar dos trovões, reboando pelas quebradas das serras; ouvi o urrar das féras, o bramir das enxurradas, o silvar das serpentes, o ramalhar das frondes, o gorgear dos pássaros, e em todas essas vozes dispersas e harmónicas descobri sempre o mesmo sentido de criação e de amor.
*
* *
Houve um sussurro pela sala. As senhoras levaram aos olhos os seus lencinhos de rendas; os homens encobriam os rostos perturbados com as abas dos chapéus emplumados que sustinham nas mãos. É que se ouviram lá fóra os toques dos clarins da guarda, anunciando a próxima execução dos condenados e logo após entraram tres homens na sala, com máscaras e roupagens amarelas e umas voltas de cordas suspensas dos cinturões de metal. Outro sussurro mais dorido percorreu a sala como um lamento. A própria Princesa deixou cair das mãos geladas a sua doce e longa haste de nardos. Os clarins repetiram lá fóra o canto da Morte, mas a Princesa fez aos carrascos um gesto, ordenando que esperassem, e voltando-se para os cegos preguntou ainda com voz estrangulada e olhar inquieto:
—Respondei com verdade a esta pregunta: como pudestes vêr tudo isso, vós que sois cegos?
Todos tremeram. Algumas damas desmaiaram. Que iriam dizer os infelizes!...
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* *
O mais velho e mais pálido dos cegos levantou-se e respondeu:
—Senhora! quando o primeiro homem abriu para a Luz o primeiro olhar interrogativo, sentiu-se arrastar por uma fada invisivel e de tão forte prestígio, que ora o alçava ás regiões sidéreas, ora o mergulhava na onda pavorosa, ou o embrenhava nas matas virgens a descortinar segredos nunca antes violados. Desde esse instante, eterno companheiro da Humanidade, esse Ser acode ás suas invocações ou o leva sem cansaço a viajar pelo Infinito. Lingua não a tem, e fala todos os idiomas! Os seus dedos invisíveis dirigem as mãos dos poetas e logo tumultuam no papel scenas do próprio Inferno ou do próprio Paraíso. A sua boca, que ninguem viu, aflora no mais divino beijo a fronte de um triste miseravel,—e logo ele descreve riquezas e tesouros inauditos; a sua voz não tem som, mais segréda ao ouvido dos músicos e logo resoam as harmonias de cantos admiraveis; os seus olhos não teem pupilas, mas contemplam as côres do íris e induzem os pintores a criarem nas telas figuras de beleza eterna! Cria as estátuas dos museus e cria as almas dos livros. É o supremo Bemfeitor do Universo porque, reparai, até faz vêr os cégos!...
Um calafrio percorreu a assembléa. As damas puzeram-se de pé, cheias de medo. Os cavalheiros sacudiram no ar os seus chapéus emplumados e os quatro guardas de cerimónia cruzaram as lanças no chão, em sinal de súplica. Era a primeira vez que tal acontecia na côrte. A Princesa, apoiada aos braçais do trono, com gesto comovido e aflito indagou ansiosamente:
—O nome! eu quero o nome dessa Fada invisivel e assim poderosa!
Então, o mais novo dos cegos, erguendo o rosto iluminado, como se tivesse na fronte uma corôa de estrelas, respondeu:
—Senhora, o seu nome é—Imaginação!
Houve um suspiro de alívio em toda a sala. Uma doce onda de sangue tingiu de rosa as faces da Princesa e, sem se poder conter, ela exclamou com entusiasmo:
—Pois abençoada seja a Imaginação, que até faz vêr os cegos! Ide em paz!
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* *
Romperam hinos de glória na galeria dos Deuses. As dançarinas voltearam com alegria em torno dos lagos do parque. Do alto das torres voaram os pássaros, em revoada, espantados pelo repicar dos sinos, e o jardineiro dos cabelos côr de luar veio depôr aos pés da sua real Senhora a mais linda braçada de flores que jámais se viu.
E, ó milagre! desde esse dia a Princesa olhou com atenção carinhosa para todas as cousas e dispensou protecção e bondade a toda gente, convencida bem no fundo d'alma, que o peor cego é o que não quer vêr...
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